Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Terceiro
Capítulo IV
Confissões
Ousadas e de Risco
etween two worlds life a hovers
like a star Twixt night and morn”.Byron
“Entre dois mundos balança-se a
vida como uma estrela, entre a noite e a manhã”.
Quando Glyndon se separou de
Viola, na disposição que vimos no final da segunda parte desta obra,
submergiu-se outra vez naqueles místicos desejos e conjeturas que o assaltavam
sempre quando se lembrava de Zanoni. E, vagando pelas ruas de Nápoles, inconsciente
dos seus próprios movimentos, encontrou-se, movido pelo mecanismo do costume,
no meio de uma das ricas galerias de pinturas, que constituem o luxo dessas
cidades da Itália, cuja glória está toda no passado. Glyndon costumava visitar
este lugar quase diariamente, pois a galeria continha algumas pinturas de
grande mérito, que eram especialmente o objeto de seu entusiasmo e estudo. A
maioria das vezes parava diante das obras de Salvador, que lhe inspiravam um
sentimento de profunda admiração e respeito. O rasgo característico deste
artista é a Força de Vontade; elevada ideia de abstrata beleza, que fornece um
modelo ao gênio de ordem mais ilustre, a singular energia do homem tira da
pedra uma dignidade que lhe é própria. As suas imagens têm a majestade, não de
um deus, porém de um selvagem; sendo inteiramente livre, como as escolas mais
sublimes, da vulgar imitação, apartando-se, com elas, da convencional pequenez
da chamada realidade, - o artista apodera-se da imaginação, obrigando-a a seguir-lhe,
não ao céu, mas através de tudo o que há de mais selvagem e fantástico sobre a
terra; é uma magia que não se parece com a do mago astrólogo, e sim com a do
tenebroso feiticeiro, - é um homem de romance, cujo coração bate fortemente,
manejando a arte com a mão de ferro e forçando-a a idealizar as cenas de sua
vida atual. Ante esta poderosa vontade, Glyndon sentiu-se mais cheio de
admiração, do que diante da beleza, dotada de maior serenidade, que brotava da
alma de Rafael, como Venus do seio do mar. E agora, como despertando de suas
meditações, encontrou-se diante daquela imponente, selvagem e magnífica
gravidade da Natureza, que o olhava, encolerizada, da tela, e cujas folhas,
nessas árvores, semelhantes aos gnomos, com seus troncos tortos, pareciam murmurar-lhe
no ouvido segredos sibilinos. Aqueles escabrosos e sombrios Apeninos, com sua
soberba catarata, estavam mais acordes com os seus pensamentos, do que as cenas
que o rodeavam. As ásperas e extravagantes figuras que descansavam sobre as
rochas, e pareciam como anões ao lado das gigantescas proporções da matéria que
reinava em seu derredor, o impressionavam, fazendo-lhe ver o poder da Natureza
e a pequenez do homem. O mesmo que nos quadros dos gênios mais espirituais, o
homem e a alma que vive nele, são cuidadosamente apresentados como a imagem
mais proeminente; e os meros acessórios da cena ocupam um grau inferior, sendo
tratados com menos cuidado, como para demonstrar que o desterrado do Paraíso é
ainda o monarca do mundo exterior - assim nas paisagens de Salvador, a árvore,
a montanha, a cascata figuram como o objeto principal, e o homem se reduz ao
acessório. A matéria parece dominar nelas, ao passo que o seu verdadeiro senhor
fica quase invisível debaixo de sua estupenda sombra. A matéria é, ali, o que
dá interesse ao homem imortal, e não este à matéria inerte. Que terrível
filosofia na arte!
Enquanto Glyndon estava imerso em
semelhantes pensamentos, alguém tocou-lhe levemente o braço - era Nicot, que
lhe disse:
– É um grande mestre, mas eu não gosto da sua
escola.
– Nem eu - respondeu Glyndon - porém há algo
nestas pinturas que me impressiona extraordinariamente. Amamos o belo e o
sereno; mas há em nós um sentimento tão profundo como o amor, e este sentimento
nos faz admirar o terrível e o obscuro.
– É verdade, - retrucou Nicot, pensativo. -
E, não obstante, este sentimento não passa de ser uma mera superstição. As aias
e outras pessoas que cuidam das crianças, com seus contos de fadas, de
espíritos e de fantasmas, são o berço da maior parte de nossa ignorância; a
arte deveria representar somente verdades. Confesso que Rafael me agrada menos,
porque não simpatizo com seus assuntos. Os seus santos e as suas virgens não
são, para mim, senão homens e mulheres.
– Então, de que fonte deveriam os pintores
tomar seus temas?
– Da história, não há dúvida, - tornou Nicot,
- daquelas grandes ações dos romanos, que inspiram aos homens sentimentos de
liberdade e de valor, ensinando-lhes as virtudes republicanas. Eu desejaria que
os quadros de Rafael tivessem ilustrado a história dos Horácios; mas é à França
republicana que toca o legar à posteridade a nova e verdadeira escola, que não
teria podido nunca nascer e prosperar num país dominado pelo clero e pelo
fanatismo.
– E os santos e as virgens de Rafael não são,
para você, mais do que homens e mulheres? - repetiu Glyndon, voltando, com
admiração, à cândida confissão de Nicot, e quase sem atender as deduções que o
francês fazia da sua proposição.
– Seguramente, - retrucou Nicot, rindo-se
horrivelmente. Ah! Ah! Quer, acaso, fazer-me crer o que o calendário conta a
seu respeito?
– Porém, o ideal?
– O ideal! - interrompeu Nicot. - Que coisa!
Os críticos italianos, e o seu inglês Reynolds transtornaram- lhe a cabeça.
Eles falam tão apaixonadamente do seu “gosto refinado” e da “beleza ideal que
fala à alma!”
– Alma! Existe uma alma? Compreendo um homem
quando fala do bom gosto de uma composição, referindo-se a uma pessoa educada e
inteligente, ou a alguém que compreende verdades; porém, quanto à alma, - ora!
- Nós não somos mais que modificação da matéria, e a pintura é modificação da
matéria também
Os olhos de Glyndon dirigiam-se
ora para o quadro que tinha diante de si, ora para Nicot. O dogmatista dotou de
voz os pensamentos que a vista daquele quadro despertara. O inglês meneou a
cabeça, sem replicar.
– Diga-me, - perguntou Nicot, de repente; -
aquele impostor, - Zanoni - oh! Eu soube o seu nome, nestes dias, como também
soube de suas farsas, - que lhe disse de mim?
– De ti? Nada; apenas me advertiu contra as
suas doutrinas.
– Ah! Ah! Nada mais? Esse homem é um
embusteiro, e, como a última vez que nos encontramos, descobri suas trapaças e
mistificações, pensei que talvez se vingasse, caluniando-me.
– Descobriu suas trapaças e mistificações?
Como?
– Oh! E uma história insulsa e longa. Ele
quis ensinar a um ancião, meu amigo extremoso, seus segredos acerca da alquimia
filosófica e o modo de prolongar a vida. Aconselho-o a não lhe dedicar sua
amizade, para não se desacreditar.
Dizendo isto, Nicot fez um gesto
significativo, e não desejando que Glyndon lhe fizesse mais perguntas sobre
esse assunto, retirou-se.
Glyndon voltou à sua arte, que a
presença de Nicot havia tão desagradavelmente interrompido. O jovem inglês
deixou as paisagens de Salvador e, fixando a vista na Natividade, de Corrégio,
ficou admirado ao ver o contraste que oferecia aqueles dois gênios de naturezas
tão opostas; a Glyndon pareceu isto como uma descoberta. Aquela calma
esquisita, aquele perfeito sentimento de beleza, aquele vigor natural, aquela
sublime moral, que respira a arte quando, falando à mente por meio dos olhos,
desperta nela, por meio da ternura e do amor, pensamentos que a elevam às
regiões admiráveis e cheias de milagres, - ah! Aquela era a verdadeira escola.
Glyndon deixou a galeria a passos lentos e com ideias inspiradas; profundamente
impressionado, dirigiu-se à sua casa. Ao chegar, alegrou-se por não ter
encontrado Mervale, e sentando-se, meditativo, esforçou-se para recordar as
palavras de Zanoni em sua última conversação. Sentia que o que Nicot tinha dito
acerca de arte era um crime, pois que reduzia até a imaginação a uma simples
máquina. Podia aquele homem, que só via na alma uma combinação da matéria,
falar de escolas que deviam ser superiores à de Rafael? Sim, a arte é magia; e
como o jovem reconhecia a verdade do aforismo, compreendeu que na magia pode
haver religião, porque a religião é uma condição essencial da arte. A sua
antiga ambição liberta agora da fria prudência com que Mervale tratava de
profanar as imagens menos substanciais do que o bezerro de ouro avivou-se,
tornando a arder novamente. O sutil descobrimento do que ele julgara ser um
erro na escola que havia adotado até então, patenteado ainda mais pelos
mordentes comentários de Nicot, parecia oferecer à sua vista um novo mundo de
invenção. Aproveitando aquele feliz momento, colocou diante de si as tintas e a
tela. Perdido no conceito de um novo ideal sentiu a sua mente transportada às
aéreas regiões da beleza, ao passo que se desvaneciam os pensamentos sombrios e
os desejos profanos. Zanoni tinha razão: o mundo material desaparecia de sua
vista; ele via a Natureza como a observá-la do cume de uma montanha; e quando
se sossegaram as ondas do seu agitado coração, os olhos angélicos de Viola
apareceram no novo horizonte como uma luminosa estrela.
Encerrado no seu quarto, não quis
receber visitas, nem a de Mervale. Embriagado com o ar puro de sua nova
existência permaneceu três dias e quase três noites absorto em seu trabalho,
até que, na manhã do quarto dia, começou a verificar-se a reação, à qual está
exposto todo trabalho. Glyndon despertou indiferente e fatigado; e quando olhou
o seu quadro, pareceu-lhe que a glória se havia dele ausentado. Recordações
humilhantes dos grandes mestres com que aspirava a rivalizar, invadiram-no;
defeitos, até então desaparecidos, vieram aumentar as deformidades que iam
notando em sua obra, o que o descontentou sobremaneira.
O artista retocou uma e outra vez
o quadro; porém a sua mão mostrava-se rebelde: e, por fim, cansado, depôs os
pincéis e foi sentar-se à janela que abrira. O dia estava sereno e agradável;
as ruas estavam cheias daquela vida e alegria tão naturais ao povo de Nápoles.
Glyndon via passar os namorados a conversar nessa linguagem muda dos gestos tão
eloquentes em todos os idiomas, e que são hoje iguais aos que os etruscos, na
antiguidade, pintaram nos magníficos vasos do Museu Bourbonico. A luz da vida
exterior convidou a sua juventude à alegria e ao prazer; e as enfadonhas
paredes do seu quarto, o qual pouco antes era bastante vasto para conter o céu
e a terra, pareciam limitar agora uma estreita e triste prisão. Glyndon abriu a
porta e, com alegria, viu entrar o seu amigo Mervale.
– E isto é tudo o que fez? - disse Mervale,
olhando a tela desdenhosamente. E para isto fechou-se por tantas horas,
privando-se dos lindos dias de sol e das encantadoras noites de Nápoles?
– Enquanto eu estive debaixo da influência do
entusiasmo, estive desfrutando um sol mais brilhante e uma lua mais bela e
majestosa.
– Pelo que vejo, o entusiasmo já o deixou.
Bem, isto indica que voltou a recobrar a razão. E, depois de tudo, vale mais
besuntar a tela durante três dias, do que se converter num louco por toda a sua
vida. E a sua sereia?
– Cale-se! Não gosto de ouvi-lo falar dela.
Mervale aproximou a sua cadeira
da de Glyndon, assumiu uma atitude negligente, e ia começar um sério debate,
quando alguém bateu à porta e sem esperar permissão para entrar, apareceu no
quarto; era Nicot.
– Bom dia, meu caro colega, - disse o
francês. - Desejava falar-lhe. Olá! Como vejo, tem trabalhado. Assim é bom.
Sim, amigo! Um contorno atrevido..., uma grande destreza da mão. Porém, espere!
Vamos ver se a composição é boa. Não tem adotado a grande forma piramidal. Não
pensa também que nesta figura se descuidou de aproveitar a vantagem do
contraste? Já que a perna direita se dirige para diante, o braço direito
deveria estar dirigido para trás: com a breca! Aquele dedo pequeno é magnífico!
Mervale detestava Nicot, como a
todos os especuladores, utopistas e pretensos reformadores do mundo; naquele
instante, porém, teria abraçado o francês. Via, na expressiva fisionomia de
Glyndon, todo o enfado e desgosto que sofria. Depois de um estudo feito sob o
fogo do entusiasmo, ouvir falar de formas piramidais, de braços direitos e
pernas direitas, de rudimentos da arte, sem tocar absolutamente na concepção, e
ver terminar a crítica, enaltecendo o mérito do dedo mínimo!
– Oh! - disse Glyndon, aborrecido, cobrindo
com um pano o seu quadro, - já falou bastante do meu pobre trabalho. Que é o que
você vem dizer-me?
Em primeiro lugar, - respondeu
Nicot, sentando-se sem cerimônia num banquinho, - em primeiro lugar, este
senhor Zanoni - este segundo Cagliostro, - que ataca as minhas doutrinas! (sem
dúvida, ele é um espião de Capet); eu não sou vingativo, pois, como diz
Helvécio, “nossos erros nascem das nossas paixões”; eu sei pôr freio às minhas,
porém é virtude odiar por causa da humanidade; eu queria ser o denunciante e o
juiz do senhor Zanoni em Paris.
E, ao dizer isto, Nicot rangeu os
dentes, e os seus pequenos olhos despendiam um brilho infernal.
– Ele lhe deu algum novo motivo de ódio? - perguntou Glyndon.
– Sim, - respondeu Nicot, com impetuosidade.
- Sim, ouvi dizer que cortejava a moça com a qual eu pretendo casar-me.
– Você! E quem é essa moça?
– A célebre Pisani! É uma mulher divinamente
formosa, que faria minha fortuna numa república; e uma república teremos ainda
antes de findar o ano.
Mervale esfregava as mãos de
prazer, rindo-se ruidosamente. Glyndon corou de raiva e vergonha.
– Você conhece a senhorinha Pisani? -
perguntou o pintor inglês. - Falou-lhe alguma vez?
– Ainda não, - respondeu Nicot; - porém
quando concebo um projeto, levo-o a cabo sem demora. Devo voltar, em breve, a
Paris. Escreveram-me que uma mulher formosa adianta a carreira de um patriota.
O tempo dos preconceitos já passou, e começam a compreender-se as virtudes mais
sublimes. Levarei a Paris a mulher mais formosa da Europa.
– Então?! Que é isso! - exclamou Mervale,
detendo Glyndon ao vê-lo avançar para o francês com os punhos cerrados e os
olhos cintilantes.
– Senhor! - gritou Glyndon, rangendo os
dentes, - sabe de quem fala? Julgas que Viola Pisani o aceitaria!
– Não, se lhe apresentasse um partido mais
vantajoso, -disse Mervale, olhando placidamente para o teto.
– Um partido mais vantajoso? - retrucou
Nicot. - Eu, Jean Nicot, ofereço a minha mão à moça, e caso-me com ela!
Encontrará muitos que lhe façam ofertas mais liberais, porém nenhuma será tão
honrosa como a que faço. Somente eu me compadeço da triste situação em que
está, isto é, sem amigos. Por outra parte, será sempre fácil, na França,
desembaraçar-se de uma mulher quando assim acharmos conveniente. Teremos novas
leis de divórcio. Pensa que uma jovem italiana, - e, digo entre parêntesis, em
nenhum outro país do mundo, segundo parece, as donzelas são mais castas, ainda
que muitas mulheres se consolem com virtudes mais filosóficas, - pensa que uma
jovem italiana, repito, recusará a mão de um artista pelas honras de um
príncipe? Não tenho formado da Pisani melhor conceito do que você. Penso fazer
todo o possível para, em breve, ela aceitar a minha mão.
– Desejo-lhe todo o sucesso, senhor Nicot, -
disse Mervale, levantando-se e apertando-lhe a mão cordialmente.
Glyndon dirigiu a ambos um olhar
com desprezo e disse, com um sorriso amargo: - Talvez, senhor Nicot, tenha
rivais.
– Tanto melhor, - replicou o francês, com
indiferença, fazendo bater os tacões, e parecendo absorto na admiração do
tamanho dos seus grandes pés.
– Eu mesmo sou um admirador de Viola Pisani,
- tornou Glyndon.
– Não o estranho, - respondeu Nicot. - Todo
pintor deve admirá-la.
– Eu posso oferecer-lhe a minha mão, como
você pretende oferecer-lhe a sua.
– O que em mim seria sabedoria, - redarguiu o
francês - seria em si uma grande tolice. Você não saberia tirar vantagens da
especulação. Caro colega, você tem preconceitos.
– E ousa dizer que especulará com a sua
própria mulher?
– O virtuoso Gatão emprestou a sua mulher a
um amigo, e eu, que amo a virtude, não posso fazer melhor do que imitar esse
sábio. Porém, falemos seriamente, - eu não o temo como rival, você tem um
semblante bonito, e eu sou feio. Mas é irresoluto, e eu sou decisivo. Enquanto
que você perderá o tempo pronunciando frases escolhidas, eu direi simplesmente:
“Tenho boa fortuna; quer casar-se comigo?“ E assim perderá e eu ganharei, caro
colega. Adeus tornaremos a nos ver detrás dos bastidores.
E, assim falando, Nicot se
levantou e, depois de estirar os compridos braços e as pernas curtas, abriu a
boca num bocejo enorme, deixando ver todos os dentes, pela maior parte já
estragados; em seguida, com ar de desafio, enterrou o gorro na desgrenhada
cabeça, e dirigindo por cima do ombro esquerdo um olhar triunfante e malicioso
para Glyndon, saiu precipitadamente do quarto.
Mervale soltou uma estrepitosa
gargalhada, e disse:
– Veja, Glyndon, como o seu amigo Nicot
estima a sua Viola. Não há dúvida que o senhor alcançaria uma grande vitória,
arrancandoa das garras do cão mais feio que há entre os lapões e os kalmuks.
Glyndon estava ainda bastante indignado
para poder responder, quando recebeu uma nova visita: era Zanoni.
Mervale, a quem a presença e o
aspecto deste homem impuseram uma espécie de relutante deferência, que ele não
queria confessar, e muito menos deixar transluzir, saudou Glyndon, dizendo-lhe
simplesmente:
– Quando nos tornarmos a ver, falaremos mais
deste assunto. E deixou o pintor e a sua inesperada visita.
– Vejo, - disse Zanoni, descobrindo o quadro,
- que não esqueceu o conselho que eu lhe tinha dado. Coragem, jovem artista;
esta é uma excursão fora das escolas; é uma tintura cheia da ousada confiança
em si mesmo, como a tem o verdadeiro gênio. Espero que não tenha tido nem
Nicot, nem Mervale ao seu lado, quando concebeu esta imagem de verdadeira
beleza!
Reanimado por este inesperado
elogio, e sentindo-se novamente impelido para a sua arte, Glyndon respondeu
modestamente:
– O meu quadro satisfazia-me até esta manhã;
porém, depois, aborreceu-me e desvaneceu-me a minha ilusão.
– Diga antes que, não estando acostumado a um
trabalho continuo, sentiu-se fatigado com a tarefa.
– É verdade; por que negá-lo? - confessou
Glyndon. - Comecei a sentir a falta do mundo exterior. Pareceu-me que, enquanto
eu desperdiçava o meu coração e a minha juventude em visões de beleza, estava
perdendo as formosas realidades da vida. E cheguei até a invejar o alegre
pescador que passava cantando, debaixo da minha janela, e o feliz amante que ia
conversando com a escolhida de seu coração.
– E censura-se - disse Zanoni - por ter
voltado às coisas da terra; mas saiba que este regresso é natural, e que até os
mais inveterados sonhadores procuram na terra a tranquilidade e o repouso. O
gênio do homem é uma ave que não pode voar incessantemente; quando se sente o
desejo irresistível do mundo real, é mister satisfazê-lo a todo o transe. Os
que dominam mais o ideal são os que melhor desfrutam a realidade. Repare que o
verdadeiro artista, quando se encontra em sociedade, está sempre observando,
sempre sondando o coração, sempre atento às mais insignificantes, como às mais
complicadas verdades da existência, e descendo ao que os pedantes chamariam
coisas triviais e frívolas. De cada malha do tecido social, o verdadeiro
artista sabe tirar uma graça, e os átomos mais insignificantes tomam para ele
uma forma doirada quando flutuam nos raios do sol. Não sabe que, ao redor do
animálculo microscópico, brilha uma auréola, como em torno da estrela que faz
sua luminosa revolução no espaço? A verdadeira arte encontra a beleza em toda
parte: na rua, no mercado, na choupana; por onde quer que procure, acha
alimento para o enxame dos seus pensadores. Na lama da política, Dante e Milton
escolheram pérolas para engastá-las na coroa do canto. Quem lhe disse que
Rafael não desfrutou a vida exterior, levando sempre consigo a ideia interna de
beleza que atraia e enchia com a sua própria magia até as palhas que os pés do
homem tosco pisam no lodo? Assim como as feras andam pelas selvas em busca de
sua presa, cheirando-a e seguindo-a por montes e planícies, silvados e grutas,
até que, por fim, dela se apoderam, da mesma forma o gênio busca por entre o
bosque e através do deserto, que brinca na água infatigável e cheio de ardor,
com todos os sentidos despertos, com todos os nervos levados à maior tensão, os
objetos que lhe oferecem as dispersas e fugitivas imagens da matéria, de que,
por fim, se apodera a sua mão forte, para levá-los às paragens solitárias que
nenhum pé pode alcançar. Vá, procure o mundo exterior; ele é para a arte o
inesgotável manancial que dá o alimento ao mundo ideal, ao mundo interior!
– Sinto-me confortado, - respondeu Glyndon,
com serenidade. - Eu julgava que o meu cansaço fosse uma prova de minha
incapacidade! Porém, neste momento não quereria falar-lhe destes trabalhos.
Perdoe-me se passo do trabalho à recompensa. O senhor tem pronunciado
incompreensíveis profecias a cerca do meu porvir, se eu me casasse com uma
jovem, que, segundo opinam pessoas graves e sensatas, seria unicamente
obstáculo para realizar os sonhos que ambiciono. Fala baseando-se na sabedoria
proveniente da experiência, ou inspirado pela ciência que aspira à predição?
– Porventura não são aliadas umas a outra,
estas duas ciências? - retrucou Zanoni. - O homem mais acostumado ao cálculo
não é, diga-me, o que mais depressa pode resolver um novo problema na aritmética
das possibilidades da sorte?
– Vejo que está iludindo a minha pergunta.
– Não; quero apenas fazer com que compreenda
mais facilmente a minha resposta; pois eu queria levá-lo a este terreno.
Escute-me!
Zanoni fixou seriamente o seu
interlocutor, e continuou:
– Para a realização da verdade é um dos
primeiros requisitos, - pois as verdades que se adaptam ao objeto hão de ser
bem conhecidas. Por isso, o guerreiro reduz a sorte de uma batalha a
combinações quase inteiramente matemáticas. Pode predizer o resultado, se conta
estritamente com os elementos que se vê obrigado a empregar. Com tantas e
tantas perdas, poderá passar tal ponte; em tanto tempo. poderá apoderar-se
daquela fortaleza. Ainda com mais exatidão do que o guerreiro, pois depende
menos das causas materiais do que das ideias de que dispõe, pode o homem que
possui uma ciência mais pura ou uma arte mais divina, se chega a perceber as
verdades que estão nele e ao redor dele, predizer o que poderá levar a cabo e o
que está condenado a ver fracassar. Porém, esta percepção das verdades é
interrompida por muitas causas, - como a vaidade, as paixões, o medo, a
indolência nele mesmo, a ignorância dos meios fora dele, que deve empregar para
conseguir o que se tem proposto. Pode calcular mal as suas próprias forças;
pode faltar-lhe o mapa do terreno que quer invadir. Somente quando a mente do
homem se encontra em certo estado especial, é capaz de perceber a verdade; e
este estado é uma profunda serenidade. A sua mente, meu amigo, afana-se
febrilmente, levada por um desejo de verdade; desejaria, talvez, que eu lhe
apresentasse sem que para isso estivesse preparado, os maiores segredos que
existem na Natureza. Porém, a verdade não pode ser vislumbrada por uma mente
que não está preparada para isso, da mesma forma como é impossível que o sol
nasça à meia-noite. A mente que quer descobrir a verdade, sem estar devidamente
habilitada, recebe a verdade somente para corrompê-la, como bem exprimem as
palavras de um homem que andou perto do segredo da sublime Goecia (ou a magia
que existe na Natureza, como a eletricidade na nuvem):
– Quem deita água num poço lodoso, não faz
mais do que turvar a água.
– Aonde quer chegar? - objetou Glyndon.
– Ao seguinte: Que o meu caro jovem possui
faculdades que podem dar-lhe poder extraordinário, pondo- o na conta daqueles
encantadores que, maiores do que os magos deixam detrás de si uma influência duradoura,
a qual é adorada onde quer que se compreenda a beleza e onde a alma seja
sensível para tornar-se consciente de um mundo mais elevado do que este, em que
a matéria luta por uma existência rude e incompleta. Porém, para tirar proveito
destas faculdades, não necessito ser profeta para dizer-lhe que é mistér que
aprenda a concentrar todos os seus desejos em grandes objetos. O coração deve
permanecer tranquilo, para que a mente possa ser ativa. Até aqui não tem feito
mais do que vagar de um projeto a outro. O que o lastro é para o navio, a fé e
o amor são para o espírito. Com todo o seu coração, e perseverança, com a ideia
concentrada em um só objeto, a sua mente e suas aspirações se tornarão
igualmente enérgicas e estáveis. Viola é ainda muito jovem; o senhor não
percebe o grande caráter que as vicissitudes da vida nela desenvolveram.
Perdoe-me se lhe digo que a alma dessa moça, mais pura e mais elevada do que a
sua, o ajudará a subir também às alturas sublimes, como um hino sagrado eleva
ao céu as almas sensíveis. A sua índole aspira à harmonia, à música que, como
ensinavam tão sabiamente os pitagóricos, transporta a alma a esferas superiores
e acalma-a ao mesmo tempo. Eu ofereço-lhe esta música em seu amor.
– Porém, estarei eu certo de que Viola me
ama?
– Tem razão, Glyndon; ela não o ama agora; o
seu afeto pertence todo a um outro. Eu, porém, posso transferir para si o amor
que ela sente presentemente por mim; sim, posso transferi-lo como o imã
transmite a sua atração ao aço; se eu puder conseguir que ela o considere como
o ideal dos seus sonhos.
– E semelhante poder pode ser facultado a um
homem?
– Eu lha ofereço, se o seu amor é verdadeiro,
se a sua fé na virtude e em si mesmo é profunda e leal; se, porém, não tem tal
amor e fé julga que eu a desencantaria da verdade para fazê-la adorar uma
mentira?
– Porém, - retrucou Glyndon, - se Viola é
tudo o que acaba de dizer, e se ela o ama, como é que renuncia a um tesouro tão
precioso?
Oh! Parvo e néscio coração
humano! - exclamou Zanoni, com estranha veemência. - É possível que tenhas uma
ideia tão pobre do amor, que não saibas que o homem pode sacrificar-lhe tudo,
até o seu próprio amor, para garantir a felicidade da pessoa que ama?...
Escute-me!
E, ao dizer isto, o semblante de
Zanoni empalideceu.
– Escute-me! Eu lhe conto tudo isto, porque a
amo, e porque temo que comigo não seria tão ditosa como com o artista Glyndon.
Por que? Não me pergunte, pois não lho quero dizer. Basta já! É tempo de que eu
saiba a sua resposta; é impossível adiá-la mais. Antes da noite do terceiro
dia, a contar de hoje, não terá mais direito para escolher!
– Mas, - disse Glyndon, ainda duvidando e
alimentando certas suspeitas, - por que tanta pressa?
– Jovem, o senhor não é digno dela, se me faz
semelhantes perguntas. Tudo o que posso dizer-lhe, deveria já saber por si
mesmo. Aquele raptor, aquele homem de vontade poderosa, aquele filho do velho
Visconti - e nisto não se parece consigo - é firme, resoluto e enérgico até em
seus crimes, - ele nunca retrocede quando persegue um objeto que quer alcançar.
Só uma paixão domina o seu desejo voluptuoso, - é a sua avareza. No dia
seguinte ao da sua tentativa de raptar Viola, seu tio, o Cardeal, - de quem ele
espera herdar muitas terras e muito ouro, - chamou-o e proibiu-lhe, sob pena de
deserdá-lo, o prosseguimento de seus ignóbeis desígnios contra a jovem, a qual
o Cardeal protegera e amara desde a infância. Esta é a causa que o tem detido
em seus iníquos projetos. Enquanto nós estamos conversando, a causa vai
desaparecendo. Antes do meio dia, o Cardeal terá deixado de existir! Neste
mesmo instante, o seu amigo, Jean Nicot, está falando com o Príncipe de ***.
– Ele? E por que?
– Para saber que dote terá Viola Pisani na
manhã em que deixar o seu palácio.
– E como sabe tudo isto?
– Insensato! Digo-lhe outra vez: porque um
amante vigia de dia e de noite, quando algum perigo ameaça o objeto de seu
amor.
– E foi o senhor quem informou o Cardeal?
– Sim, e o que eu fiz, podia também o senhor
havê-lo feito. Vamos, qual é a resposta que me dá?
– Sabê-lo-á dentro de três dias.
– Seja assim; deixa a sua felicidade para a
última hora, pobre homem inconsciente. No terceiro dia, a contar de hoje, virei
saber a sua resposta
– E onde nos veremos?
– Antes da meia-noite, no sítio onde menos o
espera. Não poderá evitar esse encontro, ainda que tente fazê-lo.
– Ainda um instante! - disse o artista. -
Disse-me que sou desconfiado, irresoluto. Não tenho motivos para sê-lo? Posso
eu ceder, sem resistência, à estranha fascinação que exerce sobre a minha
mente? Que interesse pode levá-lo a impor a um desconhecido, como sou eu para
ti, a ação mais grave da vida do homem? Suponha que qualquer outro homem, que
estivesse em seu perfeito juízo, não quisesse um prazo para deliberar - e
perguntasse a si mesmo: “Por que é que este estrangeiro se ocupa tanto de
mim?”.
– E sem embargo, - respondeu Zanoni, - se eu
lhe dissesse que posso iniciá-lo nos segredos dessa magia que a filosofia de
todo o mundo tem por uma quimera, ou por uma impostura; se lhe prometesse
ensinar a maneira de dominar os seres do ar e do oceano, de poder acumular
riquezas com tanta facilidade como uma criança junta as pedrinhas e os grãos da
areia na praia, pôr em suas mãos a essência das ervas que prolongam a vida de
século em século, o mistério dessa atração por meio da qual se evitam os
perigos, se desarma a violência e se subjuga o homem, como quando a serpente
encanta a “avezinha”; se eu lhe dissesse que possuo todo este poder e que posso
comunicar-lhe, então me escutaria e me obedeceria sem dúvida!
– E verdade; e posso explicar-me unicamente
pelas imperfeitas recordações da minha infância, por tradições que existem em
casa de ***.
– De seu avô, o qual, querendo auxiliar o
restabelecimento da ciência, buscou os segredos de Apolônio e de Paracelso.
– Como! - exclamou Glyndon, pasmado. -
Conhece os anais de uma linhagem tão obscura?
– Para o homem que aspira ao saber, -
respondeu Zanoni, - não deve ser desconhecido o nome do mais humilde estudante
da ciência. Pergunta-me por que me interesso tanto pela sua sorte? Por uma
razão que ainda não lhe expliquei. Existe uma irmandade, cujas leis e mistérios
são ignorados pelos homens mais estudiosos. Estas leis impõem a todos os seus
filiados o dever de advertir, ajudar e guiar até os mais remotos descendentes
dos que se têm esforçado, embora em vão, como seu avô, por conhecer os
mistérios da Ordem. Nós temos a obrigação de aconselhar-lhes tudo o que pode
fazer sua felicidade; e mais ainda: se o exigem de nós, havemos de aceitá-los
por discípulos. Eu sou um membro desta sociedade, cuja memória se perde em
tempos antiquíssimos; e é por isso que, desde que o encontrei pela primeira
vez, me senti ligado a ti, por esses laços de fraternidade; esta é a causa por
que o tenho atraído a mim, talvez inconscientemente filho da nossa Irmandade!
– Se é assim, ordeno-lhe, em nome das leis a
que obedece, que me receba por discípulo.
– Que é o que quer? - disse Zanoni, com
arrebatamento.
– Saiba primeiro as condições. Quem quer ser
iniciado, deve, já como neófito, ser livre de todo afeto ou desejo que o ligue
ao mundo. Não lhe é permitido amar mulher alguma; deve estar livre de avareza e
de ambição, livre de toda a ilusão, até da que inspira a arte ou a esperança de
um nome ilustre. O primeiro sacrifício que teria a fazer seria renunciar a
Viola. E por que? Por pertencer a uma ordem em que podem entrar apenas homens
de grande coragem, pois hão de passar por provas a que resistem, somente as
naturezas privilegiadas. O senhor não está apto para a ciência que me fez a mim
e a outros o que somos; tem ainda muito medo!
– Medo! - exclamou Glyndon, corando e
erguendo altivamente a cabeça.
– Medo, sim, e da pior espécie: o medo do que
dirão os outros; o medo dos Nicots e dos Mervales; medo de seus próprios
impulsos quando são generosíssimos; medo dos seus próprios poderes, quando o
seu gênio lhe inspira coisas arrojadas; medo de que a virtude não seja eterna;
medo de que Deus não vive no céu para velar sobre a terra; medo, sim, medo dos
homens de coração pequeno; e este medo não conhece nunca os grandes homens.
E, ao dizer estas palavras,
Zanoni desapareceu, deixando o artista humilhado e estupefato, porém não
convencido.
Glyndon permaneceu só com seus
pensamentos, até que o som do relógio o fez voltar a si; lembrou-se, então, da
predição de Zanoni sobre a morte do Cardeal; - e sentindo-se impelido por um
Intenso desejo de saber a verdade, saiu apressadamente para a rua e dirigiu-se
ao palácio dessa alta personagem.
Ao chegar ali, soube que Sua
Eminência havia expirado cinco minutos antes do meio-dia, e que a sua
enfermidade havia durado apenas uma hora. A visita de Zanoni tinha sido mais
prolongada do que a doença do Cardeal. Aterrorizado e perplexo, abandonou
Glyndon o palácio, e, enquanto passava pela Chiaja, viu - Jean Nicot que saia
do palácio do Principe de ***.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanon
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