quinta-feira, 10 de maio de 2018

Zanoni XIII







Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo III

 Para Esquivar-se da Paixão

“When most I wink, then do mine eyes best see, For all the day they view things undespected; But when I sleep, in dreams they look on thee, And, darkly bright, are bright la dark directed”. Shakespeare.

“Quando fecho os meus olhos o mais possível, vêem melhor; porque todo o dia enxergam coisas que não me prendem a atenção, porém, quando durmo, avistam em sonhos, e, brilhando no escuro, são como luzes dirigidas através da escuridão”.

Zanoni acompanhou a jovem à sua casa. Gianetta foi-se às suas ocupações, e os dois ficaram a sós.
Estavam naquele quarto onde tão frequentemente, em dias outrora mais felizes, ouviam-se as estranhas melodias de Pisani; e agora, que a jovem via ali ao seu lado esse misterioso, incompreensível, belo e valente estrangeiro, no mesmo lugar onde ela se sentara tantas vezes aos pés de seu pai um estranho estremecimento percorreu todo o seu corpo; e, como a sua fantasia costumava personificar suas ideias, lhe pareceu que aquela música espiritual havia tomado forma e vida, e que esta estava diante dela, na sublime imagem que adotara. Viola sentia-se tomada de uma espécie de torpor, de uma semi-inconsciência. Havia tirado a touca e o véu; os seus cabelos, um tanto quanto desordenados, caiam-lhe sobre o colo ebúrneo, descoberto em parte, pelo decote do vestido lágrimas de agradecimento brilhavam-lhe nos formosos olhos negros e as suas faces estavam coradas pela emoção: nunca o deus da luz e da música, no meio dos vales da Arcádia, soube tornar enamorada uma virgem ou uma ninfa mais formosa, quando esse ser imortal adotara uma forma humana.
Zanoni contemplou a artista, com um olhar em que a admiração estava mesclada de compaixão. Murmurou algumas palavras entre dentes, e, depois, dirigindo-se à jovem, disse-lhe:
Viola, eu a salvei de um grande perigo; não só da desonra, como talvez da morte. O Príncipe de ***, protegido por um déspota e por uma administração venal, é um homem que está acima da lei. Ele é capaz de todos os crimes, porém, no meio de suas paixões, tem a prudência que lhe sugere a sua ambição; se, caindo em suas mãos, você não quiser se conformar com a sua desonra, nunca mais voltaria a ver a luz do mundo, para descobrir sua infâmia, e esta ficaria, pois, ignorada. O poder não tem coração para o arrependimento, mas possui uma mão que pode assassinar. Eu a salvei, Viola. 
Perguntar-me-ia talvez, por quê?

Zanoni calou-se por um instante, e, depois, sorrindo tristemente, prosseguiu:

Suponho que não me fará a injustiça de pensar que é tão egoísta o seu libertador, como aquele que a injuriou. Órfã, eu não lhe falo a linguagem de seus galanteadores; eu tenho compaixão de ti, e não sou insensível ao afeto. Por que corar? Por que tremer a esta palavra? Neste momento, enquanto estou falando, leio no seu coração, e não vejo nele nada que possa causar-lhe vergonha. Não digo que me ama; felizmente, a imaginação pode interessar-se antes que o coração. Mas foi o meu destino fascinar os seus olhos e impressionar a sua imaginação. Se for neste momento, seu hóspede, não é senão para adverti-la contra o que lhe traria só aflição, como já outrora lhe disse que se dispusesse para sofrer grandes pesares. Glyndon, o jovem inglês, a ama muito, talvez mais do que eu poderia amá-la; e se é verdade que agora não é digno de ti sê-lo-á quando a conhecer melhor. Ele pode ser seu esposo, e pode levá-lo à sua pátria, terra livre e feliz, o país natal de sua mãe. Esquece-me; aprenda a corresponder ao amor de Glyndon e a merecê-lo, pois, repito-o, com ele será respeitada e ditosa.
Viola escutava com silenciosa atenção, com emoção inexprimível, e com as faces inflamadas, esta estranha recomendação, e quando Zanoni concluiu, a jovem ocultou o rosto entre as mãos e pôs-se a chorar; e, embora muitas das palavras desse estrangeiro fossem pronunciadas com o fim de humilhá-la ou irritá-la, produzir indignação ou excitar pejo, não foram estes os sentimentos que manifestaram suas lágrimas e agitaram o seu coração. Neste momento, a mulher se tinha convertido em menina; e assim como uma menina, com todo o seu forte, porém inocente desejo de ser amada, chora de natural tristeza ao ver o seu afeto não correspondido, - assim, sem ressentimento e sem sentir-se envergonhada, chorou Viola.
Zanoni contemplava aquela linda cabeça sacudida pelos soluços, e, depois de uma dolorosa pausa, aproximou-se mais e disse-lhe, com voz carinhosa e com um leve sorriso:
Lembre-se, Viola, de quando lhe disse que devia lutar pela luz, apontando-lhe, como exemplo, aquela frondosa árvore?

Eu não disse que imitasse a mariposa que, pensando voar às estrelas, cai queimada pela chama da lâmpada. Venha cá, quero falar-lhe. Este inglês...
Viola deu um passo para trás, redobrando o seu pranto.
Este inglês tem, com pequena diferença, a sua idade, e a sua posição não é muito mais elevada do que o sua. Pode participar dos seus pensamentos na vida, - e poderá descansar depois, a seu lado, na mesma tumba! E eu... Porém, este aspecto do futuro não vem agora ao caso. Consulte o seu coração, e achará que antes que a minha imagem viesse interpor-se em seu caminho, havia brotado no seu íntimo um puro e sereno afeto por esse jovem, que é seu igual, e que esse sentimento ia converter-se em amor. Nunca representou em sua imaginação um lar em que esse jovem fosse seu esposo?
Nunca! - respondeu Viola, com repentina energia; -nunca pensei no que diz, mas até sinto que o destino não me reserva tal coisa.E, erguendo subitamente a cabeça, fixou seus olhos em Zanoni.
Oh! Quem quer que você seja que quer ler em minha alma e penetrar no meu porvir, não equivoque sobre o sentimento que... que...
Viola titubeou um instante, e, em seguida, baixando a cabeça, acrescentou:
Que reduziu, como por fascinação, os meus pensamentos a um só - você. Não pense que eu pudesse alimentar um amor não procurado e não correspondido. Estrangeiro, o que sinto por você, não é amor. Por que deveria eu amá-lo? Nunca me falou senão para advertir e admoestar-me, e agora para magoar- me!
Aqui, Viola calou-se, sentindo faltar-lhe a voz; as lágrimas tremiam em suas pálpebras; a jovem enxugou-as e prosseguiu:
Não, não é amor o que sinto... se o amor é tal como mo têm pintado, tal como tenho lido que é, e tal como tenho procurado imitá-lo no teatro. O que sinto é uma espécie de afeto respeitoso e cheio de temor; parece-me que é uma atração sobrenatural que me impele para sua pessoa, associando-a com imagens que me encantam e me assustam ao mesmo tempo. Julga que, se fosse amor, eu poderia agora lhe falar assim? - disse levantando de repente os seus olhos para buscar o dele, - que os meus olhos se atreveriam a buscar e encontrar os seus? Estrangeiro, às vezes só almejo vê-lo e ouvi-lo! Não me fale dos demais. Advirta-me, censure-me, torture o meu coração, rejeite a gratidão que minha alma lhe oferece, se assim o entender. Porém, não se apresente sempre diante de mim como um presságio de tristeza, e de desgraça. Algumas vezes, em meus sonhos, vi-o debaixo de uma forma muito diferente; em uma forma cheia de glória e de luz; e em seus olhos radiantes lia uma alegria celestial que não vejo agora. Estrangeiro, você me salvou, e eu vo-lo agradeço de coração, e o bendigo! Rejeita também esta homenagem?
Ao dizer isso, Viola cruzou os braços humildemente sobre o peito, e inclinou-se profundamente diante dele.
Este ato de humildade não era servil nem indigno de uma mulher; não era a humildade de uma apaixonada para com o seu amante, nem a de uma escrava para com o seu senhor: - era o respeito de uma criança para com o seu protetor, a humildade de neófita para com o seu sacerdote.
O olhar de Zanoni era triste e pensativo. Os seus olhos fixaram-se na jovem com uma estranha expressão de bondade, de tristeza e de ternura; sem embargo, os seus lábios revelaram certa austeridade, e a sua voz era fria, quando respondeu:

Sabe o que pede, Viola? Sabe o perigo que corre; que corremos, talvez, ambos? Sabe que a minha vida, separada da vida turbulenta da multidão humana, está reduzida a adorar o Belo, e que desta adoração procuro banir aquilo que o Belo inspira nos demais? Evito sempre, como uma calamidade, o que parece sei a felicidade maior dos homens, - o amor das filhas da terra. Agora posso adverti-la e preservá-la de muitos perigos; teria eu o mesmo poder se pretender algo mais de ti? Não me compreende, porém, o que lhe digo ainda, será mais fácil de compreender-se. Quero que apague a minha imagem do seu coração e que não pense mais em mim, a não ser como num homem que, como diz o seu Futuro, deve evitar. Se aceitar as homenagens de Glyndon, ele a amará até que a tumba se cerre sobre ambos. Eu também - acrescentou com emoção - eu também poderia amá-la!
Você! - exclamou Viola, com a veemência de um repentino impulso de alegria e de prazer que não pôde reprimir; porém, um momento depois, a jovem teria dado todo o mundo se pudesse retirar essa exclamação.
Sim, Viola, eu poderia amá-la; porém, quantos sofrimentos e quantas mudanças trariam este amor! A flor comunica a sua fragrância à rocha sobre cujo coração cresce; em pouco tempo, a flor morre, porém a rocha subsiste, - desafiando a neve e a luz do sol no seu cume. Não se precipite, medite bem. O perigo ainda a rodeia. Por alguns dias, você se verá livre do seu cruel perseguidor; porém, em breve, virá a hora que só a fuga poderá salvá-la. Se o inglês a ama de um modo digno, a sua honra lhe será tão cara como a sua própria; se não existem ainda outras terras onde o amor é mais verdadeiro e onde a virtude está menos exposta à cobiça e à violência. Adeus! Do meu próprio destino e do meu futuro não posso prever senão nuvens e sombras. Entretanto, sei que tornaremos a ver-nos; porém, compreenda antes, que há terrenos mais suaves e mais vivificantes, doce flor, do que a rocha a que me referi.
Ao dizer isto, dirigiu-se Zanoni para onde estava a discreta Gianetta, e tocando-lhe suavemente no braço, disse, com o alegre acento de um cavalheiro jocoso: - O senhor Glyndon galanteia a sua ama, e pode vir a ser seu esposo. Eu sei que ama muito a senhorita. Desengane-a, se manifestar algum capricho por mim; pois eu sou qual ave erradia que não pára, que não tem pouso certo. E colocando uma bolsinha com dinheiro nas mãos de Gianetta, deixou a casa da artista.

(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni