sábado, 31 de março de 2018

Zanoni VI




Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Capítulo VI

Uma Tarde em Paris

“Précepteurs ignorants de ce faible univers”. - Voltaire. “Nous étions à table chez un de nos confrêres à I’Académie, un Grand Seigneur et homme d’esprit”. - La Harpe.

“Preceptores ignorantes deste fraco Universo”. Voltaire Estavamos à mesa com um dos nossos confrades da Academia um Grande Senhor e homem de espírito”. – La Harpe

Uma tarde em Paris, alguns meses depois da data do nosso capítulo precedente, achavam-se reunidos alguns dos homens mais eminentes da época, em casa de uma personagem distinta, tanto por seu nobre nascimento, como por seus princípios liberais. Quase todos os presentes eram partidários das opiniões que então estavam em voga. Pois, assim como veio, depois, um tempo em que nada havia tão impopular como o povo, naqueles dias nada havia tão vulgar como a aristocracia. O mais fino cavalheiro e a mais altiva nobreza falavam de igualdade e luzes.
Entre os mais notáveis membros daquela reunião, estava Condorcet, que se achava, naquele tempo, no apogeu de sua reputação; era o correspondente do rei da Prússia, íntimo de Voltaire (consultar), membro da metade das Academias de Europa, - nobre de nascimento, de maneiras distintas e de opiniões republicanas. Encontrava-se também ali o venerável Malesherbes, “o amor e as delicias da nação”, como o chamava o seu historiador, Gaillard. Estava lá o erudito Jean Silvam Bailly, o aspirante político. Celebrava-se uma dessas festas denominadas “petits soupers”, que tornaram famosa a capital de todos os prazeres sociais. A conversação, como é de supor, versava sobre assuntos literários e científicos, animada, por graciosas facécias. Muitas das senhoras daquela antiga e orgulhosa nobreza, - pois a nobreza existia ainda, se bem que as suas horas já estavam contadas, - aumentavam o encanto da sociedade; elas se convertiam, de vez em quando, em críticos atrevidos e, com frequência, faziam alarde de seus sentimentos liberais.
Muito trabalho me custaria, - e quase me seria impossível, com o meu idioma materno, - o poder fazer justiça aos brilhantes paradoxos que corriam de boca em boca. O tema favorito da conversação era a superioridade dos modernos sobre os antigos. Sobre este assunto, Condorcet esteve eloquente, até o ponto de deixar convencidos muitos dos ouvintes. Poucos eram os que se atreveram a negar que Voltaire fosse maior do que Homero.
Ridicularizou-se sem compaixão o torpe pedantismo que quer que tudo o que é antigo seja necessariamente sublime.
Todavia, - disse o gracioso marquês de ***, enquanto o champanhe dançava no seu copo, - mais ridícula ainda é a superstição que santifica tudo o que não compreende. Mas a inteligência circula; e, como a água, encontra o seu nível. O meu cabeleireiro disse-me esta manhã: - “Ainda que eu não seja mais que um pobre diabo, creio tão pouco como o mais fino cavalheiro”.
- Indubitavelmente, a grande Renovação marcha para o seu auge, a passos de gigante, como disse Montesquieu de sua própria obra imortal. Indubitavelmente, a grande Renovação marcha para o seu auge, a passos de gigante, como disse Montesquieu de sua própria obra imortal.
E os homens de saber e os homens de nobreza, os cortesãos e os republicanos, formaram um harmonioso coro, elogiando antecipadamente as brilhantes coisas que “a grande Revolução” produziria. Sobre este ponto, Condorcet falou com eloquência ainda maior.
“Il faut absolutement que la Superstition et le Fanatisme fassent place à la Philosophie”. (É absolutamente necessário que a Superstição e o Fanatismo cedam o lugar à Filosofia). Os reis perseguem as pessoas, os sacerdotes perseguem as opiniões. Quando não houver reis, os homens estarão seguros; quando não houver sacerdotes, o pensamento será livre.

Ah, - murmurou o Marquês, e como esse querido Diderot cantou tão bem:
“Et des boyaux du dernier prêtre Serrez le cou du dernier roi”.
E então, - prosseguiu Condorcet, - então começará a Idade da Razão! Igualdade de instrução, igualdade de instituições, igualdade de fortunas! Os grandes obstáculos que se opõem à difusão dos conhecimentos são, em primeiro lugar, a falta de uma linguagem comum; e, em seguida, a curta duração da existência. Pelo que toca ao primeiro, porque não há de haver um idioma universal, uma vez que todos os homens são irmãos? Quanto ao segundo, sendo indisputável a perfectibilidade orgânica do mundo vegetal, seria menos poderosa a Natureza, tratando-se de uma existência muito nobre, a do homem pensante? A destruição das duas causas mais ativas da deterioração física, - a exorbitante riqueza de um lado, e a degradante miséria do outro, - devem necessariamente prolongar o termo geral da existência. Assim como hoje se tributam honras à arte da guerra, que é a arte de assassinar, dar-se-ia então toda a importância à medicina: todas as mentes privilegiadas se entregariam à busca dos descobrimentos que tendessem a minorar as causas que produzem as enfermidades e a morte. Eu admito que não se possa eternizar a vida; mas creio que se poderia prolongá-la quase indefinidamente. E assim como o mais insignificante animal lega o seu vigor à sua prole, da mesma forma o homem transmitirá a seus filhos a sua aperfeiçoada organização mental e física. Oh, sim, para conseguir isto devem dirigir-se os esforços do nosso século!
O venerável Malesherbes suspirou. Temia, talvez, que esta reforma não viesse a tempo para ele. O belo Marquês de *** e as senhoras, ainda mais belas do que elas pareciam convencidas e deleitadas.
Estavam ali, entretanto, dois homens sentados um ao lado do outro, que nenhuma parte tornaram na conversação geral: um era estrangeiro, recentemente chegado a Paris, onde a sua riqueza, sua pessoa e suas maneiras distintas lhe alcançaram já certa reputação e não poucas atenções; o outro, um ancião que contava uns setenta anos de idade, era o espirituoso, virtuoso, valente e bondoso Cazotte (consultar), o autor do “Os Amores do Diabo”.
Estes dois homens conversavam familiarmente, separados dos demais, e só de vez em quando manifestavam, por um ocasional sorriso, a atenção que prestavam à conversação geral.
Sim, - disse o estrangeiro, - sim, nós já nos temos encontrado várias vezes.
A sua fisionomia não é desconhecida; e, contudo, em vão procuro relembrar-me do passado em que a vi.

Eu vou auxiliá-lo a recordar-se. Lembre-se do tempo quando, levado por curiosidade, ou talvez pelo nobre desejo de alcançar conhecimentos elevados, você procurava a maneira de obter a iniciação na  misteriosa ordem de Martinez de Pasqually?
 Ah! é possível! Você pertence àquela irmandade telúrica?
Não; só assisti às suas cerimônias para ver como debalde tratavam de ressuscitar as antigas maravilhas da Cabala.
Gosta desses estudos? Eu, por minha parte, expulsei para longe a influência que outrora exercia sobre a minha imaginação.
Você não a sacudiu, - retrucou o estrangeiro gravemente - aquela influência ainda o domina. Domina-o nesta hora mesmo; ela bate no seu coração; ilumina a sua razão e falará com a sua língua.
E ao dizer isto, o estrangeiro continuou a falar-lhe, em voz ainda mais baixa, recordando-lhe certas cerimônias e doutrinas daquela seita, - explicando-as e acomodando-as à atual experiência e à história do seu interlocutor, causando a Cazotte uma grande admiração o fato de ser a sua vida tão conhecida a esse estrangeiro.
O tranquilo e amável semblante do ancião anuviava-se gradualmente e, de vez em quando, dirigia ao seu companheiro, olhares pesquisadores, curiosos e penetrantes.
A encantadora Duquesa de D*** fez observar à animada reunião o olhar abstrato e a enrugada testa do poeta; e Condorcet, que não gostava que fosse levada a atenção a outrem quando ele estava presente, disse a Cazotte:
E que nos diz você da Revolução? Ou, ao menos, qual a sua opinião sobre a maneira como ela influirá sobre nós?
Cazotte sobressaltou-se ao ouvir esta pergunta; as suas faces empalideceram; grossas gotas de suor corriam por sua fronte; os seus lábios tremiam; os seus alegres companheiros miraram-no cheios de surpresa.
Fale! - murmurou o estrangeiro, pondo sua mão, suavemente, sobre o braço do ancião.
A esta palavra, a fisionomia de Cazotte tomou uma expressão grave e rígida, o seu olhar errou pelo espaço e, com voz baixa e rouca, respondeu o velho poeta:
Pergunta-me você que efeito a Revolução produzirá sobre os seus mais ilustrados e desinteressados agentes. Vou responder-lhe. O Marquês de Condorcet, morrerá numa prisão, mas não pela mão do verdugo. Na tranquila felicidade daquele dia, o filósofo levará consigo não o elixir, mas o veneno.
Meu pobre Cazotte - disse Condorcet, com seu amável sorriso - que têm que ver as prisões, os verdugos e os venenos com uma era de liberdade e fraternidade?
É em nome da Liberdade e da Fraternidade que as prisões estarão cheias, e o algoz terá muito que fazer.
Sem dúvida, você se refere ao reinado dos padres, e não ao da filosofia, Cazotte, - disse Champfort. 
E a mim, o que está previsto?
Você abrirá suas próprias veias para escapar à fraternidade de Caim. Console-se; as últimas gotas não seguirão a navalha. Para você, venerável Malesherbes; para Aimar Nicolai; para o douto Bailly - vejo levantar-se o cadafalso! E, entretanto, ó grandes filósofos, os seus assassinos não falarão senão de filosofia!

O silêncio era completo e geral, quando o pupilo de Voltaire, - o príncipe dos cépticos acadêmicos, o ardente La Harpe (consultar), -exclamou com riso sarcástico:
Não me lisonjeie, ó profeta, excluindo-me do destino dos meus companheiros. Não terei eu nenhum papel para representar, neste drama de suas fantasias?
A esta pergunta, o semblante de Cazotte perdeu aquela estranha expressão de terror e rigidez; o seu constante humor sardônico tornou ao poeta e brincou nos seus olhos brilhantes.
Sim, La Harpe, reservo a você o papel mais maravilhoso de todos! O de se transformar em cristão.
Isto era demasiado para o auditório que, um momento antes, parecera sério e meditabundo, e todos, menos o estrangeiro, caíram numa forte gargalhada, ao passo que Cazotte, como se estivesse exausto por essas suas predições, caiu sobre a cadeira, respirando pesada e dificilmente.
Agora, - disse Mme. De G***, - que nos predisse coisas tão graves para nós, é dever profetizar também algo para si mesmo.
Um tremor convulsivo sacudiu o involuntário profeta, - e, a seguir, a sua fisionomia animou-se de uma expressão de resignação e calma.
Senhora, - respondeu Cazotte, depois de uma longa pausa, - o historiador de Jerusalém nos diz que, durante o sítio daquela cidade, um homem andou sete dias consecutivos ao redor das muralhas, gritando: “Ai de ti, Jerusalém, e ai de mim!”
Bem, Cazotte, e que mais?
E ao cabo dos sete dias, enquanto ele assim falava, uma pedra arrojada pelas máquinas dos romanos, esmagou-o.
Ditas estas palavras, Cazotte se levantou; e os hóspedes, profundamente impressionados, contra sua vontade, também fizeram o mesmo, e retiraram-se.

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni