quarta-feira, 2 de maio de 2018

Zanoni XII





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo II

 Um Assalto Aguardado

“Prende, giovine audace e impazíente, L’occasione offerta avidamente”. Gerusal. Liber., cri nto VI, 29
“Toma, jovem audaz e impaciente, a ocasião que se oferece avidamente”.

Clarêncio Glyndon era um jovem que possuía uma fortuna não muito avultada, porém suficiente para poder viver sem embaraços financeiros e com independência. Seus pais haviam falecido e sua parenta mais próxima era uma irmã, muito mais jovem do que ele, e que estava na Inglaterra, em casa de uma tia.
Desde muito moço, Glyndon tinha manifestado grande disposição para a pintura, e mais por entusiasmo do que por necessidade de exercer uma profissão, determinou dedicar-se a uma carreira, que os artistas ingleses geralmente começam com ardor idealista e composição histórica, para concluírem com cálculos avarentos e retratos de Aderman Simpkins.
Glyndon, segundo a opinião de seus amigos, possuía um talento bastante considerável, mas era um tanto precipitado e presunçoso. Não gostava de um trabalho contínuo e persistente, e por ambição procurava antes colher o fruto do que plantar a árvore. Como a maior parte dos jovens artistas, era amante dos prazeres e divertimentos, entregando-se, sem a menor reflexão, a qualquer empresa que impressionasse a sua imaginação ou a exercitasse ou excitasse suas paixões. Tinha viajado pelas mais célebres cidades da Europa, com o firme propósito e a sincera resolução de estudar as grandiosas obras primas da sua arte; porém, em todas elas o prazer muitas vezes o afastava do seu objeto, e as belezas vivas distraiam a sua apreciação da tela insensível. Valente, amante de aventuras, vaidoso, inquieto, curioso, encontrava-se sempre envolvido em projetos temerários e perigos encantadores, sendo uma criatura impulsiva e escrava de sua imaginação.
Era, então, a época em que o frenético espírito de inovação estava abrindo caminho a esse horrível escárnio das nobres aspirações humanas, denominado “Revolução Francesa” e do caos, dentro do qual estavam imergindo as santidades da Venerável Crença do Mundo, levantavam-se muitas, extravagantes e disformes quimeras. Devo lembrar ao leitor que, nesse tempo, ao lado do refinado ceticismo e afetada sabedoria, existiam a maior incredulidade e as mais crassas superstições; - era a época em que o magnetismo e a magia contavam adeptos entre os discípulos de Diderot; quando as profecias estavam sobre os lábios de toda a gente; quando o salão de um filósofo deísta se converteu numa Heracléa, onde a necromancia pretendia evocar as sombras dos mortos; quando se ridicularizavam a Cruz e a Bíblia, e acreditava-se mais em Mesmer e Cagliostro.
Naquele nascente Helíaco que anunciava o novo sol, que devia desvanecer todas as sombras, saíram de suas tumbas medievais todos os fantasmas que tinham passado diante dos olhos de Paracelso e Agrippa. Deslumbrado pela aurora da Revolução, Glyndon foi atraído ainda mais por seus estranhos acompanhamentos; e era natural que como tantos outros, acolhesse com avidez a ideia de ver realizadas, em pouco tempo, as esperanças de uma utopia social, que, pelo trilhado e poeirento caminho da ciência, conduziria à ousada descoberta de algum maravilhoso Eliseu.
Em suas viagens, Glyndon havia escutado com vivo interesse, senão com implícita crença, tudo quanto lhe contavam acerca dos milagres de todos os famosos videntes; assim é que a sua imaginação se achava preparada para receber a impressão que o misterioso Zanoni produzia sobre ele, desde a primeira vista.

Podia existir também outra causa para esta disposição à credulidade. Um dos antepassados de Glyndon, da família de sua mãe, tinha alcançado grande reputação como filósofo e alquimista. Contavam-se estranhas histórias a respeito desse homem. Dizia-se que havia vivido muito, mais tempo do que vive o comum dos homens, conservando sempre a aparência da idade viril. Supunha-se que falecera de pesar por causa da morte repentina de um neto seu, que era a única criatura pela qual, em toda a sua sida, tinha manifestado amor. As obras deste filósofo, se bem que raras, existiam ainda e se achavam na biblioteca da casa de Glyndon. O seu platônico misticismo, as suas atrevidas asserções, as altas promessas que podiam descobrir-se atrás da sua fraseologia alegórica e figurada, impressionaram, desde os seus anos de rapaz, a imaginação de Clarêncio Glyndon. Seus pais, sem atender às consequências que o encorajamento das ideias podia acarretar que a razão e a idade pareciam suficientes para dissipar ou repelir, tinham por costume, nos longos serões do inverno, falar da história tradicional desse distinto antepassado.
E Clarêncio estremecia de prazer, mesclado de terror, quando sua mãe dizia que descobria uma notável semelhança entre as feições deste seu filho e as do velho retrato do alquimista, que se via pendurado na parede da sala, entre outros quadros familiares, e era o orgulho da casa, como também a admiração de seus amigos. A criança, na verdade, é mais frequentemente do que pensamos “o pai do homem”.
Eu disse que Glyndon amava os prazeres. Fácil de impressionar-se com coisas alegres, como sempre se dá com os homens de gênio, a sua descuidada vida, antes de começar a carreira trabalhista de verdadeiro artista, o havia levado a voar de uma flor a outra. Ele já tinha desfrutado quase ao ponto da saciedade, todos os alegres divertimentos que oferecia Nápoles, até quando se enamorou de Viola Pisani. Mas o seu amor, do mesmo modo que a sua ambição: eram vagos e mutáveis. Não satisfazia plenamente o seu coração, deixava antes um vazio em sua existência; não porque carecesse de fortes e nobres paixões, mas porque a sua mente não estava ainda suficientemente preparada nem bastante assentada para o desenvolvimento dessas paixões que nele brotavam.
Assim como há uma estação para a flor, e outra para o fruto, igualmente, enquanto a flor da imaginação não começa a murchar, não amadurece o coração para produzir as paixões que as flores precedem e predizem. Alegre sempre quer estivesse a sós com seus quadros, quer no meio dos joviais amigos, Glyndon não havia conhecido ainda bastante a tristeza, para poder amar profundamente. Pois, para que o homem possa compreender todo o valor das coisas grandes da vida, é preciso que tenha sofrido desenganos nas causas pequenas. Só os superficiais sensualistas da França podem dizer, em sua “linguagem de salões”, que o amor é uma loucura; o amor, melhor compreendido, é a sabedoria. Por outra parte, Glyndon pertencia demasiado ao mundo, e a sua ambição artística tinha necessidade dos aplausos e elogios dessa miserável minoria da superfície, da qual chamamos de público.
Como todos os que Costumam enganar, o jovem pintor inglês temia sempre ser enganado; por isso, desconfiava da doce inocência de Viola. Não se aventurava a propor seriamente o casamento a uma atriz italiana; contudo, a modesta dignidade da jovem e alguns bons e generosos sentimentos que Glyndon possuía, detinham-no até então, de qualquer plano mais mundano e menos honesto.
Por isso, a familiaridade que existia entre os dois, oferecia mais o caráter de uma mútua e atenta simpatia, do que o de uma paixão. Glyndon via Viola no teatro; falava-lhe entre bastidores, enchia sua carteira de inumeráveis esboços de sua beleza, que o encantava como artista e como amante; e passava os dias flutuando entre a dúvida e a irresolução entre a afeição e a desconfiança; esta última, porém, prevalecia sempre, devido aos constantes conselhos e admoestações de Mervale, homem de sóbria reflexão, na opinião do seu camarada.
De tarde, no dia seguinte ao que havia proporcionado a Glyndon o conhecimento de Zanoni, passeava á cavalo pela praia de Nápoles, do outro lado da Caverna de Posillipo. O sol começava a declinar, e o mar risonho enviava à terra uma fresca e voluptuosa brisa. Ao longe, o artista viu um homem, inclinado sobre um fragmento de pedra, à beira da estrada; aproximou-se e reconheceu o Senhor Zanoni.

O inglês saudou-o cortesmente, e perguntou-lhe sorrindo.- Descobriu alguma antiguidade? São tão abundantes aqui, como os seixos deste caminho.
Não, - respondeu Zanoni; - não é mais do que uma dessas antiguidades que datam, seguramente, do princípio do mundo, porém que a Natureza dissolve e renova eternamente.
E assim falando, mostrou Zanoni ao jovem uma “ervazinha” de um azul pálido, e colocou-a depois cuidadosamente no seu peito.
É herborizador? - perguntou Glyndon. Sim, - respondeu Zanoni.- Ouvi dizer que é um estudo interessantíssimo.- Certamente, para as pessoas que o compreendem.- Será um conhecimento muito difícil de adquirir-se?- Difícil! Os conhecimentos de maior profundidade, inclusive os das artes, estão, pode-se dizer, perdidos para a moderna filosofia que é uma vulgaridade superficial. Julga que carecem de fundamento aquelas tradições que nos chegaram de uma forma confusa e desfigurada através dos séculos?
Lembre-se de que as conchas que hoje achamos no cume das montanhas, nos informam que ali havia sido mar! Em que consistia a magia da antiga Cólchida, senão no minucioso estudo da Natureza em seus mais ocultos trabalhos? Que é a fábula de Medeia, senão uma prova do poder que podem dar a semente e a folha? O mais portentoso de todos os Sacerdócios, as misteriosas irmandades de Cuth, a respeito de cujos ensinamentos a ciência mesma se perde no meio dos labirintos das lendas, procuravam nas mais insignificantes ervas, o que, talvez, os sábios de Babilônia buscavam em vão entre as mais sublimes estrelas.
A tradição nos diz que existia, nos tempos antigos, uma nação que podia matar seus inimigos, a grande distância, sem necessidade de mover-se, e sem empregar armas. A erva que os seus pés pisam, tem, talvez, um poder mais mortífero do que aquele que os seus engenheiros podem dar aos seus mais destrutivos instrumentos de guerra. Pode-se dizer, não foi a estas praias italianas, onde existiu o antigo promontório de Circe, aonde vinham os sábios dos países mais remotos do Oriente, buscar plantas e ingredientes, que os nossos farmacêuticos de mostrador desprezariam como se fossem ervas inúteis?
Os primeiros herborizadores, os maiores químicos do mundo, pertenciam à tribo que os antigos chamavam reverentemente pelo nome de Titans. Recordo-me que, em outro tempo, nas margens do Ebro, no reinado de... Porém, esta conversação não serve, - disse Zanoni, interrompendo-se repentinamente e com um sorriso frio, - senão para gastar inutilmente o seu tempo e o meu.
Calou-se por alguns instantes e, depois, tendo olhado fixamente o pintor, continuou:
Julga meu amigo, que uma vaga curiosidade pode substituir o trabalho assíduo? Estou lendo no seu coração. O senhor deseja conhecer-me, e não a esta “ervazinha”; porém; infelizmente, o seu desejo não pode ser satisfeito.
Vejo que não possui a atenciosa amabilidade de seus compatriotas, - respondeu Glyndon, algum tanto desconcertado. - Suponho que eu desejasse cultivar a sua amizade, porque repeliria as minhas insinuações?
Eu não repilo as insinuações de ninguém, - retrucou Zanoni; - eu hei de conhecer aqueles que querem entrar em relações comigo; a mim, porém, eles nunca poderão compreender. Se o senhor deseja a minha amizade, eu lha ofereço; devo, porém, advertir-lhe que melhor será se me evitar.
E por que, senhor? É, assim, tão perigoso?
Nesta terra, há homens que, sem o querer, estão destinados a serem perigosos para outros. Se eu tivesse que lhe predizer o seu futuro pelos vãos cálculos dos astrólogos, dir-lhe-ia, em sua linguagem que o meu planeta se colocou em sua casa da vida. Não cruze o meu caminho, se pode evitá-lo. Advirto- lhe pela primeira e última vez.
Diz que despreza os astrólogos e, contudo, se expressa tão misteriosamente como eles. Eu nem jogo nem pelejo; porque, pois, deveria temer?
Faça como lhe aprouver; por minha parte, tenho dito.
Permita-me que lhe fale com franqueza; sua conversação de ontem à noite interessou-me muito, e, ao mesmo tempo, deixou-me perplexo.
Eu o sei; as mentalidades como a sua, sentem atração pelo que é misterioso.
Estas palavras molestaram Glyndon, apesar de não terem sido pronunciadas em tom de desprezo. - Vejo que não me considera digno de sua amizade, - disse o jovem. Paciência! Adeus!
Zanoni correspondeu com frieza à saudação; e, enquanto o inglês continuou o seu passeio, o botânico voltou à sua interrompida ocupação.

Naquela noite, segundo o seu costume, Glyndon foi ao teatro, posto de trás dos bastidores, observava Viola, que desempenhava naquele momento um dos seus mais importantes papéis. Os aplausos ressoavam por todo o teatro. Glyndon estava embriagado de paixão e de orgulho.
Esta encantadora criatura, pensava ele, pode ainda ser minha.
Enquanto estava absorto nesta deliciosa meditação, sentiu um leve toque no ombro; voltou-se e viu Zanoni.
Ameaça-lhe um perigo, - disse este. Convém que não vá à casa esta noite; ou, se for, não deve ir só.
Antes que Glyndon tornasse a si de sua surpresa, Zanoni havia desaparecido; e quando o inglês tornou a vê-lo, estava no camarote de um dos nobres napolitanos, onde Glyndon não pôde segui-lo.
Viola acabava de retirar-se da cena, e Glyndon aproximou-se dela, com uma apaixonada galanteria que até ali não havia empregado.
Porém, Viola, ao contrário da sua habitual afabilidade, não fez o menor caso das palavras do seu apaixonado; e, levando a parte Gioneta, que não a abandonava nem um instante enquanto permanecia no teatro, disse-lhe em voz baixa, afetando grande interesse:
Oh, Gianetta! Ele está aqui outra vez! O estrangeiro de quem já tinha falado! E ele foi o único, em todo o teatro, que não me aplaudia!
Qual é, minha querida? - perguntou a anciã, com voz terna. - Há de ser um estúpido, indigno de que pense nele.
A atriz levou Gianetta mais adiante e indicou-lhe um homem que estava num dos camarotes mais próximos, e que se distinguia de todos os demais, tanto pela simplicidade do seu traje, como por suas feições extraordinariamente belas.
Indigno de que eu pense nele, Gianetta? - repetiu Viola.
Indigno de que eu pense nele? Ah! Para não pensar nele seria necessário que eu não pensasse mais absolutamente.
O contra-regra chamou a senhorita Pisani.
Procura saber o seu nome, Gianetta, - ordenou Viola, dirigindo-se lentamente para a cena, e passando pelo lado de Glyndon, que a olhou com tristeza e como com repreensão.
A cena em que a atriz ia apresentar-se agora era o desenlace da catástrofe, onde era necessário empregar todos os recursos da sua arte e da sua voz. O auditório escutava com profunda admiração todas as palavras da atriz; mas os olhos desta buscavam somente os de um espectador frio e imóvel; ela parecia como inspirada. Zanoni escutava, e observava-a com atenção, mas dos seus lábios não saiu nenhuma palavra de aprovação; e nem a menor emoção alterou a expressão do seu semblante frio e meio desdenhoso.
Viola, que desempenhava o papel de uma pessoa que ama sem ser correspondida, encarnava, sentia, como nunca, o papel que representava. As suas lágrimas eram verdadeiras; a sua paixão era a paixão natural: quase causava pena olhá-la. Quando terminou o ato, as forças da atriz haviam-se esgotado, e foi levada do cenário, desmaiada, no meio de uma tempestade de aplausos e de entusiásticas exclamações de admiração. O auditório se pôs de pé, agitavam-se centenas de lenços, e, enquanto alguns espectadores arrojavam ramalhetes de flores à cena, outros enxugavam os olhos cheios de lágrimas; as senhoras não puderam reprimir o pranto por muito tempo.
Pelo céu! - exclamou um fidalgo napolitano. - Esta jovem ateou no meu coração uma paixão que me devora. Nesta noite... Sim, ainda nesta noite há de ser minha! Está tudo arranjado, Marcari?
Tudo, senhor. E esse jovem inglês? - esse imbecil e presunçoso bárbaro! Como já disse, deve pagar sua loucura com sangue. Não quero ter nenhum rival.
Mas, é um inglês! E, quando desaparece um inglês fazem-se muitas diligências para achar o seu corpo.
Estúpido! Não é bastante profundo o mar, ou a terra bastante reservada, para ocultar um cadáver? Os nossos sabem ser silenciosos como a tumba; e, quanto a mim... Quem se atreveria a suspeitar ou acusar o Príncipe de * * *? Quero que, nesta noite, seja feito o “serviço”. Eu o deixo ao seu cuidado. Os ladrões o terão assassinado, entende? Abundam tanto neste país; para que isto pareça mais certo, tire-lhe tudo quanto levar consigo. Vai com três homens; os outros ficarão em minha escolta.
Mascari encolheu os ombros e retirou-se, saudando servilmente.
As ruas de Nápoles não eram, naqueles tempos, tão seguras como o são hoje, e as carruagens eram menos caras e mais necessárias. O veículo que a atriz costumava tomar para regressar para casa havia desaparecido. Gianetta, demasiada acautelada para com a beleza de sua ama, e temendo o enxame de admiradores que a importunariam, alarmou-se à ideia de terem que se retirar a pé, e comunicou esta inconveniência a Glyndon, este, então, pediu a Viola, que recuperava pouco a pouco, as forças, que aceitasse a sua carruagem. Antes daquela noite, talvez a atriz tivesse aceitado este pequeno obséquio; agora, porém, por outro motivo, havia-o recusado.
Glyndon, sentindo-se ofendido, retirou-se com mau humor, quando Gianetta o deteve, dizendo em tom lisonjeiro:
Fique, senhor; a senhorita não está bem; - não se aborreça com ela; eu farei com que ela aceite a sua oferta.

Glyndon ficou, e depois de alguns instantes de discussão entre Gianetta e Viola, esta concluiu por aceitar a oferta do jovem. A anciã e a atriz subiram na carruagem, deixando Glyndon à porta do teatro para que regressasse, a pé, à sua casa.
Naquele instante, apresentou-se, de repente, à mente do inglês a misteriosa advertência de Zanoni, que ele havia esquecido nos momentos do seu ressentimento contra Viola. Agora, julgando ser prudente precaver-se de um perigo anunciado por lábios tão misteriosos, olhou em redor de si para ver se descobriria algum conhecido. O público saía do teatro, aos encontrões, e o jovem, em toda aquela compacta multidão, não pôde distinguir nem um semblante amigo. Enquanto permanecia no mesmo sítio, sem saber que fazer, ouviu a voz de Mervale, que o chamava, e observou com prazer que o seu amigo abria caminho por entre o povo, para chegar até ele.
Eu lhe reservei um lugar na carruagem do conde Cetoxa,- disse Mervale. Venha comigo, o conde está à nossa espera.
 Como é gentil! Como soube que eu me encontrava aqui?
Encontrei Zanoni no corredor, - respondeu Mervale, - e ele me disse: “O seu amigo está fora da porta do teatro; não deixe que regresse à sua casa a pé, esta noite; as ruas de Nápoles nem sempre oferecem segurança”. Imediatamente me lembrei de que alguns dos “bravos” calabreses haviam tido bastante que fazer nas ruas da cidade, nas últimas semanas...
E encontrando, logo depois Cetoxa, concluiu: Mas, olhe, aqui está ele.
A chegada do conde interrompeu a conversação. Enquanto Glyndon entrava para a carruagem, viu, pela janela, quatro homens que estavam na calçada, e que pareciam observá-lo com atenção.
Cáspita! Exclamou um deles. Aquele é o inglês!
Esta exclamação chegou aos ouvidos de Glyndon no momento em que a carruagem partia. Chegou em casa, sem ter sofrido acidente algum.
A familiar e cordial intimidade que existe sempre na Itália entre a aia e a criança por ela criada, e que Shakespeare nos apresentou, sem exagero algum, em “Romeu e Julieta”, não podia deixar de ser mais estreita do que usualmente, numa situação tão desamparada como aquela em que se encontrava a atriz órfã. Gianetta tinha grande experiência em tudo quanto se referia às fraquezas do coração; e quando, três noites antes, ao voltar do teatro, Viola começara a chorar amargamente, a aia conseguira obter dela a confissão de que tornara a encontrar um homem, que não tinha visto durante dois anos, mas a quem nunca tinha esquecido, e que este homem, ai! Não havia feito a mais leve demonstração de alegria ao vê-la.
Gianetta era incapaz de compreender as vagas e inocentes emoções que envolviam esta tristeza; mas as reduziam todas com sua rude compreensão, a um só sentimento: o amor. E, neste assunto, sabia prodigalizar consolo e demonstrar simpatia. Ela nunca conseguira saber muitas coisas que se abrigavam no coração de Viola, - porque este coração não possuía palavras para revelar todos os seus segredos; porém, por aquela pequena confiança que a aia obtivera, estava pronta a demonstrar a sua compaixão, não reprovando a jovem, mas pondo o seu resumido talento ao seu serviço.
Descobriu quem é ele? - perguntou Viola, ao ver-se, agora, só com Gianetta na carruagem.- Sim, é o célebre senhor Zanoni, que tem transtornado o juízo a todas as grandes senhoras de Nápoles.
Diz-se que é tão rico... Oh! Muito mais rico do que qualquer um dos ingleses! Porém, não tanto como o senhor Glyndon.
 Cale-se - interrompeu a jovem atriz - Zanoni - Não me fale mais do inglês!

A carruagem estava, agora, na parte mais afastada e solitária da cidade, onde estava situada, a casa de Viola. De repente, parou.
Gianetta, um tanto alarmada, abriu a janela e olhou para fora. À pálida luz da lua, viu que o cocheiro, arrancado violentamente do seu lugar, havia sido subjugado por dois homens; a portinhola foi aberta violentamente e, diante da atriz e sua aia, apareceu um homem de elevada estatura, mascarado e envolto numa capa.
Não tenha medo, formosa Pisani, - disse o homem, com amabilidade; - ninguém lhe fará mal algum.
E agarrando a bela triz pela cintura, pretendeu tirá-la da carruagem. Gianetta, porém, não ficou inativa; repelindo o agressor com uma força que o deixou admirado, exprobrou a sua ação, com a violência do terror.
O mascarado deu um salto, a fim de reparar a desordem da sua capa.
“Corpo di Barco!” - exclamou rindo; - a jovem tem uma terrível defensora... Luigi! Giovani! Agarrem essa velha bruxa.
Depressa! Por que esperam?
O mascarado retirou-se da portinhola, aparecendo nela, em seguida, outro homem, também disfarçado e ainda mais alto do que o primeiro.
Tranquilize-se, Viola Pisani, - disse, em voz baixa. Eu a porei em segurança. E, levantando a sua máscara, deixou ver as nobres feições do próprio Zanoni.- Tranquilize-se; não diga nada, - acrescentou; - eu a salvarei. E retirou-se, deixando Viola imersa na surpresa, agitação e prazer.
Havia ali, entre todos, nove homens mascarados: dois subjugavam o cocheiro; um segurava pelos freios os cavalos da carruagem; o quarto cuidava dos cavalos ricamente ajaezados do agressor; três outros (além de Zanoni e o que se havia aproximado primeiramente de Viola) permaneciam um pouco afastados, ao pé de uma carruagem encostada a um lado do caminho. Zanoni falou com os três últimos; e, depois de ter-lhes apontado o primeiro mascarado, que era de fato, o Príncipe de***, dirigiram-se a este, que ficou surpreendido ao ver que o agarravam por detrás.
Traição! - exclamou ele. - Fui traído pela minha própria gente! Que significa?
Ponham-no dentro da sua própria carruagem, - disse Zanoni, calmamente. - Se ele resistir, que recaia sobre ele a culpa de sua morte.
Zanoni aproximou-se dos que seguravam o cocheiro.
Estão em minoria, e logrados, - disse-lhes; - podem ir reunir-se ao seu amo. Os senhores são três homens, - nós somos seis, e estamos armados dos pés a cabeça. Agradeçam-nos por lhes pouparmos a vida. Retirem-se!
Os homens desapareceram humilhados. O cocheiro voltou para o seu posto.
Corte as correias da carruagem daquela gente e as rédeas dos seus cavalos, - ordenou Zanoni, subindo para o carro que levava Viola, o qual partiu célere, deixando o vencido raptor num estado de raiva e estupefação, impossível de descrever. Permita-me que lhe explique este mistério, Jovem - disse Zanoni.
Eu descobri, não importa como, a conspiração tramada contra você, e frustrei-a da seguinte maneira: O cabeça principal desta trama é um fidalgo que a vem perseguindo há muito tempo em vão. Ele e dois criados seus a espiavam desde que você entrou no teatro, ao passo que outros seis aguardavam no lugar onde o seu coche foi atacado; eu e cinco criados meus ocupamos o seu lugar, e foi assim que o fidalgo nos tomou por seus auxiliares. Eu tinha, previamente, ido ao sitio onde aqueles homens esperavam, e lhes disse que o seu amo não precisava de seus serviços esta noite. Eles acreditaram no que eu disse e se dispersaram. Depois, fui buscar o meu grupo, que agora deixei atrás. E o resto você sabe. E agora estamos à porta da sua casa.

(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni