domingo, 17 de junho de 2018

Zanoni XVIII





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo VIII

Intimidação sem Trégua

“A ciência, para alguns, é uma grande deusa;para outros, porém, é apenas uma vaca leiteira,e estes cuidam sempre de calcular quanta manteiga lhes dará”. Schiller.

A última conversação com Zanoni produziu um efeito tranquilizador e salutar sobre a mente de Glyndon.
No meio da confusão que anuviara a sua mente, começou novamente a tomar corpo os felizes e dourados projetos próprios da juvenil ambição de um artista, para iluminarem o espaço como os raios do sol. E com estes projetos mesclava-se também a visão de um amor mais puro e sereno do que o que tinha concebido até então. Os seus pensamentos retrocederam aos tranquilos dias de sua infância, quando o gênio, não tendo ainda provado da fruta proibida, permanecia em toda a sua louçania, não conhecendo outra terra além do Éden amenizado por uma Eva.
Insensivelmente, foram desenvolvendo-se ante seus olhos as doces cenas do lar, sem necessidade de qualquer outra emoção do que a que lhe fornecia a sua arte, e o amor de Viola que o cercava de felicidade e contentamento; e, no meio destas fantasias de um futuro que podia realizar, viu-se restituído ao presente pela sonora voz de Mervale.

Quem estudou a vida das pessoas cuja imaginação é mais forte do que a sua vontade, e sabe quanto é fácil impressioná-las terá observado a influência que sobre tais naturezas exerce um caráter enérgico e conhecedor do mundo. Isto sucedia com Glyndon. O seu amigo Mervale tinha-o tirado muitas vezes dos perigos a que o expuseram suas imprudências; e havia algo na voz de Mervale que apagava o seu entusiasmo, e com frequência fazia-o envergonharse ainda mais de seus nobres impulsos do que de uma conduta fraca; este amigo de Glyndon, embora homem honesto, não podia simpatizar com a extravagância da generosidade, e igualmente aborrecia a presunção e a credulidade. Seguia o caminho reto da vida, e sentia igual a um desprezo para com o homem que vagava pelos flancos dos montes, fosse para caçar uma borboleta, fosse para descobrir uma boa vista do oceano.
Ainda que não seja Zanoni, - disse Mervale, rindo, - vou dizer-lhe, Clarêncio, seus pensamentos. Conheço-os ao ver seus olhos ainda úmidos e o meio sorriso nos seus lábios. Está meditando sobre aquela linda perdição, - a jovem cantora do São Carlos.
A jovem cantora do São Carlos! Glyndon corou e respondeu:
Falaria dela assim, se fosse minha esposa? - Não! Porque se me atrevesse, então, a sentir algum desprezo, seria por ti. Pode-se olhar com repugnância ao enganador, porém despreza-se sempre a quem se deixou enganar, apesar de ser advertido. -

Está seguro que eu seria enganado, se efetuasse essa união? Onde encontrei uma mulher tão amável e tão inocente, e cuja virtude houvesse resistido a tanta tentação? Há a mais leve sombra que obscureça o nome puro de Viola Pisani?
Não conheço todas as contadoras de novidades em Nápoles, - volveu Mervale, - e, por isso, não posso responder-lhe; sei, porém, que na Inglaterra ninguém acreditaria que um jovem inglês de boa fortuna e respeitável nascimento, casando-se com uma cantora do teatro de Nápoles, não tivesse caído lamentavelmente em um grande engano. Quero salvá-lo de cometer uma tolice irreparável. Pense nas mortificações que teria de sofrer ao ver que os moços se apressariam a frequentar a sua casa, enquanto que as senhoras a evitariam cuidadosamente.
Eu posso escolher meu próprio sistema de vida, - observou Glyndon, - onde não se necessita para nada a sociedade comum. Posso fazer com que o mundo me respeite por minha arte, e não pelos acidentes do nascimento e da fortuna.
Quer dizer que persiste em sua segunda loucura, - a absurda ambição de borrar telas? Livre-me o céu de eu dizer alguma coisa contra a louvável indústria de quem segue esta profissão para ganhar com ela a sua subsistência; porém o meu caro Glyndon, que tem meios e altas relações na sociedade, por que quer reduzir-se a um mero artista? Para distrair as horas de ócio, ainda vá; porém, fazer da pintura a ocupação da sua existência, seria uma loucura.
Os artistas têm sido amigos dos príncipes! - exclamou Glyndon.
Muito raras vezes, creio eu, na sóbria Inglaterra, - retrucou Mervale. - Ali, no grande centro da aristocracia política, os homens respeitam o que é prático, e não o ideal. Permita-me que lhe apresente dois quadros pintados por mim. Eis o primeiro:
Clarêncio Glyndon regressa à Inglaterra; casa-se com uma jovem de fortuna igual à sua, filha de amigos ou parentes que possam realizar sua natural ambição. Clarêncio Glyndon, transformado, assim, num homem rico e respeitável, como o seu talento e com suas energias concentradas, entra na vida prática. Tem uma casa onde pode receber as pessoas cujas relações lhe dão honra e vantagens; pode dedicar-se a úteis estudos nas horas que lhe sobram; a sua reputação, fundada sobre uma base sólida, é respeitada por todos. Ele adere a um partido; entra na vida política; e suas novas relações servem para ele alcançar tudo o que almeja. Que é o que Glyndon tem a probabilidade de ser na idade de quarenta e cinco anos? Posto que ambicioso, deixo-lhe a si mesmo o cuidado de responder a esta pergunta! Vamos, agora, ao outro quadro: Clarêncio Glyndon volta à Inglaterra com uma mulher que não lhe trás dinheiro algum, a não ser que a deixe continuar a cantar no teatro; esta mulher é tão formosa, que todos perguntam quem ela é, e, em pouco tempo, sabem que é a célebre cantora Viola Pisani. Glyndon se fecha para moer as tintas e pintar grandes quadros no estilo da escola histórica, que ninguém lhe compra. Tem um preconceito contra si: não estudou na Academia, é um pintor amador. Quem é o senhor Clarêncio Glyndon? Oh! O esposo da célebre Pisani! Que mais? Ah! Exibe aqueles grandes quadros! Pobre homem! É verdade que estes quadros têm seu valor; porém os de Tiniers e Watteau estão mais em moda, e não são mais caros. Clarêncio Glyndon tinha uma fortuna regular, enquanto solteiro; mas agora tem uma numerosa família, e como a sua fortuna não melhorou com o casamento, só se pode permitir despesas muito limitadas, e há de impor-se certas privações. Ele se retira para o campo, para precaver-se da necessidade e para pintar; vive abandonado e descontente. “O mundo não faz caso de mim”, diz, e retira-se do mundo social. Na idade de quarenta e cinco anos, o que será Clarêncio Glyndon? A sua ambição que responda também a esta pergunta!

Se todos os homens pensassem assim tão mundanamente - disse Glyndon, levantando-se, não teria havido, nem nunca haveria, no mundo, um artista ou um poeta.
E talvez passássemos muito bem sem eles, - respondeu Mervale. - 136 Mas... não será já tempo de pensarmos na comida? Estes peixes aqui são muito saborosos!

(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni