quarta-feira, 21 de março de 2018

Zanoni III





Zanoni

Capítulo III

O Amor despontou do camarote

“Fra si contrarie tempre in ghiaccio e in foco, In riso e in pianto, e fra paura e speme, L’ingannatrice Donna”

“Entre tão contrárias misturas de gelo e fogo, riso e pranto, temor e esperança, a Mulher enganadora”

Gerusal. Lib., canto IV, 44.

Não obstante a vitória definitiva da atriz e da ópera houve um momento, no primeiro ato, e, por conseguinte, antes da chegada de Pisani, em que a queda da balança parecia mais que duvidosa. Foi num coro cheio de todas as singularidades do autor. E quando este Maelstrom de Caprichos rolava e espumava, dilacerando os ouvidos e os sentidos com toda a variedade de sons, o auditório reconheceu simultaneamente a mão de Pisani. Por precaução, havia-se dado à ópera um título que afastava toda a suspeita de sua procedência; e a introdução e o princípio dela, em que havia uma música regular e suave, fez o público crer que ouvia algo do seu favorito Paisiello. Acostumado desde muito tempo a ridicularizar e quase desprezar as pretensões artísticas de Pisani, como compositor, o auditório julgou que havia sido ilicitamente enganado e seduzido para os aplausos, com que saudara a introdução e as primeiras cenas. Um uníssono zunido circulou por todo o teatro: os atores e a orquestra, - eletricamente impressionados com o desagrado do público, - começaram a agitar-se e a desmaiar, deixando de emprestar aos respectivos papéis a necessária energia e precisão, que era o único recurso com que se podia dissimular o grotesco da música.
Em cada teatro, sempre que se trata de um novo autor e de um novo ator, são numerosos os rivais, - partido impotente quando tudo vai bem, porém uma perigosa emboscada desde o momento em que qualquer acidente introduz a menor confusão no curso dos acontecimentos. Levantou-se um murmúrio; é verdade que era um murmúrio parcial, mas o silêncio significativo que reinava por toda parte pressagiava que aquele desgosto não tardaria em se tornar contagioso. Pode-se dizer que a tempestade pendia de um fio de cabelo. Em tão crítico momento, Viola, a rainha Sereia, emergia pela primeira vez do fundo do Oceano. A medida que ia aproximando-se das luzes, a novidade de sua situação, a fria apatia dos espectadores, - sobre os quais nem a vista daquela singular beleza parecia produzir, a principio, a mais ligeira impressão, - o cochilar malicioso dos outros atores que havia no cenário, o resplendor das luzes e sobretudo aquele recente murmúrio que chegara a seus ouvidos enquanto se achava no seu esconderijo, todas estas coisas gelaram as suas faculdades e suspenderam-lhe a voz. E, em vez da grande invocação, na qual devia imediatamente prorromper, a régia Sereia, transformada em tímida menina, permaneceu pálida e muda ante aquela multidão de frios olhares que a ela se dirigiam.

Naquele instante, quando parecia já abandoná-la a consciência de sua existência, e quando dirigia um tímido olhar suplicante sobre a multidão silenciosa, Viola percebeu, num camarote do lado do cenário, um semblante que, de repente e como por magia, produziu sobre a sua mente um efeito incapaz de poder-se analisar nem esquecer. Pareceu-lhe que despertavam em sua imaginação uma daquelas vagas e frequentes reminiscências que acariciara nos momentos de suas ilusões infantis. Não podia apartar a sua vista daquele semblante e, à medida que o contemplava, o terror e o frio, que se apoderavam dela ao apresentar-se ante o público, dissipou-se como a névoa diante do sol.
No escuro esplendor dos olhos que encontravam os seus, havia realmente uma doçura que a reanimava tanto, e uma admiração benévola e compassiva, - tanta coisa que aquecia, animava e revigorava, - que qualquer que fosse o ator ou espectador, que houvesse observado o efeito que produz um sério e benévolo olhar da multidão dirigido à pessoa que se apresenta ante esta, e pela dita pessoa é percebida, teria compreendido a repentina e inspiradora influência que o olhar e o sorriso do estrangeiro exerceram sobre a estreante.
E, enquanto Viola ainda o mirava, e o ardor voltava ao seu coração, o estrangeiro levantou-se, como para chamar a atenção do público sobre o dever de cortesia para com uma jovem tão formosa; reanimada, começou esta a cantar e, apenas se fez ouvir a sua voz o público prorrompeu numa salva de generosos aplausos. Este estrangeiro era uma personagem notável, e, além da nova ópera, fora a sua chegada a Nápoles o objetivo principal das conversações naqueles dias. E quando cessou o aplauso, a Sereia renovou o seu canto com voz clara, cheia e livre de todo o embaraço, como o espírito libertado do pesado barro.
Desde aquele momento, Viola esqueceu o auditório, o acidente, o mundo inteiro, - exceto esse paraíso ideal ao qual ela presidia. Parecia que a presença do estrangeiro servia somente para mais ainda acrescentar essa ilusão, na qual os artistas não vêem criação alguma fora do círculo de sua arte. Viola sentia como se aquela fronte serena e aqueles olhos brilhantes lhe inspirassem poderes anteriores nunca conhecidos: e, como se buscando uma linguagem para expressar as estranhas sensações produzidas pela presença do desconhecido, esta mesma presença lhe insuflasse a melodia e o canto.
Somente quando terminou a função, e Viola viu seu pai e sentiu a alegria dele, cedeu aquele estranho encanto, para dar lugar à pura expansão do amor filial. Contudo, quando se retirava do cenário, volveu a cabeça involuntariamente, e o seu olhar encontrou-se com o do estrangeiro, cujo tranquilo e melancólico sorriso lhe caiu até ao fundo do coração, - para ali viver e despertar em sua alma recordações confusas, meio risonhas e meio tristes.

Depois das congratulações do bom Cardeal-Virtuoso, admirado, como toda Nápoles, de haver vivido tanto tempo no erro a respeito desse assunto do gosto, - e mais admirado ainda de ver que toda Nápoles confessava este seu erro; depois de ter ouvido murmurar mil elogios que aturdiam a pobre atriz, esta, com seu modesto véu e seu traje singelo, passou por entre a multidão de admiradores que a aguardavam em todos os corredores do teatro; depois do terno abraço do pai com a filha, volveram à sua casa na carruagem do Cardeal, atravessando as ruas iluminadas só pelas estrelas, e ao longo da estrada deserta; a escuridão não deixou ver as lágrimas da boa e sensível mãe. Eis que, já em sua casa e no seu benvindo quarto, - “Venimus ad larem nostrum”; a velha Gianetta, intensamente atarefada em preparar a ceia, observe Pisani como tira o bárbito de sua caixa para comunicar-lhe tudo o que sucedeu; escute como a mãe ri com toda a alegria tranquila de um riso inglês.
Por que Viola, estranha criatura senta-se sozinha num canto com as faces apoiadas em suas lindas mãos e com os olhos fixos no espaço? Levante-se! Tudo deve rir em sua casa, esta noite.
Feliz era o grupo que se sentou em redor daquela mesa humilde: era uma festa capaz de causar inveja ao próprio Lúculo, em sua sala de Apoio; havia uvas secas, delicadas sardinhas, rica “polenta” e o velho vinho “Lácrima”, presente do bom Cardeal.
O bárbito, colocado numa alta cadeira, ao lado do músico, parecia participar da festiva ceia. A sua honesta e envernizada lace brilhava à luz da lâmpada; e havia algo de astuta gravidade em seu silêncio, quando, depois de cada bocado engolido, o seu amo se dirigia a ele para dizer-lhe alguma coisa que se esquecera de contar-lhe. A boa esposa olhava afeiçoada de um lado para outro, e a alegria que experimentava não lhe permitia comer; até que, levantando-se de repente, correu a colocar sobre as fontes do artista uma coroa de louros, que o seu carinho lhe fizera preparar já antecipadamente; e Viola, sentada ao outro lado do seu irmão, o bárbito, arrumava o boné e alisava os cabelos de seu pai, dizendo-lhe:

Querido papai, não deixará, daqui para diante, que “ele” me ralhe, não é verdade?

Então, o pobre Pisani, louco de prazer entre sua filha e o violino, e um tanto excitado pelo “Lácrima” e pelo seu triunfo, voltou-se para Viola, e, com ingênuo e grotesco orgulho, disse-lhe:

Não sei a quem dos dois devo estar mais agradecido. Você me causou um grande prazer, querida filha, e estou orgulhoso de ti e de mim. Mas ele e eu, pobre companheiro, temos passado juntos tantos momentos de sofrimento!

O sono de Viola foi inquieto, perturbado, e isso era natural. A embriagues da vaidade e do triunfo, e a sua felicidade, pela felicidade que causara, eram coisas melhores do que dormir. Não obstante, o seu pensamento voava seguidamente atrás daqueles olhos expressivos e daquele doce sorriso, aos quais deveria ir para sempre unida à recordação do seu triunfo e da sua felicidade. Seus sentimentos, como o seu caráter mesmo, eram estranhos e peculiares. Não eram os de uma jovem cujo coração, alcançado pela primeira vez pelo olhar, suspira sua natural e original linguagem do primeiro amor. Ainda que o rosto, que em todas as ondas de sua desassossegada imaginação se refletia, ostentasse uma singular majestade e beleza, não era tanto a admiração, nem a lembrança agradável e amorosa que a vista desse estrangeiro despertara no seu coração: mas era um sentimento humano de gratidão e prazer, mesclado a outra ideia misteriosa de medo e respeito. Estava certa de que tinha visto, já antes, aquelas feições; porém, quando e onde? Sem dúvida, só quando seus pensamentos haviam tratado de penetrar no seu futuro, e quando, apesar de todos os esforços para apresentar em sua imaginação um porvir semeado de flores e cheio de agradáveis raios solares, um negro e glacial pressentimento a fazia retroceder ao seu mais profundo interior. Parecia-lhe como se tivesse achado uma coisa que, desde muito tempo, buscara por entre mil tristes inquietações e vagos desejos, menos do coração que da mente; não como quando o estudante, depois de ter-se fatigado, correndo muito tempo atrás de uma verdade científica, a vê brilhar confusamente diante de si, porém ainda longe, e a vê luzir, apagar-se, reaparecer, e novamente sumir-se. Por fim, Viola caiu num sono inquieto, povoado de disformes, fugitivos, vagos fantasmas; e, ao despertar, quando os raios do sol, rompendo por meio de um véu de nebulosa nuvem, brilhavam indecisos através da janela, ouviu seu pai que desde muito cedo se havia entregado à sua tarefa quotidiana, arrancando do seu violino um lento e triste som, parecido a um canto fúnebre.

Como é, - perguntou Viola, quando desceu ao quarto de Písani, - como é, meu pai, que sua inspiração foi tão triste, depois da alegria da noite passada?

Não sei minha filha. Eu queria estar alegre e compor algo para dedicar-lhe, mas este obstinado não quis dar outras notas além das que você ouviu.

(continua)

Os capítulos desta obra fazem parte da coleção do G +: Zanoni