sexta-feira, 25 de maio de 2018

Zanoni XV





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo V

 Rivais pela mesma Mulher

“I and my fellows Are ministers of Fate”. The Tempest

“Eu e os meus companheiros, somos ministros do Destino”. A Tempestade

No dia seguinte, Glyndon encaminhou-se para o palácio de Zanoni. A imaginação do jovem, naturalmente impressionável, estava singularmente excitada pelo pouco que tinha visto e ouvido a respeito deste estranho homem; um encanto que o inglês não podia explicar nem dominar, impelia-o para o estrangeiro. O Poder de Zanoni parecia ser misterioso e grande; as suas maneiras, conquanto ordinariamente fossem amáveis e benévolas, tornavamse algumas vezes frias e insociáveis. Porque aquele homem, por uma parte, repelia a amizade de Glyndon, e por outra parte, o salvar de um perigo? Como havia descoberto Zanoni alguns inimigos que aquele jovem ignorava ter? Este fato, avivando duplamente o seu interesse e despertando a sua gratidão, fez com que Glyndon se resolvesse a tentar um novo esforço para captar a amizade do áspero botânico.
Glyndon foi introduzido numa vasta sala, onde Zanoni, em poucos minutos, veio recebê-lo.
Venho agradecer-lhe pelo seu aviso da noite passada, - disse o jovem, - e pedir-lhe o favor de informar-me em que bairro da cidade é que me ameaça o perigo de que falou.
Um jovem insinuante, - respondeu Zanoni, com um sorriso, e falando inglês - e conhece tão pouco o Sul para ignorar que os homens assim têm sempre rivais?
Fala seriamente? - perguntou Glyndon, corando.
Muito seriamente, - respondeu Zanoni. - ama Viola Pisani, e tem como rival um dos mais poderosos e implacáveis príncipes napolitanos. O perigo que o ameaça é, realmente, grande.
Mas, perdoe-me: como pôde descobri-lo?
Que lhe importa como o descobri? - replicou Zanoni, com altivez; - de resto, para mim é indiferente que despreze ou não a minha advertência.
Bem; se não posso perguntar-lhe, seja assim; porém, ao menos, aconselhe-me o que devo fazer. - Seguirá o meu conselho?- Por que não?
Porque é naturalmente valente, ama as emoções e os mistérios, e gosta de representar o papel de herói de um romance. Se eu o aconselhar que deixe Nápoles, fa-lo-á, durante todo o tempo que esta cidade lhe ofereça um inimigo com quem não pode medir forças, ou uma mulher amada que quer conquistar?
Tem razão, - respondeu o jovem inglês, com energia. Não! E suponho que não me censurará por esta resolução.
Porém, não lhe resta outro caminho. Ama deveras a bela Pisani? Se assim é, case-se com ela e leve-a para o seu país natal.
Não, - respondeu Glyndon, embaraçado; - Viola não é da minha classe; além disso, a sua profissão... Enfim, eu me sinto escravizado pela sua beleza, mas não posso casar-me com ela.
Zanoni franziu as sobrancelhas e retrucou:
Então o seu amor não passa de uma paixão egoísta e indigna. Jovem, o destino é menos inexorável do que parece. Os recursos do grande Senhor do Universo não são tão escassos nem tão duros, que ele negue aos homens o privilégio divino do livre arbítrio; todos nós podemos traçar o nosso próprio caminho, e Deus pode fazer com que até as nossas contradições se harmonizem com Seus fins solenes. Apresentar-se-lhe-á uma ocasião de escolher. Um amor nobre e generoso pode produzir sua felicidade e salvá-lo; uma paixão frenética e egoísta não faria mais do que levá-lo à miséria e à desgraça.
Pretende, então, ler o futuro?- Eu disse tudo o que pretendia dizer.
Vejo que é um grande moralista, senhor Zanoni, - disse Glyndon, sorrindo; - mas, diga-me: é tão indiferente à juventude e à beleza, que possa resistir estoicamente aos seus afagos?
Se fosse necessário ajustar a prática ao preceito, - respondeu Zanoni, com um sorriso amargo, - teríamos bem poucos conselheiros. A conduta de um indivíduo pode afetar somente um pequeno círculo fora dele; e o bem ou o mal permanente que faz aos demais, está, mais do que em outra coisa, nos sentimentos que difunde. As suas ações são limitadas e momentâneas; ao passo que seus sentimentos podem atravessar o universo e inspirar as gerações até ao fim do mundo. Todas as nossas virtudes e todas as nossas leis foram tiradas de livros e de máximas, isto é, de sentimentos, e não de ações. Em sua conduta, Juliano teve as virtudes de um cristão e Constantino os vícios de alguns pagãos. Os sentimentos de Juliano fizeram voltar milhares de pessoas ao paganismo; os sentimentos de Constantino ajudaram, debaixo da vontade do Céu, a converter ao cristianismo as nações da terra. Em sua conduta, o mais humilde pescador daquela praia, que crê nos milagres de São Januário, pode ser um homem melhor do que Lutero; não obstante, Lutero produziu urna revolução nas idéias da Europa moderna, devido aos seus pensamentos e sentimentos. Nossas opiniões, jovem inglês formam em nós a parte angélica, e nossas ações a parte terrestre.
Para ser italiano, tem refletido muito profundamente.
Quem lhe disse que eu sou italiano?
Então não é? E, sem embargo, quando o ouço falar o meu próprio idioma natal como poderia falá-lo só um inglês quase...
Ba! - interrompeu Zanoni, com certa impaciência.E depois de alguns momentos de silêncio, prosseguiu com afabilidade:
Senhor Glyndon, renuncia a Viola Pisani? Quer alguns dias para refletir sobre o que lhe disse?
Renunciar a ela? Nunca!
Então vai se casar com ela?
Impossível!
Seja, pois; será ela quem renunciará. Digo-lhe outra vez que têm rivais.
Sim, o Príncipe de ***; porém, não o temo.
Tem também outro, muito mais terrível.
E quem é?
Eu mesmo.
Glyndon empalideceu e levantou-se da cadeira.
O senhor Zanoni! E atreve a dizer?
Atrever-me! Ah! Há ocasiões em que eu desejaria ter medo.
Estas palavras altivas foram ditas sem arrogância; o tom da voz de Zanoni era triste e melancólico. Glyndon, apesar de sentir o coração cheio de ira, permaneceu, por alguns instantes, confuso e como que aterrorizado. Entretanto, como possuísse um valente coração, recobrou prontamente a serenidade.
Estas palavras altivas foram ditas sem arrogância; o tom da voz de Zanoni era triste e melancólico. Glyndon, apesar de sentir o coração cheio de ira, permaneceu, por alguns instantes, confuso e como que aterrorizado. Entretanto, como possuísse um valente coração, recobrou prontamente a serenidade.
Senhor, - disse ele, calmamente, - não me deixo iludir com essas frases solenes e com essas coisas místicas que a si se atribui. É possível que tenha poderes que eu não compreenda, nem poderia imitar, ou talvez não seja mais que um astuto impostor...
Bem, continue!
Quero dizer, pois, - prosseguiu Glyndon, com resolução, ainda que um tanto desconcertado - quero fazer-lhe compreender que não me deixo convencer ou obrigar por um estrangeiro, a casar-me com Viola Pisani, e que, não obstante, não me sinto inclinado a cedê-la tranqüilamente a outrem.
Zanoni dirigiu um olhar sério ao jovem, cujos olhos brilhantes e faces afogueadas manifestavam claramente que estava resolvido a sustentar a palavra.
Tão animado se sente? - perguntou-lhe a estranha personagem. - Está bem. Porém, aceite o meu aviso: aguarde ainda nove dias, e então me dirá se quer ou não se casar com a criatura mais formosa e mais pura que encontrou neste mundo.
Mas, se você a ama por que... por que?...
Porque desejo que ela se case com outro? Porque quero desviá-la de mim! Escute-me. Esta menina, embora seja humilde e de modesta educação, possui todos os dons que podem elevá-la às mais altas qualidades e às mais sublimes virtudes. Ela pode ser tudo quanto seja possível para o homem a quem ame, tudo quanto o homem pode desejar numa mulher. A sua alma, desenvolvida pelo afeto, elevará a sua; terá notável influência sobre a sua fortuna, engrandecerá o seu destino, chegará a ser um grande homem e feliz. Se, ao contrário, Viola for minha, não sei o que será dela; mas sei que existe uma prova pela qual poucos podem passar, uma prova à qual, até agora, não sobreviveu mulher alguma.
Enquanto Zanoni pronunciava estas palavras, a sua face tornou-se pálida, e havia em sua voz algo que gelou o sangue do jovem que o escutava.
Qual é, pois, este mistério que vos rodeia? - exclamou Glyndon, incapaz de reprimir sua emoção. - Você é efetivamente diferente dos demais homens? Tem passado além do limite da ciência oficial? E, como alguns asseveram, um feiticeiro, ou somente um...?
Silêncio! - interrompeu Zanoni afavelmente e com um sorriso que expressava uma singular e melancólica doçura; - creio que não adquiriu o direito de fazer-me estas perguntas... Embora haja na Itália ainda uma Inquisição, o seu poder é tão débil como o de uma folha que o primeiro sopro de vento leva quem sabe onde. Os dias de tortura e de perseguição já se foram; e o homem pode viver como lhe agrada e falar o que quiser, sem que deva temer a fogueira e a roda. E visto que posso desafiar a perseguição, perdoe se não cedo à curiosidade.
Glyndon levantou-se. Apesar do seu amor por Viola, e apesar do temor natural que lhe infundira um rival como Zanoni, o jovem se sentia irresistivelmente atraído para o homem do qual só tinha motivos para suspeitar e temer. Ele estendeu a mão a Zanoni, dizendo-lhe:
Bem; se tivermos que ser rivais, as espadas decidirão a nossa sorte; mas até lá eu desejaria que fôssemos amigos.
Amigos! Não sabe o que está pedindo.
Outra vez enigmas?!
Enigmas! - exclamou Zanoni, com exaltação. - Ah! Se sente capaz de resolvê-los? Só quando você puder, poderei dar-lhe a minha mão direita e chamar-lhe meu amigo.
Eu seria capaz de tudo, para alcançar a sabedoria super-humana, - afirmou Glyndon. E o seu semblante brilhou com o fogo de um estranho e intenso entusiasmo.
As sementes do antepassado vivem no jovem, - murmurou Zanoni; - ele talvez possa... porém... E, tirando-se da sua meditação, disse em voz alta:
Vá, Sr. Glyndon; tornaremos a ver-nos; mas eu não lhe pedirei a resposta senão quando se aproximar- a hora da decisão.

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni