sábado, 17 de março de 2018

Zanoni II







Zanoni

Capítulo II

“Fu stupor, fu vaghezza, fu dileto!”“

Foi uma admiração, foi um prazer, foi um deleite!”

Gerusal. Líb, canto II, 21.

A Estréia de Viola


Enfim, a educação artística acha-se terminada! Viola tem perto de dezesseis anos. O Cardeal declara que chegou o tempo de inscrever um novo nome no Livro de Ouro, reservado aos filhos da Arte e do Canto, mas com que caráter?
Qual o gênio a que Viola deve dar forma e vida?
Ah! aqui está o segredo! Correm rumores de que o infatigável Paisielo encantado da maneira com que a jovem executou o seu “Nel cor piu non mi sento”, e o seu “Io son Lindoro”, quer produzir alguma nova obra mestra para a estréia da nova artista. Outros insistem em que Viola é mais forte no cômico, e que Cimarosa está trabalhando assiduamente para dar outro “Matrimônio Secreto”. Ao mesmo tempo, se observa que, em outras partes, reina uma reserva diplomática, e que o Cardeal está de humor pouco alegre. Ele disse publicamente estas portentosas palavras:

Esta tola menina é tão sem juízo como seu pai; o que ela pede é absurdo!
Celebra-se uma conferência atrás de outra; o Cardeal fala muito solenemente, em seu gabinete, à pobre jovem, - tudo em vão. Nápoles se perde num mar de curiosidade e conjecturas. A leitura termina numa dissensão e Viola regressa à casa, enfadada e teimosa: não representará, - desfez o contrato!
Pisani, que não conhecia os perigos do teatro, tinha concebido a lisonjeira esperança de que ao menos uma pessoa de sua família aumentaria a celebridade da sua arte. A obstinação da filha causava-lhe grande desgosto; todavia, não disse uma só palavra de enfado. Pisani nunca ralhava com palavras, mas contentava-se em agarrar o seu fiel bárbito. O fiel bárbito, de que horrível maneira te ralhava! O instrumento crocitava, gralhava, gemia, rosnava. E os olhos de Viola enchiam-se de lágrimas, porque ela compreendia aquela linguagem.
A jovem aproximou-se de sua mãe e falhou-lhe ao ouvido; e quando o pai voltou do teatro, onde fora tocar, viu que sua mãe e a filha estavam chorando.
Ele as contemplou com admiração; e, em seguida, como se sentisse haver sido demasiado duro para com elas, correu outra vez a agarrar o violino. E agora, eis que se faz ouvir o arrulho melodioso de uma fada, tratando de consolar um filho impertinente que havia adotado. Sons suaves, influentes, argentinos, manavam do instrumento, tocado pelo mágico arco. O mais intenso pesar desaparecia diante daquela melodia; e, contudo, às vezes ouvia-se uma nota estranha, alegre, repicante, parecida a um riso, porém não ao riso mortal. Era um dos trechos mais excelentes da sua querida ópera, - a Sereia no ato de encantar as ondas e adormecer os ventos. O Céu sabe o que teria acontecido em seguida, se o seu braço não tivesse sido detido. Viola se lançava ao seu peito, abraçando-o e beijando-o, com os olhos radiantes de felicidade...
Neste mesmo instante, abriu-se a porta, para dar entrada a um mensageiro do Cardeal. Viola devia apresentar-se imediatamente à casa de Sua Eminência. A mãe a acompanhou. Fez-se a reconciliação, e tudo ficou arranjado num instante; Viola foi de novo admitida, e escolheu, ela mesma, a sua ópera. Ó sombrias nações no Norte, ocupadas com suas dissensões e seus debates, em suas trabalhosas vidas do Pnyx e do Agora! - não se pode imaginar que grande movimento ruidoso produziu entre a gente musical de Nápoles o rumor de uma nova ópera e de uma nova cantora.
Mas que ópera será esta?
Nunca tinha sido tão secreta a intriga de gabinete, como desta vez. Pisani voltou, uma noite, do teatro, evidentemente enfadado e irado. Pobres dos seus ouvidos, leitor, se tivessem escutado o bárbito aquela noite! Haviam-no suspenso do seu emprego, temendo que a nova ópera e a primeira representação de sua filha, como “prima dona”, afetassem demasiados os seus nervos.
E, em tal noite, as suas variações, as suas endemoninhadas sereias e harpias, produziram uma algazarra que não se poderia ouvir sem terror. Separado do teatro, e isso exatamente na noite em que sua filha, cuja melodia não era senão uma emanação da sua, ia representar pela primeira vez! Estar à parte e ausente, para que ocupasse o seu posto algum novo rival: isto era demasiado para um músico de carne e osso!
Pela primeira vez, o artista se expressou em palavras sobre este assunto, perguntando, com muita gravidade, - pois nesta questão o bárbito, apesar de sua eloquência, não podia expressar-se claramente, - qual era a ópera que devia executar-se, e qual o papel que a jovem devia representar?
E Viola respondeu, também com gravidade, que o Cardeal lhe tinha proibido que o revelasse. Pisani não respondeu, mas desapareceu com o seu violino; foi-se ao mais alto da casa (onde, às vezes, quando estava de péssimo humor, se refugiava), e, em seguida, a mãe e a filha ouviram o violino lamentar-se e suspirar de um modo capaz de partir o coração.

As afeições de Pisani manifestavam-se muito pouco no seu semblante. Não era um desses pais carinhosos, cujos filhos estão sempre brincando ao redor dos seus joelhos; sua mente e sua alma pertenciam tão inteiramente à sua arte, que a vida doméstica deslizava para ele como se fosse um sonho, e o coração, a forma substancial, o corpo da existência.
As pessoas que cultivam um estudo abstrato, especialmente os matemáticos, costumam ser assim. Quando o criado de um célebre filósofo francês foi correndo dizer a este: - “Senhor, a casa está em chamas!” - respondeu o sábio, apenas levantando por um momento a vista dos seus problemas: - “Vai dizê-lo a minha mulher, imbecil! Tenho eu que cuidar de assuntos domésticos?“ - E que são as matemáticas para um músico, e, sobretudo para um músico que não só compõe Óperas, mas também toca o bárbito?
Sabem o que respondeu o ilustre Giardini, quando um principiante lhe perguntou quanto tempo deveria empregar para aprender a tocar violino? Ouçam e desesperem os impacientes, que desejam dobrar o arco em comparação com o qual o arco de Ulysses foi apenas um brinquedo: - “Doze horas todos os dias, por espaço de vinte anos seguidos!”
Poderá, pois, um homem que toca o bárbito, estar sempre brincando com seus filhinhos?
Não, Pisani! Muitas vezes, com a fina suscetibilidade de sua infância, a pobre Viola se tinha retirado da sua presença, para chorar, pensando que não a amava. E, contudo, debaixo desta superficial abstração do artista, se ocultava um afetuoso carinho; e à medida que a jovem foi crescendo, um sonhador foi compreendendo o outro.
E agora, não só lhe era fechado o caminho da fama, mas até não se lhe permitia saudar a glória nascente da filha! - e esta filha havia entrado numa conspiração contra ele! Tamanha ingratidão era mais cruel do que a picada de uma serpente; e mais cruéis e dolorosos foram ainda os lamentos do bárbito!
Chegou a hora decisiva.
Viola dirigiu-se ao teatro, acompanhada de sua mãe.
O indignado músico ficou em casa.

Uma hora depois, Gianetta entrou correndo no quarto e disse-lhe:

A carruagem do senhor Cardeal está à porta; o seu protetor manda buscá-lo.

Pisani teve que deixar a um lado o seu violino; era necessário por a casaca bordada e os punhos rendados.

Aqui estão; ligeiro, ligeiro! E já rola a luxuosa carruagem, e o cocheiro, sentado majestosamente na boléia, açoita os briosos cavalos. O pobre Pisani, envolto numa nuvem de confusão, não sabe o que se passa. Chega ao teatro; apeia-se à porta principal; começa a olhar de um lado para outro; sente que lhe falta alguma coisa, - onde está o violino? Ai! a sua alma, a sua voz, o seu próprio ser, ficou em casa! O músico não era então outra coisa senão um autômato que os lacaios conduziam, por entre corredores, ao camarote do Cardeal.
Que surpresa, ao entrar ali! Estaria sonhando? O primeiro ato havia terminado. Não quiseram mandar buscá-lo até que o sucesso estivesse assegurado. O primeiro ato decidiu o triunfo. Pisani advinha isto pela elétrica simpatia que se comunica de coração em coração numa grande reunião de pessoas.
Sente-o no silêncio profundo que reina entre o auditório; compreende-o até pela atitude do Cardeal, que o recebeu com o dedo levantado.
Pisani vê sua Viola no cenário, deslumbrante em seu vestido semeado de pedras preciosas, - ele ouve sua voz que extasia milhares de corações. Porém, a cena, o papel, a música! É outra sua filha, -sua imortal filha; a filha espiritual da sua alma; a sua filha predileta que ele acariciava, por muitos anos, na obscuridade; a sua obra prima; a sua opera “A Sereia!” Este, pois, foi o mistério que tanto o atormentara, - esta a causa da sua dissensão com o Cardeal; este o segredo que não devia revelasse até que o êxito estivesse garantido; e a filha tinha unido o seu triunfo ao de seu pai!
E ela estava ali, enquanto todos os corações se inclinavam diante dela, - mais formosa do que a mesma Sereia que lhe inspirava aquelas melodias. Oh, longa e doce recompensa do trabalho! Que prazer há, na terra, igual ao que desfruta o gênio, quando, por fim, abandona a sua obscura caverna, para aparecer à luz e cercar-se de fama!?
Pisani não falava, nem se movia; estava deslumbrado, sem respirar; grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces; só, de quando em quando, moviam-se suas mãos, - maquinalmente procuravam o seu fiel instrumento; por que não estaria ali, para participar do seu triunfo?
Por fim, o pano caiu; mas que tempestade de aplausos!
O auditório levantou-se como um só homem, - aclamando, com delírio, aquele nome querido. Viola apresentou-se, trêmula e pálida, e, em toda aquela multidão, não viu senão a face de seu pai.
O auditório, seguindo a direção daquele olhar umedecido, adivinhou o impulso da filha, e compreendeu a sua significação.
O bom e velho Cardeal puxou delicadamente o músico para diante. - Músico indomável você acaba de receber de sua filha uma coisa de maior valor do que a vida que lhe deu! - Meu pobre violino! - exclamou Pisani, enxugando os olhos, - agora nunca mais tornarão a assobiá-lo!

Os capítulos desta obra fazem parte da coleção do G +: Zanoni

(continua)