Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo VIII
Intimidação
sem Trégua
“A ciência, para alguns, é uma
grande deusa;para outros, porém, é apenas uma vaca leiteira,e estes cuidam
sempre de calcular quanta manteiga lhes dará”. Schiller.
A última conversação com Zanoni
produziu um efeito tranquilizador e salutar sobre a mente de Glyndon.
No meio da confusão que anuviara
a sua mente, começou novamente a tomar corpo os felizes e dourados projetos
próprios da juvenil ambição de um artista, para iluminarem o espaço como os
raios do sol. E com estes projetos mesclava-se também a visão de um amor mais
puro e sereno do que o que tinha concebido até então. Os seus pensamentos
retrocederam aos tranquilos dias de sua infância, quando o gênio, não tendo
ainda provado da fruta proibida, permanecia em toda a sua louçania, não
conhecendo outra terra além do Éden amenizado por uma Eva.
Insensivelmente, foram
desenvolvendo-se ante seus olhos as doces cenas do lar, sem necessidade de
qualquer outra emoção do que a que lhe fornecia a sua arte, e o amor de Viola
que o cercava de felicidade e contentamento; e, no meio destas fantasias de um
futuro que podia realizar, viu-se restituído ao presente pela sonora voz de
Mervale.
Quem estudou a vida das pessoas
cuja imaginação é mais forte do que a sua vontade, e sabe quanto é fácil
impressioná-las terá observado a influência que sobre tais naturezas exerce um
caráter enérgico e conhecedor do mundo. Isto sucedia com Glyndon. O seu amigo
Mervale tinha-o tirado muitas vezes dos perigos a que o expuseram suas
imprudências; e havia algo na voz de Mervale que apagava o seu entusiasmo, e
com frequência fazia-o envergonharse ainda mais de seus nobres impulsos do que
de uma conduta fraca; este amigo de Glyndon, embora homem honesto, não podia
simpatizar com a extravagância da generosidade, e igualmente aborrecia a
presunção e a credulidade. Seguia o caminho reto da vida, e sentia igual a um
desprezo para com o homem que vagava pelos flancos dos montes, fosse para caçar
uma borboleta, fosse para descobrir uma boa vista do oceano.
– Ainda que não seja Zanoni, - disse Mervale,
rindo, - vou dizer-lhe, Clarêncio, seus pensamentos. Conheço-os ao ver seus
olhos ainda úmidos e o meio sorriso nos seus lábios. Está meditando sobre
aquela linda perdição, - a jovem cantora do São Carlos.
A jovem cantora do São Carlos!
Glyndon corou e respondeu:
– Falaria dela assim, se fosse minha esposa?
- Não! Porque se me atrevesse, então, a sentir algum desprezo, seria por ti.
Pode-se olhar com repugnância ao enganador, porém despreza-se sempre a quem se
deixou enganar, apesar de ser advertido. -
– Está seguro que eu seria enganado, se efetuasse
essa união? Onde encontrei uma mulher tão amável e tão inocente, e cuja virtude
houvesse resistido a tanta tentação? Há a mais leve sombra que obscureça o nome
puro de Viola Pisani?
– Não conheço todas as contadoras de
novidades em Nápoles, - volveu Mervale, - e, por isso, não posso responder-lhe;
sei, porém, que na Inglaterra ninguém acreditaria que um jovem inglês de boa
fortuna e respeitável nascimento, casando-se com uma cantora do teatro de
Nápoles, não tivesse caído lamentavelmente em um grande engano. Quero salvá-lo
de cometer uma tolice irreparável. Pense nas mortificações que teria de sofrer
ao ver que os moços se apressariam a frequentar a sua casa, enquanto que as
senhoras a evitariam cuidadosamente.
– Eu posso escolher meu próprio sistema de
vida, - observou Glyndon, - onde não se necessita para nada a sociedade comum.
Posso fazer com que o mundo me respeite por minha arte, e não pelos acidentes
do nascimento e da fortuna.
– Quer dizer que persiste em sua segunda
loucura, - a absurda ambição de borrar telas? Livre-me o céu de eu dizer alguma
coisa contra a louvável indústria de quem segue esta profissão para ganhar com
ela a sua subsistência; porém o meu caro Glyndon, que tem meios e altas
relações na sociedade, por que quer reduzir-se a um mero artista? Para distrair
as horas de ócio, ainda vá; porém, fazer da pintura a ocupação da sua
existência, seria uma loucura.
– Os artistas têm sido amigos dos príncipes!
- exclamou Glyndon.
– Muito raras vezes, creio eu, na sóbria
Inglaterra, - retrucou Mervale. - Ali, no grande centro da aristocracia
política, os homens respeitam o que é prático, e não o ideal. Permita-me que
lhe apresente dois quadros pintados por mim. Eis o primeiro:
Clarêncio Glyndon regressa à
Inglaterra; casa-se com uma jovem de fortuna igual à sua, filha de amigos ou
parentes que possam realizar sua natural ambição. Clarêncio Glyndon,
transformado, assim, num homem rico e respeitável, como o seu talento e com
suas energias concentradas, entra na vida prática. Tem uma casa onde pode
receber as pessoas cujas relações lhe dão honra e vantagens; pode dedicar-se a
úteis estudos nas horas que lhe sobram; a sua reputação, fundada sobre uma base
sólida, é respeitada por todos. Ele adere a um partido; entra na vida política;
e suas novas relações servem para ele alcançar tudo o que almeja. Que é o que
Glyndon tem a probabilidade de ser na idade de quarenta e cinco anos? Posto que
ambicioso, deixo-lhe a si mesmo o cuidado de responder a esta pergunta! Vamos,
agora, ao outro quadro: Clarêncio Glyndon volta à Inglaterra com uma mulher que
não lhe trás dinheiro algum, a não ser que a deixe continuar a cantar no
teatro; esta mulher é tão formosa, que todos perguntam quem ela é, e, em pouco
tempo, sabem que é a célebre cantora Viola Pisani. Glyndon se fecha para moer
as tintas e pintar grandes quadros no estilo da escola histórica, que ninguém
lhe compra. Tem um preconceito contra si: não estudou na Academia, é um pintor
amador. Quem é o senhor Clarêncio Glyndon? Oh! O esposo da célebre Pisani! Que
mais? Ah! Exibe aqueles grandes quadros! Pobre homem! É verdade que estes
quadros têm seu valor; porém os de Tiniers e Watteau estão mais em moda, e não
são mais caros. Clarêncio Glyndon tinha uma fortuna regular, enquanto solteiro;
mas agora tem uma numerosa família, e como a sua fortuna não melhorou com o
casamento, só se pode permitir despesas muito limitadas, e há de impor-se
certas privações. Ele se retira para o campo, para precaver-se da necessidade e
para pintar; vive abandonado e descontente. “O mundo não faz caso de mim”, diz,
e retira-se do mundo social. Na idade de quarenta e cinco anos, o que será
Clarêncio Glyndon? A sua ambição que responda também a esta pergunta!
– Se todos os homens pensassem assim tão
mundanamente - disse Glyndon, levantando-se, – não teria havido, nem nunca haveria, no
mundo, um artista ou um poeta.
– E talvez passássemos muito bem sem eles, -
respondeu Mervale. - 136 Mas... não será já tempo de pensarmos na comida? Estes
peixes aqui são muito saborosos!
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni