Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo IV
Envolto em Mistério
“Les Intelligences Célestes se
font voir, et se communiquent plus volontiers, dans le silence et dans la
tranquillité de la solitude.On aura donc une petite chambre ou un cabinet
secret, etc”.Les Clavicules de Rabbi Salomon, chap. 3; traduites exactement du
texte Hebreu, par M. Pierre Morissoneau.
As Inteligências Celestes se
manifestam e se comunicam de preferência no silêncio e na tranquilidade da
solidão.É necessário, pois, um pequeno quarto ou um gabinete secreto, etc”.
O palácio que habitava Zanoni
estava situado num dos bairros menos freqüentados da cidade. Ainda hoje podem
se ver as suas ruínas, monumentos de esplendor pertencente a uma época de
cavalheirismo, desterrado desde muito tempo de Nápoles, junto com as altivas
raças normanda e espanhola.
Quando Zanoni entrou em seus
aposentos particulares, dois hindus, vestidos com traje do seu pai,
receberam-no à porta, com as graves saudações orientais. Estes homens haviam
vindo com Zanoni de terras longínquas, onde, segundo diziam os boatos, tinha
vivido muitos anos. Mas estes hindus estavam impossibilitados de poder
satisfazer a curiosidade que despertavam e justificar alguma suspeita, porque
não falavam outro idioma além da sua língua materna. Além destes dois, a régia
comitiva de Zanoni era composta de servidores, escolhidos dentre a gente de
Nápoles, os quais a sua esplendida generosidade, unida ao caráter imperioso,
convertia em submissos escravos que o obedeciam fielmente. Nem ao interior de
sua casa, nem em seus costumes, o quanto podiam ser observados, não havia nada
que pudesse justificar os boatos que a respeito de Zanoni circulam pela cidade.
Não era servido, como disseram outrora, de Alberto Magno e do grande Leonardo
da Vinci, por formas aéreas; e nenhuma imagem de bronze, invenção de mecanismo
mágico, lhe comunicava as influências das estrelas. Também não se via em seus
quartos nem o crisol, nem os metais, nem aparelhos de alquimista, dos quais
pudesse deduzir-se a sua riqueza; nem parecia ocupar-se com esses sérios
estudos que podiam comunicar a sua conversação às noções abstratas e o profundo
saber que às vezes manifestava.
Em seus momentos de solidão, não
consultava nunca seus livros; e, se em outro tempo tirava deles os vastos
conhecimentos que possuía, agora só estudava na imensa página da Natureza; a
sua ampla e admirável memória supria o demais. Contudo, havia uma exceção em todos
estes hábitos e ocupações comuns, a qual, segundo a autoridade cujo nome e
cujas palavras citamos no princípio deste capítulo, indicaria o cultor das
ciências ocultas.
Fosse em Roma, ou em Nápoles, ou
em qualquer parte onde residisse, Zanoni escolhia um quarto separado do resto
da casa, e fechava-o com um cadeado, pouco maior do que o selo de um anel, e
que, não obstante, bastava para burlar os mais engenhosos instrumentos de
serralheiro; como sucedeu, numa ocasião, a um dos seus criados, que, estimulado
pela curiosidade, havia tentado, mas em vão, saber o que se encerrava no dito
quarto; esse homem havia escolhido o momento mais favorável para que a
tentativa ficasse ignorada e secreta, numa hora da noite, em que não havia viva
alma ao seu redor, e quando Zanoni estava ausente. O caso, porém, é que a sua
superstição ou a sua consciência, lhe advertiu o motivo pelo qual, no dia
seguinte, o mordomo calmamente o despediu. O criado, para compensar-se desta
desgraça, divulgou a sua história, acrescentando mil divertidas exagerações.
Declarava que, ao aproximar-se da porta, se viu repelido por mãos invisíveis, e
que apenas tocou o cadeado, caiu ao chão, como ferido de paralisia. Um
cirurgião que ouvira esta história observou com desgosto dos crédulos admiradores
de milagres, que talvez Zanoni empregava habilmente a eletricidade. Fosse como
fosse, naquele quarto, hermeticamente fechado, não entrava ninguém mais que
Zanoni.
A solene voz do Tempo, provinda
da igreja vizinha, veio tirar de sua profunda e tranqüila meditação, o senhor
do palácio, meditação que mais parecia um êxtase.
– É mais um grão, escapado do relógio de
areia, - murmurou o estrangeiro, - e, sem embargo, o tempo, ser luminoso, por
que desces da tua esfera? Por que abandonas a tua eterna, radiante e serena
mansão, inacessível às paixões, e te transportas à obscuridade do negro
sepulcro? Quanto tempo habitaste contente em tua majestosa solidão, sabendo
muito bem que o nosso afeto pelas coisas que morrem não nos traz mais que
tristeza?
Enquanto Zanoni murmurava estas
palavras, uma das primeiras aves matutinas que saúdam a vinda da aurora,
começou a gorjear alegremente entre as laranjeiras do jardim que haviam debaixo
da janela do estrangeiro. De repente, outro canto respondeu ao primeiro; era a
companheira da primeira ave, despertada pelo gorjeio desta, que lhe enviava a
sua doce resposta. Zanoni pôs-se a escutar, e não ouviu a voz do espírito a
quem perguntara, mas, em vez dele, respondeu-lhe o coração. Levantando-se
então, começou a andar, a passos largos, pelo estreito quarto.
– Fora deste mundo! - exclamou por fim, com
impaciência.
– Não poderá o tempo romper seus fatais
laços? A atração que liga a alma à terra, é igual à atração que segura a terra
no espaço? Deixa, ó minha alma, este obscuro planeta! Rompe cadeias! Agita as
asas!
E, ao dizer isto, Zanoni,
atravessando as silenciosas galerias, subiu a escada que conduzia ao quarto
secreto, e desapareceu.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni