sexta-feira, 18 de maio de 2018

Zanoni XIV







Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo IV

 Envolto em Mistério


“Les Intelligences Célestes se font voir, et se communiquent plus volontiers, dans le silence et dans la tranquillité de la solitude.On aura donc une petite chambre ou un cabinet secret, etc”.Les Clavicules de Rabbi Salomon, chap. 3; traduites exactement du texte Hebreu, par M. Pierre Morissoneau.

As Inteligências Celestes se manifestam e se comunicam de preferência no silêncio e na tranquilidade da solidão.É necessário, pois, um pequeno quarto ou um gabinete secreto, etc”.



O palácio que habitava Zanoni estava situado num dos bairros menos freqüentados da cidade. Ainda hoje podem se ver as suas ruínas, monumentos de esplendor pertencente a uma época de cavalheirismo, desterrado desde muito tempo de Nápoles, junto com as altivas raças normanda e espanhola.
Quando Zanoni entrou em seus aposentos particulares, dois hindus, vestidos com traje do seu pai, receberam-no à porta, com as graves saudações orientais. Estes homens haviam vindo com Zanoni de terras longínquas, onde, segundo diziam os boatos, tinha vivido muitos anos. Mas estes hindus estavam impossibilitados de poder satisfazer a curiosidade que despertavam e justificar alguma suspeita, porque não falavam outro idioma além da sua língua materna. Além destes dois, a régia comitiva de Zanoni era composta de servidores, escolhidos dentre a gente de Nápoles, os quais a sua esplendida generosidade, unida ao caráter imperioso, convertia em submissos escravos que o obedeciam fielmente. Nem ao interior de sua casa, nem em seus costumes, o quanto podiam ser observados, não havia nada que pudesse justificar os boatos que a respeito de Zanoni circulam pela cidade. Não era servido, como disseram outrora, de Alberto Magno e do grande Leonardo da Vinci, por formas aéreas; e nenhuma imagem de bronze, invenção de mecanismo mágico, lhe comunicava as influências das estrelas. Também não se via em seus quartos nem o crisol, nem os metais, nem aparelhos de alquimista, dos quais pudesse deduzir-se a sua riqueza; nem parecia ocupar-se com esses sérios estudos que podiam comunicar a sua conversação às noções abstratas e o profundo saber que às vezes manifestava.

Em seus momentos de solidão, não consultava nunca seus livros; e, se em outro tempo tirava deles os vastos conhecimentos que possuía, agora só estudava na imensa página da Natureza; a sua ampla e admirável memória supria o demais. Contudo, havia uma exceção em todos estes hábitos e ocupações comuns, a qual, segundo a autoridade cujo nome e cujas palavras citamos no princípio deste capítulo, indicaria o cultor das ciências ocultas.
Fosse em Roma, ou em Nápoles, ou em qualquer parte onde residisse, Zanoni escolhia um quarto separado do resto da casa, e fechava-o com um cadeado, pouco maior do que o selo de um anel, e que, não obstante, bastava para burlar os mais engenhosos instrumentos de serralheiro; como sucedeu, numa ocasião, a um dos seus criados, que, estimulado pela curiosidade, havia tentado, mas em vão, saber o que se encerrava no dito quarto; esse homem havia escolhido o momento mais favorável para que a tentativa ficasse ignorada e secreta, numa hora da noite, em que não havia viva alma ao seu redor, e quando Zanoni estava ausente. O caso, porém, é que a sua superstição ou a sua consciência, lhe advertiu o motivo pelo qual, no dia seguinte, o mordomo calmamente o despediu. O criado, para compensar-se desta desgraça, divulgou a sua história, acrescentando mil divertidas exagerações. Declarava que, ao aproximar-se da porta, se viu repelido por mãos invisíveis, e que apenas tocou o cadeado, caiu ao chão, como ferido de paralisia. Um cirurgião que ouvira esta história observou com desgosto dos crédulos admiradores de milagres, que talvez Zanoni empregava habilmente a eletricidade. Fosse como fosse, naquele quarto, hermeticamente fechado, não entrava ninguém mais que Zanoni.
A solene voz do Tempo, provinda da igreja vizinha, veio tirar de sua profunda e tranqüila meditação, o senhor do palácio, meditação que mais parecia um êxtase.
É mais um grão, escapado do relógio de areia, - murmurou o estrangeiro, - e, sem embargo, o tempo, ser luminoso, por que desces da tua esfera? Por que abandonas a tua eterna, radiante e serena mansão, inacessível às paixões, e te transportas à obscuridade do negro sepulcro? Quanto tempo habitaste contente em tua majestosa solidão, sabendo muito bem que o nosso afeto pelas coisas que morrem não nos traz mais que tristeza?
Enquanto Zanoni murmurava estas palavras, uma das primeiras aves matutinas que saúdam a vinda da aurora, começou a gorjear alegremente entre as laranjeiras do jardim que haviam debaixo da janela do estrangeiro. De repente, outro canto respondeu ao primeiro; era a companheira da primeira ave, despertada pelo gorjeio desta, que lhe enviava a sua doce resposta. Zanoni pôs-se a escutar, e não ouviu a voz do espírito a quem perguntara, mas, em vez dele, respondeu-lhe o coração. Levantando-se então, começou a andar, a passos largos, pelo estreito quarto.

Fora deste mundo! - exclamou por fim, com impaciência.

Não poderá o tempo romper seus fatais laços? A atração que liga a alma à terra, é igual à atração que segura a terra no espaço? Deixa, ó minha alma, este obscuro planeta! Rompe cadeias! Agita as asas!

E, ao dizer isto, Zanoni, atravessando as silenciosas galerias, subiu a escada que conduzia ao quarto secreto, e desapareceu.

 (continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni