quarta-feira, 14 de março de 2018

Zanoni







Zanoni

Capítulo I

Livro Primeiro

O Músico

 “Vergine era D’alta beltà, ma sua beltà non cura:
Di natura, d’amor, de cieli amici Le negligenze sue sono artifici”.

Gerusal. LIb., canto II, 14-18.

“Era uma virgem de grande beleza, mas de sua beleza não fazia caso: A negligência mesma é arte nos que são favorecidos pela Natureza, pelo amor e pelos céus”. Na segunda metade do século XVIII, vivia e florescia em Nápoles um honrado artista, cujo nome era Caetano Pisani. Era um músico de grande gênio, mas não de reputação popular; havia em todas as suas composições algo caprichoso e fantástico, que não era do gosto dos “dilettanti” de Nápoles. Era ele amante de assuntos pouco familiares, nos quais introduziam toadas e sinfonias que excitavam uma espécie de terror nos que as ouviam. Os títulos das suas composições lhes dirão, já por si mesmos de que índole era. Acho, por exemplo, entre os seus manuscritos: “A Festa das Harpias”, “As bruxas em Benevento”, “A descida de Orfeu aos Infernos”, “O mau olhado”; Londres, Janeiro de 1842. “As Eumênides”, e muitos outros, que demonstram nele uma grande imaginação que se deleitava com o terrível e o sobrenatural, mas às vezes se elevava, com delicada e etérea fantasia, com passagens de esquisita beleza, até ao sublime. É verdade que, na escolha dos seus assuntos, que tomava da fábula antiga, Caetano Pisani era muito mais fiel do que seus contemporâneos à remota origem e ao primitivo gênio da Opera Italiana. Quando este descendente, embora efeminado, da antiga união do Canto e do Drama, depois de uma longa obscuridade e destronamento, tornou a aparecer empunhando o débil cetro e, coberto com mais brilhante púrpura, nas margens do Amo, na Etrúmia, ou no meio das lagoas de Veneza, hauriu as suas primeiras inspirações das desusadas e clássicas fontes da lenda pagã; e “A Descida de Orfeu”, de Pisani, era apenas uma repetição muito mais atrevida, mais tenebrosa e mais científica da “Eurídice”, que Jacopo Peri pôs em música quando se celebraram as augustas núpcias de

[1]

Henrique de Navarra com Maria de Médicis .

Todavia, como já disse, o estilo do músico napolitano não era agradável em tudo aos ouvidos delicados, acostumados às suaves melodias do dia; e os críticos, para desculparem seu desagrado, apoderavam-se das faltas e das extravagâncias do compositor, que facilmente se descobriam em suas obras, e ponderavam-nas, muitas vezes, com intenção maligna. Felizmente, - pois do contrário o pobre músico teria morrido de fome, - ele não era somente compositor, mas também um excelente tocador de vários instrumentos, e especialmente de violino, e com este instrumento ganhava uma decente subsistência, tendo encontrado uma colocação na orquestra do Grande Teatro de São Carlos. Aqui, os deveres formais e determinados, dados pela sua colocação, serviam necessariamente de tolerável barreira às suas excentricidades e fantasias, ainda que se saiba que não menos de cinco vezes deposto do seu lugar por haver desgostado os executantes e levado em confusão toda a orquestra, tocando, de repente, variações de uma natureza tão frenética e espantadiça que se podia pensar que as harpias ou as bruxas, que o inspiravam em suas composições, se haviam apoderado do seu instrumento. A impossibilidade, porém, de se encontrar um violinista de igual notabilidade (isto é, em seus momentos de maior lucidez e regularidade) era a causa de sua reinstalação, e ele, agora, quase sempre se conformava a não sair da estreita esfera dos “adágios” ou “alegros” das suas notas. Além disso, o auditório, conhecendo sua propensão percebia imediatamente quando ele começava a desviar-se do texto; e se o músico divagava um pouco, o que se podia descobrir tanto pela vista como pelo ouvido, por alguma estranha contorção do seu semblante, ou por algum gesto fatal do seu arco, um suave murmúrio admonitório do público tornava a transportar o violinista, das regiões do Eliseu ou do Tártaro à sua modesta estante. Então parecia ele despertar, sobressaltado, de um sonho; lançava um rápido, tímido e desconcertante olhar em redor de si, e com ar abatido e humilhado, fazia voltar o seu rebelde instrumento ao carril trilhado da volúvel monotonia.
Em casa, porém, se recompensava desta relutante servilismo. Agarrando com dedos ferozes o infeliz violino, tocava e tocava muitas vezes até ao amanhecer, fazendo sair do instrumento sons tão estranhos e desenfreados, que enchiam de supersticioso terror os pescadores que viam nascer o dia na praia contígua à sua casa, e até ele mesmo estremecia como se alguma sereia ou algum espírito entoasse ecos extraterrestres ao seu ouvido.

O semblante deste homem oferecia um aspecto característico da gente de sua arte. As suas feições eram nobres e regulares, porem magras e um tanto pálidas; os negros cabelos descuidados formavam uma multidão de caracóis; e os seus grandes e profundos olhos costumavam permanecer fixos, contemplativos, sonhadores. Todos os seus movimentos eram particulares, repentinos e ligeiros, quando o frenético impulso dele se apoderava; e quando andava precipitadamente pelas ruas, ou ao longo da praia, costumava rir e falar consigo mesmo. Contudo, era um homem pacífico, inofensivo e amável, que partia o seu pedaço de pão com qualquer dos “lazaroni” preguiçosos, parando para contemplá-los como se estendiam ociosos, ao sol. Não obstante, esse músico era totalmente insociável. Não tinha amigos; não adulava a nenhum protetor, nem concorria a nenhum desses alegres divertimentos, de que gostam tanto os filhos da Música e do Sul.
Parecia que ele e a sua arte eram feitos para viverem isolados e um para o Outro: ambos delicados e estranhos, irregulares, pertencentes aos tempos primitivos ou a um mundo desconhecido: Era impossível separar o homem da sua música; esta era ele mesmo. Sem ela, Pisani era nada, não passava de uma máquina! Com ela, era o rei dos seus mundos ideais. E isto já bastava, ao pobre homem! Numa cidade fabril de Inglaterra, há uma lousa sepulcral, cujo epitáfio recorda “um homem, chamado Cláudio Philips, que foi a admiração de quantos o conheceram, devido ao desprezo absoluto que manifestava pelas riquezas, e devido à sua inimitável habilidade em tocar violino”. União lógica de opostos louvores! Tua habilidade no violino, ó Gênio, será tão grande, quanto o seja o teu desprezo pelas riquezas!

O talento de Caetano Pisani, como compositor, se havia manifestado principalmente em música apropriada ao seu instrumento favorito, que é, indubitavelmente, o mais rico em recursos e o mais capaz de exercer o poder sobre as paixões. O violino de Cremona é, entre os instrumentos, o que Shakespeare é entre os poetas. Todavia, Pisani tinha composto outras peças de maior ambição e mérito, e a principal era a sua preciosa, sua incomparável, sua não publicada, sua não publicável e imortal ópera “Sereia”. Esta grande obra prima tinha sido o sonho doirado de sua infância, a dona da sua idade viril; e, à medida que ele avançava na idade, “estava a seu lado como sua juventude”. Em vão Pisani se tinha esforçado para apresentá-la ao público. Até o amável e bondoso Paisielo, mestre de capela, meneava a gentil cabeça, quando o músico o obsequiava com algum ensaio de uma das suas cenas mais marcantes. Contudo, Paisielo, ainda que essa música difira de tudo o que Durante te ensinou como regras de boa composição, pode ser que. . . Paciência Caetano Pisani! Aguarda o tempo, e afina o teu violino!

Por mais estranho que possa parecer à bela leitora, esta grotesca personagem havia contraído aqueles laços que os mortais ordinários são capazes de considerar seu especial monopólio, - tinha-se casado, e era pai de uma filha. E o que parecerá mais estranho ainda, a sua esposa era filha de um calmo, sóbrio e concentrado inglês: tinha muito menos anos de idade do que o músico; era formosa e amável, com um doce semblante inglês; havia-se casado com ele por escolha própria, e (crê-lo-eis?) amava-o ainda. Como aconteceu que ela se casou com ele, ou como este homem esquivo, intratável, impertinente se havia atrevido a propor-lhe, só posso explicá-lo, convidando-lhe a dirigir o seu olhar em redor de si, para depois explicar, primeiro a mim, como a metade dos homens e a metade das mulheres que você conhece, puderam encontrar o seu cônjuge! Entretanto, refletindo bem, esta união não era coisa tão extraordinária. A moça era filha natural de pais demasiado pobres para reconhecê-la ou reclamá-la. Foi levada à Itália para aprender a arte que devia proporcionar-lhe os meios de viver, pois a jovem tinha gosto e voz; vivia em dependência, e via-se tratada com dureza. O pobre Pisani era seu mestre, e a voz dele era a única que a jovem havia ouvido desde o seu berço, e que lhe parecia não a escarnecer ou desprezar. E assim. . . o resto não é uma coisa muito natural? Natural ou não, eles se casaram. Esta jovem amava o seu marido; e, jovem e amável como era, podia dizer-se quase que era o gênio protetor dos dois. De quantas desgraças tinha-o salvo a sua ignorada mediação oficiosa contra os déspotas de São Carlos e do Conservatório! Em quantas enfermidades, - pois Pisani era de constituição delicada, - tinha-lhe assistido e dado alimentação! Muitas vezes, nas noites escuras, esperava-o à porta do teatro, com sua lanterna acesa, dando-lhe o seu robusto braço em que ele se apoiava, para ser guiado por ela; se não o fizesse, quem sabe, o músico, em seus abstratos sonhos e desvarios, não se teria arrojado ao mar, em busca da sua ”Sereia”! Por outra parte, a boa esposa escutava com tanta paciência (pois nem sempre o bom gosto é companheiro do verdadeiro amor) e com tanto prazer, aquelas tempestades de excêntrica e caprichosa melodia, até que, por meio de constantes elogios, conseguia levá-lo à cama, quando ele, no meio da noite, se punha a tocar. Eu disse que a música era uma parte desse homem, e esta gentil criatura parecia ser uma parte da música; com efeito, quando ela se sentava junto dele, tudo o que era suave e maravilhoso em sua matizada fantasia, vinha mesclar-se imperceptivelmente com a agradável harmonia. Sem dúvida, a presença dessa mulher influía sobre a música, modificando-a e suavizando-a; Pisani, porém, que nunca perguntava de onde ou como lhe vinha a inspiração, ignorava-o. Tudo o que ele sabia era que amava e abençoava a sua esposa. Ele pensava que lhe dizia pelo menos vinte vezes por dia; mas, na realidade, não lhe dizia nunca, pois era muito parco de palavras, até para a sua consorte. A linguagem de Pisani era a música; assim como a linguagem da sua mulher era os seus cuidados! Ele era mais comunicativo com seu bárbito, como o sábio Merseno nos ensina a chamarmos a todas as variedades da grande família da viola. Certamente, bárbito soa melhor do que “rabeca”; deixemo-lo, pois, ser bárbito. Pisani passava horas inteiras falando com este instrumento, - louvando-o, censurando-o, acariciando-o; e até (pois assim é o homem, por mais inocente que seja) já o havia ouvido jurar por seu bárbito; mas este excesso sempre lhe causava, em seguida, remorso e penitência. E o instrumento tinha a sua linguagem particular, sabia responder-lhe; e quando ele, o bárbito, ralhava, fazia-o às mil maravilhas. Era um nobre companheiro, este violino! Um tirolês, que havia saído das mãos do ilustre instrumentista Steiner. Havia algo de misterioso em sua grande idade. Quantas mãos, agora já convertidas em pó, tinham feito vibrar suas cordas, antes que passasse a ser o amigo familiar de Caetano Pisani? Até a sua caixa era venerável; tinha sido belamente pintada, segundo se dizia, por Caraci. Um inglês colecionador de antiguidades ofereceu a Pisani mais dinheiro pela caixa, do que este tinha ganhado com o violino. Porém, o músico, a quem pouco importava morar numa choupana, orgulhava-se de ter um palácio para o bárbito, ao qual considerava como seu filho primogênito. Mas ele tinha também uma filha, da qual agora nos vamos ocupar.

Como deverei fazer, ó Viola, para descrever-te? Com certeza, a Música foi, de algum modo, responsável pelo advento desta jovem desconhecida. Pois tanto em sua forma, como em seu caráter, pode-se descobrir uma semelhança familiar com essa singular e misteriosa vida do som, que, noite após noite, andava nos ares, imitando os divertimentos dos espíritos dos elementos nos mares estrelados. . . Viola era formosa, porém de uma formosura pouco comum; era urna combinação harmoniosa de atributos opostos. Os seus cabelos eram de um ouro mais rico e mais puro do que os que vêem no Norte; mas os olhos, totalmente pretos, eram de uma luz mais terna e mais encantadora do que os olhos das italianas, sendo quase de esplendor oriental. A sua fisionomia era extraordinariamente linda, mas nunca a mesma: ora rosada, ora pálida; e, com a variação da sua fisionomia, também variava a sua disposição: Ora era muito triste, ora muito alegre.

Sinto ter que dizer que esta jovem não tinha recebido dos seus pais, em grau satisfatório, o que nós chamamos, com razão, educação. Não resta dúvida que nenhum deles possuía grandes conhecimentos que pudessem ensinar; e, naquela época, a instrução não era tão espalhada entre o povo, como o é hoje. Mas o Acaso ou a Natureza favoreceram a jovem Viola. Ela aprendeu, como era natural, a falar tanto a língua materna como a paterna. Também aprendeu, em breve, a ler e a escrever; e sua mãe, que era católica romana, ensinou-lhe, já na infância, a rezar. Porém, em contraste com todas estas aquisições, os estranhos costumes de Pisani e os incessantes cuidados e ocupações que ele reclamava de sua mulher, faziam com que, muitas vezes, a menina ficasse com uma velha aia que, com certeza, amava-a ternamente, mas não estava habilitada para instruí-la.

Dona Gianetta, a aia, era uma italiana e napolitana completa. A sua juventude era todo amor, e a sua idade madura era toda superstição. Era uma mulher loquaz e indiscreta, - uma palradora. Umas vezes falava à menina de cavalheiros e príncipes prosternados a seus pés, outras vezes lhe gelava o sangue nas veias, aterrorizando-a com histórias e lendas, talvez tão velhas como as fábulas gregas ou etruscas, de demônios e vampiros, - das danças ao redor da grande nogueira de Benevento, e da benzedura contra o mal olhado. Todas estas coisas concorreram silenciosamente para gravar supersticiosas ideias, na imaginação de Viola, que nem a idade, nem a reflexão puderam dissipar. E tudo isso fez com que se afeiçoasse, com uma espécie de mistura de temor e alegria, à música de seu pai. Aquelas toadas visionárias, lutando sempre por traduzir em tons selvagens e desconcertados a linguagem de seres extraterrestres, rodeavam-na desde o berço. Pode-se dizer, pois, que sua imaginação, sua mente estava cheia de música; encontros amorosos, recordações, sensações de prazer ou de sofrimento, - tudo estava mesclado, inexplicavelmente, com aqueles sons que ora a deleitavam, ora a enchiam de terror; isto a afagava e saudava quando abria os olhos ao sol, e fazia-a despertar sobressaltada, quando se encontrava só em sua cama, rodeada da escuridão da noite. As lendas e os contos de Gianetta serviam somente para que a jovem compreendesse melhor o significado daqueles misteriosos tons; forneciam-lhe as palavras para a musica. Era, pois, natural que a filha de tal pai manifestasse cedo algum gosto pela sua arte. Ainda era muito criança e já cantava divinamente. Um grande cardeal - grande igualmente no Estado e no Conservatório - tendo ouvido elogiar o seu talento, mandou buscá-la. Desde aquele momento, a sua sorte ficou decidida: estava destinada a ser a futura glória de Nápoles, a “prima dona” do São Carlos. O Cardeal, insistindo em que se cumprisse sua predição, lhe deu os mais célebres mestres. Para despertar nela o espírito de emulação, Sua Eminência levou-a, numa noite, ao seu camarote, crendo que serviria de alguma coisa ver a representação e ouvir os aplausos que se prodigalizavam às deslumbrantes artistas, as quais ela devia superar um dia. Oh! Como é gloriosa a vida teatral, e como é belo o mundo de música e de canto, que começava a brilhar para ela!

Parecia ser o único que correspondia a seus estranhos e juvenis pensamentos. Afigurava-se-lhe que, tendo vivido até então em terra estrangeira, via-se, enfim, transportada a uma região onde encontrava as formas e ouvia a linguagem do seu país natal. Belo e verdadeiro entusiasmo, elevado pela promessa do gênio! Menino ou homem, nunca será poeta, se não sentiste o ideal, o romance, se não viste a ilha de Calypso diante dos teus olhos, quando, pela primeira vez, levantando-se o mágico véu, se te apresentar o mundo da poesia sobreposto ao mundo da prosa!

E agora começou a iniciação para a jovem. Ia ler, estudar, descrever com um gesto, com um olhar, as paixões que depois devia expressar no palco; lições perigosas, na verdade, para algumas pessoas, mas não para o puro entusiasmo que nasce da arte: para a mente que a concebe exatamente, a arte não é mais que o aparelho onde se reflete o que se põe sobre sua superfície, enquanto está sem mácula, Viola compreendeu a natureza e a verdade, intuitivamente. As suas audições estavam impregnadas de um poder de que ela não era consciente; a sua voz comovia os ouvintes até as lágrimas, ou inspirava-lhes uma generosa ira. Mas estas emoções eram produzidas pela simpatia que manifesta sempre o gênio, até em seus anos de infantil inocência, por tudo o que sente, aspira ou sofre. Ela não era uma mulher prematura que compreendia o amor ou o ciúme que as palavras exprimiam; a sua arte era um daqueles estranhos segredos que os psicólogos podem explicar-nos, se lhes apraz, dizendo-nos, ao mesmo tempo, porque crianças de uma mente singela e de um coração puro sabem distinguir tão bem, nos contos que lhes são relatados ou nos cantos que ouvem, a diferença entre a arte verdadeira e a falsa, entre a linguagem apaixonada e a geringonça, entre Homero e Racine, - e porque ressoam, dos corações que não têm ainda sentido o que repetem, os melodiosos acentos, tão naturalmente patéticos.

Fora de seus estudos, Viola era uma menina singela e afetuosa, porém um tanto caprichosa, - caprichosa não em seu caráter, pois que este era sempre afável e dócil, mas em sua disposição de ânimo, que, como já disse, passava da tristeza à alegria e vice-versa, sem uma causa aparente. Se existia alguma causa, só podia atribuir-se às precoces e misteriosas influências que já referi, ao tratar de explicar o efeito produzido em sua imaginação por aquelas estranhas e arrebatadoras correntes de som que constantemente a rodeavam; pois convém notar que aqueles que são demasiado sensíveis aos efeitos da música, se vêem incessantemente acossados, nas suas lidas mais ordinárias, por melodias e tons que os atormentam e inquietam. A música sendo uma vez admitida à alma converte-se em uma espécie de espírito, e nunca morre. Ela percorre perturbadoramente, os recantos e as galerias da memória, e é ouvida, frequentemente, tão viva e distinta como quando fendeu os ares pela primeira vez. De quando em quando, pois, estes fantasmas de sons vagavam pela imaginação de Viola; faziam aparecer um sorriso em seus lábios, se eram alegres; anunciavam o seu semblante, se eram tristes; e então ela abandonava de repente a sua infantil alegria e sentava-se num canto, muda e meditativa.

Com razão, pois, em sentido alegórico, podia-se chamar a esta formosa criatura, de forma tão aérea, de beleza tão harmoniosa, de pensamentos e costumes tão pouco comuns, mais justamente filha da música do que do músico; um ser do qual se podia imaginar que lhe estava reservado algum destino, menos da vida comum do que do romance, desses que, pelo que os olhos podem ver, e pelo que os corações podem sentir, deslizam sempre, junto com a vida real, de corrente em corrente, até ao Oceano Negro.

Por isso, não parecia estranho que Viola, mesmo já em sua meninice, e muito mais quando começava a florescer na doce serenidade da juventude virginal, cresse ser a sua vida destinada a participar, fosse a bem ou mal, do romance, cheio de sonhos, que formava a atmosfera da sua existência. Frequentemente penetrava nos bosquezinhos que cercavam a gruta de Posillipo, - a grande obra dos antigos cimerianos, - e, sentada ao lado da Tumba de Virgilio, entregava-se a essas visões, a essas sutis divagações que nenhuma poesia pode tornar palpáveis e definidas; porque o poeta que excede a todos que têm cantado, é o coração da juventude sonhadora! Muitas vezes também, sentada ali ao umbral, sobre o qual pendiam as folhas de parreira, e olhando o azulado e sereno mar, passava a jovem as horas do meio-dia outonal, ou os crepúsculos do verão, construindo seus castelos no ar. Quem é que não faz a mesma coisa, - não só na juventude, como também no meio de débeis esperanças da idade madura? Uma das prerrogativas do homem, desde o rei até ao campônio, é sonhar. Mas esses sonhos eram em Viola mais habituais, mais distintos ou mais solenes do que a maior parte de nós desfruta. Pareciam ser como o Orama dos gregos, - fantasmas proféticos.

(continua)