quinta-feira, 7 de junho de 2018

Zanoni XVII




Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo VII

Aborrecido por Fantasias

“Learn to be poor in spirit, my son, if you would penetrate that sacred night which environs truth. Learn of the Sages to allow to the Devils no power in Nature, since the fatal stone has shut them up in the depth of the abiss. Learn of the Philosophers always to look for natural causes in an extraordinary events; and when such natural causes are wanting, recur to God”.The Count of Gabalis.

“Aprende a ser pobre em espírito, meu filho, se queres penetrar nessa noite sagrada que envolve a verdade. Aprende dos Sábios a não conceder aos Diabos nenhum poder na Natureza, desde que a pedra fatal os encerrou na profundidade do abismo. Aprende dos filósofos a procurar sempre causas naturais em todos os acontecimentos extraordinários; e quando faltarem tais causas naturais recorre a Deus”.

Depois da ideia que Glyndon formara de Zanoni, todas estas informações sobre o estrangeiro e o que ouvira nos vários lugares de reuniões e visitas que frequentava, não lhe agradaram. Naquela noite, Viola não representou no teatro; e, no dia seguinte, ainda perturbado por estranhas fantasias, aborrecido da sarcástica companhia da Mervale, Glyndon errava, pensativo, pelos jardins públicos, detendo-se por debaixo da árvore onde ouvira, pela primeira vez, a voz que havia exercido sobre a sua imaginação tão estranha influência. Os jardins estavam desertos. Ele sentou-se à sombra das árvores; dentro em pouco, quando absorto em profundas meditações, tornou a experimentar o mesmo tremor frio que Zanoni definira tão exatamente, atribuindo-lhe uma causa extraordinária
Glyndon fez um repentino esforço para levantar-se, e ficou sobressaltado ao ver sentado ao seu lado, uma pessoa bastante feia, que podia tomar-se perfeitamente por um desses seres malignos, dos quais Zanoni havia falado. Era um homem de pequena estatura, vestido com um traje muito diferente da moda dominante; afetava uma rusticidade e pobreza que se aproximava do desalinho. As largas calças de tecido grosseiro como a vela de um navio, a jaqueta desconcertada e com alguns rasgões, os pretos anéis de cabelos emaranhados, a saírem debaixo do gorro de lã, tudo isto formava estranho contraste com outras coisas que anunciavam nele um relativo bem estar. A camisa, aberta ao pescoço, estava presa por um broche de pedras preciosas, e duas correntes de ouro maciço deixavam ver o ridículo de levar dois relógios.
O aspecto deste homem, se não era de todo repugnante, era pouco recomendável. Os seus ombros eram altos e robustos; o peito parecia comprimido; as mãos, que não levavam luvas, eram grossas, e os dedos, cujas nodosas articulações revelavam grande força, contrastavam com o pulso delgado, como se não pertencessem ao mesmo indivíduo. As feições assumiam, às vezes, a dolorosa contratura que se observa no semblante de um aleijado, - eram largas, exageradas, e o nariz quase tocava à barba; os olhos eram pequenos, porém brilhavam com o fogo da astúcia quando se fixavam sobre Glyndon; a boca entreaberta deixava ver duas fileiras de dentes sujos, cariados e desiguais.
E sobre este horrível semblante ainda transluzia uma espécie de inteligência desagradável, uma expressão de ousadia sagaz; a quando Glyndon, voltando a si de sua surpresa, olhou fixamente o seu vizinho, corou envergonhando-se da impressão que sentira, e reconheceu um artista, francês, que pertencia ao número dos seus conhecidos, e era possuidor de grande talento.
Era coisa verdadeiramente notável que esta criatura, cujo exterior era completamente desprovido de atrativos, se deleitasse particularmente nas pinturas tão cheias de majestade e grandeza. Conquanto o colorido dos seus quadros fosse duro e sombrio, como era costume geral da escola francesa daquele tempo, os seus desenhos eram admiráveis pela harmonia, pela singela elegância e pelo vigor clássico, apesar de carecerem, às vezes, dessa graça requintada e ideal. Este pintor preferia os assuntos que se referiam à história romana, aos que representavam as belezas da Grécia ou às sublimes histórias da Sagrada Escritura, que inspiraram a Rafael e a Michel Ângelo. A grandeza de seus desenhos não era a dos deuses ou dos santos, porém a dos mortais. A beleza das suas concepções era do gênero que a vista não pode censurar, porém que a alma não reconhece. Em uma palavra, como se dizia de Dionísio, era um “Antropófago”, um pintor de homens.

Notava-se também uma grande contradição neste homem: ao passo que se entregava com extravagantes excessos a todas as paixões, tanto ao ódio como ao amor, sendo implacável na vingança e insaciável na devassidão, costumava usar frases cheias dos mais belos sentimentos de exaltada pureza e genial filantropia. O mundo não era bastante bom para ele; este homem era, valendo-nos de uma frase alemã, um “reformador do mundo”.
Contudo, o esgar sarcástico dos seus lábios parecia zombar dos sentimentos que manifestava, como se quisesse dar a entender que era superior até ao mundo que desejava construir.
Este pintor estava em íntima correspondência com os Republicanos de Paris, e era tido por um desses missionários que, desde o primeiro período da Revolução, os regeneradores do gênero humano se compraziam em enviar aos vários Estados que ainda gemiam na escravidão, fosse pela tirania de um homem ou pelo despotismo das leis. Certamente, como disse um historiador italiano (Botta), não havia, na Itália, nenhuma cidade onde essas novas doutrinas fossem acolhidas com maior fervor do que em Nápoles, um tanto devido ao ardente temperamento do povo, e principalmente porque os mais odiosos privilégios feudais, embora diminuídos alguns anos antes, pelo grande ministro Tanucini, ofereciam tantos males na vida prática, que o povo achava mais sedutora a forma das promessas que fazia a Novidade.
Este homem, a quem chamaremos Jean Nicot, era, portanto, uma espécie de oráculo para os jovens de ideias mais exaltadas de Nápoles; e antes que Glyndon conhecesse a Zanoni, não era dos que menos deslumbrados estavam pelas eloquentes aspirações do feio filantropo.
Há tanto tempo que não nos vemos, “cher confrère” (querido confrade) - disse Nicot, aproximando a sua cadeira da de Glyndon, - que não deve surpreender-se que o veja com grande prazer, e até tomo a liberdade de interromper as suas meditações.
Que eram, por sinal, bem desagradáveis - respondeu Glyndon; o momento não podia ser mais asado para interromper-me. - Alegrar-se-á em saber, - continuou Nicot, tirando um pacote de cartas da algibeira,
que a grande obra marcha com maravilhosa rapidez? Mirabeau faleceu, é verdade; mas, com os diabos! Cada francês agora é um Mirabeau.
Dizendo isto, Nicot pôs-se a ler e comentar vários animados e interessantes tópicos de sua correspondência, onde a palavra “virtude” aparecia vinte e sete vezes, e nenhuma vez se falava de Deus. Depois, entusiasmado pelo brilhante porvir que se abria à sua vista, começou a entregar-se ao gozo antecipado dessas promessas do futuro, cuja descrição já ouvimos da extravagante eloquência de Condorcet. Todas as virtudes velhas foram destronadas e substituídas por outras com que adornavam o novo Panteon: o patriotismo era um sentimento muito limitado; a filantropia devia substituí-lo. O único amor digno de animar o peito de um homem generoso seria aquele que abraçasse toda a humanidade, ardendo tanto para a Índia e os pólos como para o torrão natal. A opinião devia ser tão livre como o ar; e, para consegui-lo, era necessário exterminar todos aqueles, cujas ideias não fossem as mesmas que os do Sr. Jean Nicot.
Muitas destas coisas divertiam a Glyndon, e muitas lhe repugnavam; porém quando o pintor passou a falar de uma ciência que todos compreenderiam, e cujos resultados todos desfrutariam, - uma ciência que, tendo por base a igualdade das instituições e de cultura mental, daria à todas as raças humanas riqueza sem trabalho e uma vida isenta de cuidados e desgostos, mais longa do que a dos patriarcas, - então Glyndon escutou com interesse e admiração, se bem que com certo desassossego.

Observe - disse Nicot - quantas coisas que hoje consideramos como virtude serão então rejeitadas como baixeza. Os nossos opressores, por exemplo, nos pregam a excelência da gratidão. Gratidão! A confissão da inferioridade! Que pode haver mais odioso para um espírito nobre do que o humilhante sentimento de obrigação? Porém, onde há igualdade, o poder não conseguirá escravizar o mérito.
O benfeitor e o cliente deixarão igualmente de existir, e.- Entretanto, - disse uma voz baixa a seu lado, - e, entretanto, Jean Nicot?
Os dois artistas sobressaltaram-se, e Glyndon reconheceu Zanoni. Este fixou sua vista com severidade sobre Nicot, o qual o olhava de soslaio, tendo espalhada no semblante uma expressão de terror.
E era ele, Nicot, que não temia nem a Deus, nem ao diabo, que estava ali assustado e a tremer à vista de um homem!
Não é esta a primeira vez que tenho sido testemunha de suas opiniões à cerca do nenhum valor da gratidão - disse Zanoni.
Nicot reprimiu uma exclamação e, depois de dirigir a Zanoni um olhar sinistro em que se revelava um ódio impotente e inexplicável, retrucou:
Não o conheço; que quer de mim?
Que se ausente daqui e nos deixe sós. Nicot deu um passo para diante, crispando os punhos e cerrando os dentes, como um animal feroz enraivecido. Zanoni, sem fazer o menor movimento, dirigiu-lhe um olhar altivo acompanhado de um sorriso de desprezo. Nicot deteve-se de repente ante esse imponente olhar que o fez estremecer da cabeça aos pés e, em seguida, com um visível esforço, como se agisse impelido por uma força exterior, foi-se embora.
Glyndon estava positivamente surpreso.
Como conhece esse homem? - perguntou-lhe Zanoni.
Conheço-o como companheiro de arte, - respondeu o jovem. - De “arte”! Não profane esta maravilhosa palavra. O que a Natureza é para Deus, a arte deveria ser para o homem, uma criação sublime, benéfica e genial. “Esse miserável pode ser um pintor, porém não um artista”.
Por que fala assim dele, senhor? Que é que sabe deste homem?
Sei o bastante para preveni-lo contra ele; os seus próprios lábios manifestam a fealdade do seu coração. Que necessidade tenho eu de dizer-lhe os crimes que cometeu? Tudo nele fala de crime.
Parece, senhor Zanoni, que não é um dos admiradores da Revolução que se aproxima. Talvez deteste esse homem porque lhe desagradam suas opiniões?
Que opiniões? Glyndon sentiu-se bastante embaraçado para querer defini-las; por fim, disse:
Suponho que, entre todos os homens, não pode estar contra a doutrina que prega o melhoramento infinito da espécie humana.
Tem razão; os poucos, em cada século, produzem o progresso dos muitos; os muitos podem agora ser tão sábios como foram os poucos; mas o progresso fica estacionário, se me diz que agora os muitos são tão sábios como o são os poucos.
Compreendo; não quer admitir a lei da igualdade universal!
A lei! Ainda que todo o mundo se conspirasse para reforçar a mentira, não conseguiriam fazê-la lei. Nivele todas as condições de hoje, e não fará mais que preparar o caminho para a tirania de amanhã. Uma nação que aspira à igualdade é incapaz de gozar liberdade. Em toda a criação, desde o arcanjo até ao verme, desde o Olímpo até o seixo, desde o radiante planeta perfeito até à nebulosa que, através dos séculos de névoa e viscosidade, se vai consolidando até tornar-se um mundo habitável, a primeira lei da Natureza é a desigualdade.

Doutrina dura quando se aplica aos Estados. Não desaparecerão nunca as cruéis desigualdades da vida?
Desigualdades da vida física? Oh esperemos que estas sim desapareçam. Porém, as desigualdades da vida intelectual e da vida moral, nunca! Igualdade universal da inteligência, de gênio, de virtude! Deixar o mundo sem um mestre! Sem um homem que seja mais sábio e melhor do que os outros! Se isto não fosse uma coisa impossível, que perspectiva desesperadora seria para a humanidade! Não; enquanto existir o mundo, o sol iluminará o cume das montanhas sempre primeiro do que a planície. Difunda todos os conhecimentos que contém a terra, hoje, entre a humanidade, para cada um ter deles porção igual à dos outros, e amanhã já haverá homens que saberão algo mais do que o resto. E isto não é uma lei dura, mas é uma lei benéfica, - a verdadeira lei do progresso; quanto mais sábios são os poucos numa geração, tanto mais sábia será a multidão na geração vindoura!
Enquanto Zanoni assim falava, iam andando pouco a pouco, pelos jardins risonhos, e o sol do meio-dia brilhava na formosa baía. Uma brisa fresca e suave temperava aquela hora de calor, encrespando a água do mar; e, na serenidade da atmosfera, havia algo que deliciava os sentidos. A alma parecia tornar-se mais leve e mais pura nesse ar lúcido.
E estes homens, ao começarem sua era de melhoramento e igualdade, têm zelos até do Criador! Queriam negar uma inteligência, um Deus! - continuou Zanoni, como se falasse involuntariamente. - é possível que, sendo você um artista, e contemplando o mundo, possa prestar ouvido à semelhante dogma? Entre Deus e o gênio existe um elo necessário, - ao menos uma linguagem correspondente. Disse um pitagórico (Sextus): “Um bom intelecto é o coro da divindade”.
Surpreendido e admirado destes sentimentos, que não esperava existirem num homem a quem ele atribuía aqueles poderes que os supersticiosos atribuem aos que pactuam com o gênio do mal, Glyndon disse:
E, contudo, você confessou que a sua vida, separada da vida dos outros homens, é de uma espécie que a gente temeria compartilhar. Existe, pois, alguma relação entre a magia e a religião?
Magia! - exclamou Zanoni. - E que é a Magia? Quando o viajante contempla, na Pérsia, as ruínas de palácios e de templos, os ignorantes moradores daquelas regiões lhe dizem que aqueles monumentos foram a obra de magos. O vulgo não compreende que possa estar legalmente em poder de outros, o que está fora do seu próprio poder. Se, porém, por magia você entende um perpétuo estudo e pesquisa incansável de tudo o que é mais latente e obscuro na Natureza, respondo-lhe que professo essa magia, e que aquele que faz o mesmo, aproxima-se mais da fonte de toda a crença. Não sabe que se ensinava a magia nas escolas dos antigos? Porém, como e por quem? Como a última e a mais solene lição, pelos Sacerdotes que serviam no Templo. E você, que quer ser um pintor, não sabe que existe uma magia também na arte a que se dedica? Depois de longos estudos do Belo que tem existido, não se sente levado a novas e aéreas combinações de uma beleza que deverá existir? Não vê que a arte mais sublime, sela a do poeta ou a do pintor, buscando sempre o verdadeiro, aborrecendo o real? Que deve tratar a Natureza como seu senhor, e não como seu escravo? Procure obter o domínio sobre o passado e uma concentração do futuro como o passado? Você acaricia em sua imaginação os seres invisíveis; e que é a pintura, senão a arte de dar forma e realidade ao Invisível? Está descontente com este mundo? Este mundo nunca foi suficiente para um gênio! Para poder existir, o gênio há de se criar mais outro mundo. Que mais pode fazer um mago? Ou, por outra, que ciência pode fazer outro tanto? Há dois caminhos que, das pequenas paixões e das tristes calamidades da terra, conduzem ao céu e se afastam do inferno; estes caminhos são a arte e a ciência. Mas a arte é mais divina do que a ciência, porque a ciência só descobre, ao passo que a arte cria. Você possui faculdades que podem dominar a arte; contente-se com a sua sorte. O astrônomo que forma o catálogo das estrelas, não pode acrescentar um átomo ao universo; o poeta pode evocar um mundo de um átomo. O químico, que combina substâncias, pode curar, com suas drogas, as enfermidades do corpo humano; o pintor ou o escultor reveste de uma eterna juventude formas divinas que não serão alteradas por doenças, nem desfiguradas pelos anos. Renuncie a esses instáveis caprichos que ora o impelem para mim, e ora para aquele reformador da raça humana; nós dois somos antípodas um do outro. O seu pincel é sua varinha poderosa; a sua tela pode criar utopias mais belas do que as de que sonha Condorcet. Não o aconselho que precipite a sua decisão; porém, o que mais pode pedir o homem de gênio para embelezar o seu caminho para o túmulo, do que amor e glória?

Porém, - objetou Glyndon, fixando seriamente Zanoni, - poder para evitar a própria morte...
Zanoni franziu a testa e, depois de uma pausa, respondeu:
E ainda que houvesse tal poder, seria uma sorte agradável sobreviver a quantos lhe foram caros, e renunciar a todos os laços que constituem a felicidade humana? A mais bela imortalidade, talvez, que se possa alcançar na terra, é a que proporciona um nome nobre.
Você não me responde - fala por enigmas. Tenho lido de existências que duraram muito mais tempo do que o homem comum costumava viver, continuou Glyndon, - e que alguns alquimistas possuíram com este segredo - uma mera fábula o que se diz do elixir de ouro?
Se não o é, e esses homens o descobriram, morreram porque não quiseram viver! Isto pode ser uma triste advertência à sua conjetura. Ouça-me: volte ao seu cavalete e à sua tela!
Ao dizer isto, Zanoni saudou o jovem e, com os olhos baixos e a passos lentos, encaminhou-se para a cidade.

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni