Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo VII
Aborrecido por Fantasias
“Learn to be poor in
spirit, my son, if you would penetrate that sacred night which environs truth.
Learn of the Sages to allow to the Devils no power in Nature, since the fatal
stone has shut them up in the depth of the abiss. Learn of the Philosophers
always to look for natural causes in an extraordinary events; and when such
natural causes are wanting, recur to God”.The Count of Gabalis.
“Aprende a ser pobre em espírito, meu filho, se queres penetrar nessa noite
sagrada que envolve a verdade. Aprende dos Sábios a não conceder aos Diabos
nenhum poder na Natureza, desde que a pedra fatal os encerrou na profundidade
do abismo. Aprende dos filósofos a procurar sempre causas naturais em todos os
acontecimentos extraordinários; e quando faltarem tais causas naturais recorre
a Deus”.
Depois da ideia que Glyndon
formara de Zanoni, todas estas informações sobre o estrangeiro e o que ouvira
nos vários lugares de reuniões e visitas que frequentava, não lhe agradaram.
Naquela noite, Viola não representou no teatro; e, no dia seguinte, ainda
perturbado por estranhas fantasias, aborrecido da sarcástica companhia da
Mervale, Glyndon errava, pensativo, pelos jardins públicos, detendo-se por
debaixo da árvore onde ouvira, pela primeira vez, a voz que havia exercido
sobre a sua imaginação tão estranha influência. Os jardins estavam desertos.
Ele sentou-se à sombra das árvores; dentro em pouco, quando absorto em
profundas meditações, tornou a experimentar o mesmo tremor frio que Zanoni
definira tão exatamente, atribuindo-lhe uma causa extraordinária
Glyndon fez um repentino esforço
para levantar-se, e ficou sobressaltado ao ver sentado ao seu lado, uma pessoa
bastante feia, que podia tomar-se perfeitamente por um desses seres malignos,
dos quais Zanoni havia falado. Era um homem de pequena estatura, vestido com um
traje muito diferente da moda dominante; afetava uma rusticidade e pobreza que
se aproximava do desalinho. As largas calças de tecido grosseiro como a vela de
um navio, a jaqueta desconcertada e com alguns rasgões, os pretos anéis de
cabelos emaranhados, a saírem debaixo do gorro de lã, tudo isto formava
estranho contraste com outras coisas que anunciavam nele um relativo bem estar.
A camisa, aberta ao pescoço, estava presa por um broche de pedras preciosas, e
duas correntes de ouro maciço deixavam ver o ridículo de levar dois relógios.
O aspecto deste homem, se não era
de todo repugnante, era pouco recomendável. Os seus ombros eram altos e
robustos; o peito parecia comprimido; as mãos, que não levavam luvas, eram
grossas, e os dedos, cujas nodosas articulações revelavam grande força,
contrastavam com o pulso delgado, como se não pertencessem ao mesmo indivíduo.
As feições assumiam, às vezes, a dolorosa contratura que se observa no
semblante de um aleijado, - eram largas, exageradas, e o nariz quase tocava à
barba; os olhos eram pequenos, porém brilhavam com o fogo da astúcia quando se
fixavam sobre Glyndon; a boca entreaberta deixava ver duas fileiras de dentes
sujos, cariados e desiguais.
E sobre este horrível semblante
ainda transluzia uma espécie de inteligência desagradável, uma expressão de
ousadia sagaz; a quando Glyndon, voltando a si de sua surpresa, olhou fixamente
o seu vizinho, corou envergonhando-se da impressão que sentira, e reconheceu um
artista, francês, que pertencia ao número dos seus conhecidos, e era possuidor
de grande talento.
Era coisa verdadeiramente notável
que esta criatura, cujo exterior era completamente desprovido de atrativos, se
deleitasse particularmente nas pinturas tão cheias de majestade e grandeza.
Conquanto o colorido dos seus quadros fosse duro e sombrio, como era costume
geral da escola francesa daquele tempo, os seus desenhos eram admiráveis pela
harmonia, pela singela elegância e pelo vigor clássico, apesar de carecerem, às
vezes, dessa graça requintada e ideal. Este pintor preferia os assuntos que se
referiam à história romana, aos que representavam as belezas da Grécia ou às
sublimes histórias da Sagrada Escritura, que inspiraram a Rafael e a Michel
Ângelo. A grandeza de seus desenhos não era a dos deuses ou dos santos, porém a
dos mortais. A beleza das suas concepções era do gênero que a vista não pode
censurar, porém que a alma não reconhece. Em uma palavra, como se dizia de
Dionísio, era um “Antropófago”, um pintor de homens.
Notava-se também uma grande
contradição neste homem: ao passo que se entregava com extravagantes excessos a
todas as paixões, tanto ao ódio como ao amor, sendo implacável na vingança e
insaciável na devassidão, costumava usar frases cheias dos mais belos
sentimentos de exaltada pureza e genial filantropia. O mundo não era bastante
bom para ele; este homem era, valendo-nos de uma frase alemã, um “reformador do
mundo”.
Contudo, o esgar sarcástico dos
seus lábios parecia zombar dos sentimentos que manifestava, como se quisesse
dar a entender que era superior até ao mundo que desejava construir.
Este pintor estava em íntima
correspondência com os Republicanos de Paris, e era tido por um desses
missionários que, desde o primeiro período da Revolução, os regeneradores do
gênero humano se compraziam em enviar aos vários Estados que ainda gemiam na
escravidão, fosse pela tirania de um homem ou pelo despotismo das leis.
Certamente, como disse um historiador italiano (Botta), não havia, na Itália,
nenhuma cidade onde essas novas doutrinas fossem acolhidas com maior fervor do
que em Nápoles, um tanto devido ao ardente temperamento do povo, e
principalmente porque os mais odiosos privilégios feudais, embora diminuídos
alguns anos antes, pelo grande ministro Tanucini, ofereciam tantos males na
vida prática, que o povo achava mais sedutora a forma das promessas que fazia a
Novidade.
Este homem, a quem chamaremos
Jean Nicot, era, portanto, uma espécie de oráculo para os jovens de ideias mais
exaltadas de Nápoles; e antes que Glyndon conhecesse a Zanoni, não era dos que
menos deslumbrados estavam pelas eloquentes aspirações do feio filantropo.
– Há tanto tempo que não nos vemos, “cher
confrère” (querido confrade) - disse Nicot, aproximando a sua cadeira da de
Glyndon, - que não deve surpreender-se que o veja com grande prazer, e até tomo
a liberdade de interromper as suas meditações.
Que eram, por sinal, bem
desagradáveis - respondeu Glyndon; o momento não podia ser mais asado para
interromper-me. - Alegrar-se-á em saber, - continuou Nicot, tirando um pacote
de cartas da algibeira,
– que a grande obra marcha com maravilhosa
rapidez? Mirabeau faleceu, é verdade; mas, com os diabos! Cada francês agora é
um Mirabeau.
Dizendo isto, Nicot pôs-se a ler
e comentar vários animados e interessantes tópicos de sua correspondência, onde
a palavra “virtude” aparecia vinte e sete vezes, e nenhuma vez se falava de
Deus. Depois, entusiasmado pelo brilhante porvir que se abria à sua vista,
começou a entregar-se ao gozo antecipado dessas promessas do futuro, cuja
descrição já ouvimos da extravagante eloquência de Condorcet. Todas as virtudes
velhas foram destronadas e substituídas por outras com que adornavam o novo
Panteon: o patriotismo era um sentimento muito limitado; a filantropia devia
substituí-lo. O único amor digno de animar o peito de um homem generoso seria
aquele que abraçasse toda a humanidade, ardendo tanto para a Índia e os pólos
como para o torrão natal. A opinião devia ser tão livre como o ar; e, para
consegui-lo, era necessário exterminar todos aqueles, cujas ideias não fossem
as mesmas que os do Sr. Jean Nicot.
Muitas destas coisas divertiam a
Glyndon, e muitas lhe repugnavam; porém quando o pintor passou a falar de uma
ciência que todos compreenderiam, e cujos resultados todos desfrutariam, - uma
ciência que, tendo por base a igualdade das instituições e de cultura mental,
daria à todas as raças humanas riqueza sem trabalho e uma vida isenta de
cuidados e desgostos, mais longa do que a dos patriarcas, - então Glyndon
escutou com interesse e admiração, se bem que com certo desassossego.
– Observe - disse Nicot - quantas coisas que
hoje consideramos como virtude serão então rejeitadas como baixeza. Os nossos
opressores, por exemplo, nos pregam a excelência da gratidão. Gratidão! A
confissão da inferioridade! Que pode haver mais odioso para um espírito nobre
do que o humilhante sentimento de obrigação? Porém, onde há igualdade, o poder
não conseguirá escravizar o mérito.
O benfeitor e o cliente deixarão
igualmente de existir, e.- Entretanto, - disse uma voz baixa a seu lado, - e,
entretanto, Jean Nicot?
Os dois artistas
sobressaltaram-se, e Glyndon reconheceu Zanoni. Este fixou sua vista com
severidade sobre Nicot, o qual o olhava de soslaio, tendo espalhada no
semblante uma expressão de terror.
E era ele, Nicot, que não temia
nem a Deus, nem ao diabo, que estava ali assustado e a tremer à vista de um
homem!
– Não é esta a primeira vez que tenho sido
testemunha de suas opiniões à cerca do nenhum valor da gratidão - disse Zanoni.
Nicot reprimiu uma exclamação e,
depois de dirigir a Zanoni um olhar sinistro em que se revelava um ódio
impotente e inexplicável, retrucou:
– Não o conheço; que quer de mim?
– Que se ausente daqui e nos deixe sós. Nicot
deu um passo para diante, crispando os punhos e cerrando os dentes, como um
animal feroz enraivecido. Zanoni, sem fazer o menor movimento, dirigiu-lhe um
olhar altivo acompanhado de um sorriso de desprezo. Nicot deteve-se de repente
ante esse imponente olhar que o fez estremecer da cabeça aos pés e, em seguida,
com um visível esforço, como se agisse impelido por uma força exterior, foi-se
embora.
Glyndon estava positivamente
surpreso.
– Como conhece esse homem? - perguntou-lhe
Zanoni.
– Conheço-o como companheiro de arte, -
respondeu o jovem. - De “arte”! Não profane esta maravilhosa palavra. O que a Natureza
é para Deus, a arte deveria ser para o homem, uma criação sublime, benéfica e
genial. “Esse miserável pode ser um pintor, porém não um artista”.
– Por que fala assim dele, senhor? Que é que
sabe deste homem?
– Sei o bastante para preveni-lo contra ele;
os seus próprios lábios manifestam a fealdade do seu coração. Que necessidade
tenho eu de dizer-lhe os crimes que cometeu? Tudo nele fala de crime.
– Parece, senhor Zanoni, que não é um dos
admiradores da Revolução que se aproxima. Talvez deteste esse homem porque lhe
desagradam suas opiniões?
– Que opiniões? Glyndon sentiu-se bastante
embaraçado para querer defini-las; por fim, disse:
– Suponho que, entre todos os homens, não
pode estar contra a doutrina que prega o melhoramento infinito da espécie humana.
– Tem razão; os poucos, em cada século,
produzem o progresso dos muitos; os muitos podem agora ser tão sábios como
foram os poucos; mas o progresso fica estacionário, se me diz que agora os
muitos são tão sábios como o são os poucos.
– Compreendo; não quer admitir a lei da
igualdade universal!
– A lei! Ainda que todo o mundo se
conspirasse para reforçar a mentira, não conseguiriam fazê-la lei. Nivele todas
as condições de hoje, e não fará mais que preparar o caminho para a tirania de amanhã.
Uma nação que aspira à igualdade é incapaz de gozar liberdade. Em toda a
criação, desde o arcanjo até ao verme, desde o Olímpo até o seixo, desde o
radiante planeta perfeito até à nebulosa que, através dos séculos de névoa e
viscosidade, se vai consolidando até tornar-se um mundo habitável, a primeira
lei da Natureza é a desigualdade.
– Doutrina dura quando se aplica aos Estados.
Não desaparecerão nunca as cruéis desigualdades da vida?
– Desigualdades da vida física? Oh esperemos
que estas sim desapareçam. Porém, as desigualdades da vida intelectual e da
vida moral, nunca! Igualdade universal da inteligência, de gênio, de virtude!
Deixar o mundo sem um mestre! Sem um homem que seja mais sábio e melhor do que
os outros! Se isto não fosse uma coisa impossível, que perspectiva desesperadora
seria para a humanidade! Não; enquanto existir o mundo, o sol iluminará o cume
das montanhas sempre primeiro do que a planície. Difunda todos os conhecimentos
que contém a terra, hoje, entre a humanidade, para cada um ter deles porção
igual à dos outros, e amanhã já haverá homens que saberão algo mais do que o
resto. E isto não é uma lei dura, mas é uma lei benéfica, - a verdadeira lei do
progresso; quanto mais sábios são os poucos numa geração, tanto mais sábia será
a multidão na geração vindoura!
Enquanto Zanoni assim falava, iam
andando pouco a pouco, pelos jardins risonhos, e o sol do meio-dia brilhava na
formosa baía. Uma brisa fresca e suave temperava aquela hora de calor,
encrespando a água do mar; e, na serenidade da atmosfera, havia algo que
deliciava os sentidos. A alma parecia tornar-se mais leve e mais pura nesse ar
lúcido.
– E estes homens, ao começarem sua era de
melhoramento e igualdade, têm zelos até do Criador! Queriam negar uma
inteligência, um Deus! - continuou Zanoni, como se falasse involuntariamente. -
é possível que, sendo você um artista, e contemplando o mundo, possa prestar
ouvido à semelhante dogma? Entre Deus e o gênio existe um elo necessário, - ao
menos uma linguagem correspondente. Disse um pitagórico (Sextus): “Um bom
intelecto é o coro da divindade”.
Surpreendido e admirado destes
sentimentos, que não esperava existirem num homem a quem ele atribuía aqueles
poderes que os supersticiosos atribuem aos que pactuam com o gênio do mal,
Glyndon disse:
– E, contudo, você confessou que a sua vida,
separada da vida dos outros homens, é de uma espécie que a gente temeria
compartilhar. Existe, pois, alguma relação entre a magia e a religião?
– Magia! - exclamou Zanoni. - E que é a
Magia? Quando o viajante contempla, na Pérsia, as ruínas de palácios e de
templos, os ignorantes moradores daquelas regiões lhe dizem que aqueles
monumentos foram a obra de magos. O vulgo não compreende que possa estar
legalmente em poder de outros, o que está fora do seu próprio poder. Se, porém,
por magia você entende um perpétuo estudo e pesquisa incansável de tudo o que é
mais latente e obscuro na Natureza, respondo-lhe que professo essa magia, e que
aquele que faz o mesmo, aproxima-se mais da fonte de toda a crença. Não sabe
que se ensinava a magia nas escolas dos antigos? Porém, como e por quem? Como a
última e a mais solene lição, pelos Sacerdotes que serviam no Templo. E você,
que quer ser um pintor, não sabe que existe uma magia também na arte a que se
dedica? Depois de longos estudos do Belo que tem existido, não se sente levado
a novas e aéreas combinações de uma beleza que deverá existir? Não vê que a
arte mais sublime, sela a do poeta ou a do pintor, buscando sempre o
verdadeiro, aborrecendo o real? Que deve tratar a Natureza como seu senhor, e
não como seu escravo? Procure obter o domínio sobre o passado e uma
concentração do futuro como o passado? Você acaricia em sua imaginação os seres
invisíveis; e que é a pintura, senão a arte de dar forma e realidade ao
Invisível? Está descontente com este mundo? Este mundo nunca foi suficiente
para um gênio! Para poder existir, o gênio há de se criar mais outro mundo. Que
mais pode fazer um mago? Ou, por outra, que ciência pode fazer outro tanto? Há
dois caminhos que, das pequenas paixões e das tristes calamidades da terra,
conduzem ao céu e se afastam do inferno; estes caminhos são a arte e a ciência.
Mas a arte é mais divina do que a ciência, porque a ciência só descobre, ao
passo que a arte cria. Você possui faculdades que podem dominar a arte; contente-se
com a sua sorte. O astrônomo que forma o catálogo das estrelas, não pode
acrescentar um átomo ao universo; o poeta pode evocar um mundo de um átomo. O
químico, que combina substâncias, pode curar, com suas drogas, as enfermidades
do corpo humano; o pintor ou o escultor reveste de uma eterna juventude formas
divinas que não serão alteradas por doenças, nem desfiguradas pelos anos.
Renuncie a esses instáveis caprichos que ora o impelem para mim, e ora para
aquele reformador da raça humana; nós dois somos antípodas um do outro. O seu
pincel é sua varinha poderosa; a sua tela pode criar utopias mais belas do que
as de que sonha Condorcet. Não o aconselho que precipite a sua decisão; porém,
o que mais pode pedir o homem de gênio para embelezar o seu caminho para o
túmulo, do que amor e glória?
– Porém, - objetou Glyndon, fixando
seriamente Zanoni, - poder para evitar a própria morte...
Zanoni franziu a testa e, depois
de uma pausa, respondeu:
– E ainda que houvesse tal poder, seria uma
sorte agradável sobreviver a quantos lhe foram caros, e renunciar a todos os
laços que constituem a felicidade humana? A mais bela imortalidade, talvez, que
se possa alcançar na terra, é a que proporciona um nome nobre.
– Você não me responde - fala por enigmas.
Tenho lido de existências que duraram muito mais tempo do que o homem comum
costumava viver, continuou Glyndon, - e que alguns alquimistas possuíram com
este segredo - uma mera fábula o que se diz do elixir de ouro?
– Se não o é, e esses homens o descobriram,
morreram porque não quiseram viver! Isto pode ser uma triste advertência à sua
conjetura. Ouça-me: volte ao seu cavalete e à sua tela!
Ao dizer isto, Zanoni saudou o jovem e, com os olhos
baixos e a passos lentos, encaminhou-se para a cidade.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni