quinta-feira, 26 de abril de 2018

Zanoni XI






Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo I

 Decidindo na Espada

“Centauri, e Sfingi, e pallide Gorgoni”. Gerusal. Lib., canto IV, 5

“Centauros e Esfinges e pálidas Górgonas”.

Numa noite enluarada, nos Jardins de Nápoles, quatro ou cinco cavalheiros, sentados debaixo de uma árvore, tomavam o seu sorvete e, nos intervalos da conversação, ouviram a música que animava aquele lugar favorito de alegres reuniões de uma população indolente. Um deste pequeno grupo, jovem inglês, que momentos antes parecia o mais alegre e vivaz dessa reunião, tornou-se subitamente triste e pensativo. Um dos seus compatriotas observou esta mudança repentina e, dando-lhe uma pancadinha no ombro, disse:
Que tem, Glyndon? Está doente? Vejo-o tão pálido e a estremecer... Sente frio? Será melhor que se retire; estas noites italianas são, muitas vezes, perigosas para os nossos temperamentos.
Não é nada; já me sinto bem. Foi um tremor passageiro que não sei a que atribuir.
Um homem, de aparência ainda mais distinta que os demais, e que parecia ter uns trinta anos de idade, voltando-se repentinamente para Glyndon, fixou nele os olhos e disse:
Parece-me que compreendo o que tem e, talvez, - acrescentou com um ligeiro sorriso,   poderia explicá-lo melhor que o senhor mesmo.
Em seguida, dirigindo-se aos outros, continuou:
Sem dúvida, cavalheiros, todos já experimentaram várias vezes, especialmente ao estarem sós, de noite, uma sensação estranha e inexplicável de frio e terror que os assalta de repente; o sangue gela; o coração cessa de bater; as pernas tremem; os cabelos se eriçam; têm medo de lançar os olhos para os cantos mais escuros do quarto; apresenta-se, em suas mentes, uma idéia que os horroriza, como, por exemplo, de se encontrar diante de alguma coisa extraterrestre. De repente, porém, todo esse feitiço, se assim podemos chamá-lo, cessa, desvanece-se, e quase sentem vontade de rir de semelhante fraqueza. Não têm experimentado, muitas vezes, esta sensação, que acabo de descrever-lhes imperfeitamente? Se assim é, poderiam compreender o que o nosso jovem amigo acaba de sentir, neste momento, apesar de estar rodeado das delícias desta mágica cena, e respirando as brisas balsâmicas desta noite de Julho.
Senhor, - respondeu Glyndon, evidentemente muito surpreendido, acaba de definir exatamente a natureza do arrepio que me assaltou. Como, porém, pôde, de um modo tão precioso, notar as minhas impressões?
Conheço os sinais característicos, - replicou o estrangeiro, seriamente; - e estes não enganam facilmente a quem tem a experiência que eu tenho.
Todos os presentes declararam, então, que compreendiam perfeitamente o que o estrangeiro acabava de descrever, porque o haviam experimentado alguma vez.
Segundo uma superstição do meu pai, - disse Mervale, o inglês que primeiramente dirigia a palavra a Glyndon, - no momento em que você sente que o seu sangue está gelado e que se eriçam seus cabelos é porque alguém pôs o pé no sítio em que está sua sepultura.
Em todos es países existem diferentes superstições para explicar este fenômeno tão comum, - replicou o estrangeiro; entre os árabes, por exemplo, há uma seita que crê que, naquele instante, Deus decreta sua morte, ou a morte de alguma pessoa que lhe é cara. Os selvagens africanos, cuja imaginação está cheia de horrores de sua tenebrosa idolatria, crêem que o demônio está puxando, naquele momento, a pessoa pelos cabelos; assim se mescla o terrível com o grotesco.

Evidentemente, o fenômeno de que nos ocupamos não é outra coisa senão um acidente físico, uma indisposição do estômago ou uma paralisação na circulação do sangue - disse um jovem napolitano, que poucos dias antes fora apresentado a Glyndon.
Por que, então, em todas as nações esta sensação vai sempre acompanhada de algum pressentimento supersticioso ou algum temor, - formando uma conexão entre o corpo material e o suposto mundo fora de nós? Por minha parte, eu penso que...
Que é o que pensa, meu caro? - perguntou Glyndon, com curiosidade.
Penso - prosseguiu o estrangeiro - que é a repugnância e o horror com que os nossos elementos mais humanos retrocedem ante alguma coisa, naturalmente invisíveis, porém antipática à nossa natureza, e que não nos é dado conhecer por causa da imperfeição dos nossos sentidos.
Então crê na existência dos espíritos? - inquiriu Mervale, com um sorriso incrédulo.
Não era precisamente dos espíritos que eu falava; porém, podem existir formas de matéria, tão invisíveis e impalpáveis para nós, como o são os animálculos no ar que respiramos, - ou da água que corre daquela fonte. Aqueles seres podem ter suas paixões e seus poderes, da mesma forma como nós temos as nossas paixões e os nossos poderes e como animálculos aos quais os comparei. O monstro que vive e morre numa gota de água, - carnívoro, insaciável, subsistindo às criaturas ainda menores do que ele mesmo, - não é menos mortífero em sua fúria, nem menos feroz em sua natureza, do que o tigre do deserto. Existem talvez, ao redor de nós, muitas coisas que seriam perigosas e hostis para os seres humanos, se a Providência não tivesse levantado uma barreira entre elas e nós, por diferentes modificações da matéria.
E pensa o senhor que estas barreiras nunca podem ser removidas? - perguntou, de repente, o jovem Glyndon. - As tradições de feiticeiros e bruxas, tão universais e imemoriais como são, não passarão de meras fábulas?

Talvez sim, talvez não, - respondeu o estrangeiro, com indiferença. - Mas quem, numa época em que a razão tem estabelecido os seus próprios limites, seria bastante louco para romper a barreira que o separa da jibóia e do leão, - ou para murmurar e rebelar-se contra a lei que encerra a tubarão no grande abismo? Porém, deixemos estas vãs especulações.
Ao dizer isto, o estrangeiro se levantou, chamou o “garçom”, pagou o seu sorvete, cumprimentou aos demais do grupo e desapareceu, em seguida, entre as árvores.
Quem é este cavalheiro? - perguntou Glyndon, com curiosidade.Todos se entreolharam, sem responder, até que, passados alguns minutos, disse Mervale: Esta é a primeira vez que o vi.- Eu também.- E eu igualmente.
Eu o conheço bem, - disse o napolitano, que era o nosso conhecido, o conde Cetoxa. - Se estão lembrados, ele veio até aqui como meu companheiro. Haverá uns dois anos, que este homem visitou Nápoles, e há poucos dias veio outra vez à cidade. É muito rico, - muitíssimo rico, e uma pessoa agradabilíssima. Sinto que tenha falado, esta noite, de uma forma tão estranha, pois isto servirá para confirmar os diversos boatos loucos que circulam a seu respeito.
E seguramente, - disse um outro napolitano, - o fato que aconteceu outro dia, e que o meu caro Cetoxa conhece perfeitamente, justifica as suposições que pretende desprezar.
Eu e o meu compatriota - disse Glyndon - freqüentamos tão pouco a sociedade de Nápoles, que ignoramos muitas coisas que parecem dignas de interesse. Quer fazer-nos o obséquio de contar-nos esse fato, e o que se diz a respeito desse homem?
Quanto aos boatos que circulam, cavalheiros, - disse Cetoxa, dirigindo-se cortesmente aos dois ingleses, - basta observar que atribuem ao Senhor Zanoni certas qualidades que cada um desejaria ter para si, porém condena a qualquer outra pessoa que parece possuí-las. O acontecimento, a que alude o Senhor Belgioso, exemplifica estas qualidades e é, devo confessá-lo, um tanto surpreendente. Provavelmente jogam, cavalheiros? (Aqui, Cetoxa fez uma pausa. Como, efetivamente, os dois ingleses haviam arriscado alguns escudos nas mesas de jogo, inclinaram-se levemente, para afirmar a suposição). Cetoxa continuou: - Bem; pois saibam que, há pouco tempo, no mesmo dia em que Zanoni regressara a Nápoles, estava eu jogando, tinha perdido quantias consideráveis. Levantei-me da mesa, decidido a não tentar mais a fortuna, quando, de repente, percebi Zanoni, de quem me fizera amigo em outro tempo (e que, posso dizê-lo, me devia uma pequena obrigação), estando na sala como mero espectador. Antes de eu poder manifestar-lhe o meu prazer de vê-lo, pôs sua mão sobre o meu ombro, e disse-me:

“Perdeu muito; mais do que podia despender. Por minha parte, não gosto de jogar; mas quero ter algum interesse pelo que está se passando. Quer jogar esta quantia por mim? As perdas correm por minha conta; e, se ganhar, repartiremos pela metade, os benefícios”.
Como podem supor, esta proposta deixou-me desconcertado; porém, Zanoni o dizia com um ar e tom que era impossível resistir-lhe; além disso, eu ardia em desejos de recuperar o que havia perdido, e não me teria levantado da mesa, se me tivesse sobrado algum dinheiro. Respondi-lhe que aceitava a sua oferta, porém com a condição de que repartíssemos tanto os ganhos como as perdas.
“Como quiser, - respondeu-me sorrindo; - não precisamos ter escrúpulos, porque, com certeza, irá ganhar”.
“Sentei-me e Zanoni se pôs em pé atrás de mim. A minha sorte mudou, e isso de tal maneira que não fiz mais do que ganhar continuamente. Com efeito, levantei-me da mesa muito rico”.
Não é possível trapacear nos jogos públicos, e, sobretudo quando a trapaça teria que ser feita contra a banca - asseverou Glyndon.
Certamente - respondeu o conde; porém a nossa sorte era tão extraordinária, que um siciliano (os sicilianos são, em geral, malcriados e de mau gênio) tornou-se colérico e até insolente.
“Senhor, - disse ele, dirigindo-se ao meu novo amigo, - nada tem que fazer tão perto da mesa”.
Zanoni respondeu-lhe, com bons modos, que não fazia nada que fosse contrário às regras do jogo, que sentia muito que um homem não pudesse ganhar sem outro perder, e que ali não poderia fazer nada de má fé, nem que estivesse disposto a fazê-lo. O siciliano tomou por medo a brandura do estrangeiro, e começou a censurá-lo em voz ainda mais alta; e até se levantou da mesa e pôs-se a olhar para Zanoni de um modo capaz de fazer perder a paciência a qualquer cavalheiro que tivesse sangue inflamável ou que soubesse manejar a espada”.
E o mais singular, - interrompeu Belgioso, - o que mais me surpreendeu é que Zanoni, que estava em frente de mim, e cujo semblante, por conseguinte, eu podia examinar distintamente, não mudou as feições, nem mostrou o menor ressentimento. Ele fixou sua vista no siciliano de uma forma impossível de descrever; nunca me esquecerei daquele olhar! - gelava o sangue nas veias. O siciliano titubeou como se tivesse sido golpeado, estremeceu e caiu sobre o banco. E depois...

Sim, depois, - concluiu Cetoxa, - com grande surpresa minha, o nosso cavalheiro, desarmado por um olhar de Zanoni, dirigiu a sua ira contra mim... Porém, talvez ignorem, senhores, que a minha habilidade no manejo das armas me tem valido alguma reputação.
É o melhor esgrimista da Itália, - afirmou Belgioso.
Antes que tivesse tempo de saber por que motivo -prosseguiu Cetoxa, - encontrei-me no jardim detrás da casa, com Ughelli (este era o nome do siciliano) encarando-me, e com cinco ou seis cavalheiros, que deviam ser as testemunhas do nosso duelo. Zanoni, chamando-me à parte, disse-me:
“Este homem cairá. Quando ele estiver no chão, pergunte-lhe se quer que o enterrem ao lado de seu pai na igreja de São Januário”.
“Conhece, então, a sua família?” - perguntei-lhe, surpreendido.
Zanoni não me respondeu, e um momento depois estava eu batendo-me com o siciliano. Para fazer-lhe justiça devo dizer que o seu “imbrogliato” era magnífico, e que nunca um mandrião manejou a espada com mais destreza; apesar disso, porém, - acrescentou Cetoxa, com agradável modéstia, - caiu com o corpo atravessado pela minha arma. Aproximei-me e vi que o desgraçado mal podia falar.
Tem que me encarregar de algo, ou tem algum negócio para ultimar? - perguntei-lhe.
“O ferido fez um sinal negativo”.
“Onde quer ser enterrado?” - tornei a perguntar. “Ele apontou a costa da Sicília”. -
“Como? - observei, com surpresa, - não quer ser sepultado na igreja de São Januário, ao lado de seu pai”?
“Ao ouvir estas minhas palavras, o seu semblante alterou-se terrivelmente; Ughelli soltou um grito agudo, lançou uma golfada de sangue pela boca, e expirou”.
“Agora vem a parte mais misteriosa desta história. Enterramos o siciliano na igreja de São Januário. Para este fim, levantamos a tampa do caixão onde estavam os restos mortais de seu pai cujo esqueleto ficou descoberto. Na cavidade do crânio, encontramos um pedaço de arame de aço delgado e duro. Isto nos causou surpresa, e levou a fazer-se investigações. O pai do meu rival, que era um homem rico e avarento, falecera repentinamente, e, devido ao grande calor da estação, fora sepultado sem perda de tempo. Como nosso achado levantasse suspeita, procedeu-se a um exame minucioso do cadáver. Foi inquirido o criado do velho Ughelli, o qual confessou, por fim, que o filho havia assassinado o pai. O ardil tinha sido engenhoso: o arame de aço era tão delgado, que atravessou o cérebro sem que saísse mais do que uma gota de sangue, que os cabelos ocultaram. O cúmplice morrerá no patíbulo”.

E Zanoni sabia desses fatos? Ele lhe contou?
Não, - respondeu o conde; - ele declarou que, por um acaso, havia visitado, naquela manhã, a igreja de São Januário: que havia reparado na lousa sepulcral do conde Ughelli; que o seu guia lhe havia dito que o filho desse conde estava em Nápoles, e que era perdulário e jogador. Enquanto jogávamos, Zanoni havia ouvido pronunciar o nome do conde Ughelli à mesa; e quando estivemos no terreno do duelo, veio-lhe a lembrança de ter visto a tumba do pai do meu rival, e ele, conforme assegura, falou-me nela, levado a isto por um instinto que não podia ou não queria explicar.
Uma história bastante explicável, - disse Mervale.
Sim! Mas nós os italianos, somos supersticiosos; aquele instinto foi considerado, por muitos, como um aviso da Providência. No dia seguinte, o estrangeiro foi objeto de curiosidade e interesse geral. A sua riqueza, o seu modo de viver, a extraordinária beleza da sua pessoa, têm contribuído também para que seja olhado com inveja e furor; além disso, eu tive o prazer de introduzir esta eminente personagem entre os mais alegres dos nossos cavalheiros e apresentá-la às nossas primeiras beldades.
Uma narrativa interessantíssima, -- rematou Mervale, levantando-se. - Venha, Glyndon; vamos ao nosso hotel? Não tardará em ser dia. Adeus, senhores!
Que pensa desta história? - perguntou Glyndon ao seu companheiro, quando se dirigia para casa.
Eu penso claramente que este Zanoni é algum impostor, algum velhaco esperto; e o napolitano participa da velhacaria, e gaba-o, exaltando-o, com o vil charlatanismo do maravilhoso. Um avarento desconhecido se introduz facilmente na sociedade, quando esta o converte em objeto de terror ou de curiosidade; Zanoni, além disso, é extraordinariamente belo, e as mulheres estão prontas a recebê-lo muito contentes, sem outra qualquer recomendação, a não ser o seu próprio semblante e as fábulas de Cetoxa.
Não sou desse parecer, - respondeu Glyndon - Cetoxa, ainda que jogador e perdulário, é nobre de nascimento, e goza de alta reputação por sua coragem e honradez. Além disso, esse estrangeiro, com sua nobre presença e o seu ar sério e sereno, tão calmo e tão modesto, não tem nada de comum com a loquacidade de um impostor.
Perdoe-me, meu caro Glyndon; mas eu vejo que conhece ainda muito pouco o que é o mundo. O estrangeiro representa o papel de uma grande personagem, e o seu ar de grande importância não é mais que um estratagema do seu ofício. Porém, mudemos de assunto. Como vai a conquista amorosa?
Oh! Viola não pôde ver-me hoje..
Cuidado, não vá casar-se com ela. Que diriam todos lá na nossa terra?
Desfrutemos o presente, - replicou Glyndon, com vivacidade; somos jovens, ricos e de boa aparência; não pensemos no dia de amanhã.
Bravo, Glyndon! Estamos já em casa. Durma bem, e não sonhe com esse senhor Zanoni.

(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni