terça-feira, 10 de abril de 2018

Zanoni VIII







Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Capítulo VIII

Uma Lamentável Adoção


“Se quereis saber como um homem mal age quando atinge o poder,analisai todas as doutrinas que ele prega, enquanto está ocupando um lugar obscuro”. S. Montaigne “As antipatias formam também uma parte daquilo que (falsamente) se chama magia.O homem tem naturalmente o mesmo instinto que os animais,o qual adverte involuntariamente contra as criaturas que são hostis ou fatais à sua existência. Mas o homem descuida-se tão a miúdo desse instinto, que ele fica latente e adormecido. Não faz assim, porém, o cultivador da Grande Ciência”, etc. Trismegistus, o Quarto.Um Rosa-cruz.

Quando o estrangeiro, no dia seguinte, tornou a ver o ancião, encontrou-o tranqüilo, e restabelecido do sofrimento da noite anterior. O ancião manifestou o seu agradecimento ao seu salvador, com as lágrimas nos olhos, e disse-lhe que já havia mandado chamar um parente que cuidasse da sua futura segurança.
Ainda me sobrou dinheiro, - disse o ancião; - e daqui por diante não terei motivo algum para ser avaro.
Em seguida, pôs-se a lhe contar a origem e as circunstâncias que o haviam posto em relação com o jovem que o tentou assassinar.
Segundo parece, o ancião, quando ainda era jovem, desaviera-se com seus parentes, - por causa de diversidade de crenças. Rejeitando toda religião como uma fábula, cultivava, contudo, sentimentos que o inclinaram (pois embora a sua inteligência fosse fraca, tinha bom coração) a essa falsa e exagerada sensibilidade, que as pessoas, por ela seduzida, confundem tão amiúde com a benevolência.
Ele não tinha filhos; resolveu adotar um “filho do povo”. Quis educar este rapaz conforme a “razão”. Escolheu, pois, um órfão da mais baixa classe social, cujos defeitos físicos serviram ainda de estímulo à compaixão, e, finalmente, aumentaram a sua afeição. No seu protegido, não só amava um filho, como também amava uma teoria! Educou-o de uma forma de todo filosófica.

Helvécio lhe provava que a educação fazia tudo; e, antes que o pequeno Jean tivesse oito anos de idade, as suas expressões favoritas eram: “La lumiere et la vertu” (A luz e a virtude). O rapaz revelava bastante talento, sobretudo para as artes. O protetor procurou um mestre que, como ele, estivesse livre de toda “superstição”, e encontrou o pintor David. Este homem, tão feio como o seu discípulo, e cujas disposições eram tão viçosas como era inegável era a sua habilidade profissional era, de certo, tão livre de toda “superstição”, como o protetor podia desejar. Estava reservado a Robespierre o fazer crer, mais tarde, ao sanguinário pintor, na existência do Ser Supremo.
O rapaz teve, desde os seus primeiros anos, a consciência de sua fealdade, que era quase extraordinária. O seu benfeitor tratou em vão de reconciliá-lo com a malícia da Natureza, mediante seus aforismos filosóficos; porém, quando lhe explicava que, neste mundo, o dinheiro, como a caridade, encobre uma multidão de defeitos, o rapaz escutava com atenção e sentia-se consolado. Todo o afã, e toda a paixão do protetor resumia-se nos esforços de juntar e guardar dinheiro para o seu protegido, - o único ser que ele amava no mundo. E, como vimos, recebeu uma estranha recompensa.
Mas eu estou contente por ele ter fugido, - disse o ancião, enxugando os olhos. - Ainda que houvesse reduzido ao extremo de pedir esmola, eu não o teria acusado nunca.

Não podia fazer tal, - respondeu o desconhecido, -pois você mesmo é o autor dos seus crimes.- Como? - replicou o ancião; - eu, que nunca deixei de inculcar-lhe a beleza da virtude? Explique-me.
Ai! Se os lábios do seu pupilo não lhe disseram bastante claro na noite passada, ainda que viesse um anjo do céu em vão o compreenderia.
O ancião agitava-se numa espécie de desassossego, e ia replicar, quando entrou no quarto o parente que mandara chamar, e que, sendo morador de Nancy, por um acaso se achava, naqueles dias, em Paris. Era um homem de trinta e tantos anos de idade, e de uma fisionomia seca, saturnina, magra, com os olhos vivos e os lábios delgados. Fazendo muitos gestos de horror, estudou a narração do ocorrido que lhe fez o parente, e tratou seriamente, porém em vão, de convencê-lo que devia denunciar o seu protegido.
Cale-se, cale-se, René Dumas! - disse o ancião; - o senhor é advogado, e, por isso, está acostumado a olhar a vida do homem com desprezo. Logo que alguém ofenda a lei, já o senhor grita: “Seja enforcado!”
Eu? - exclamou Dumas, levantando as mãos e os olhos ao céu, - venerável sábio, quão mal me julga! Eu, mais do que qualquer outro lamento a severidade do nosso código. Penso que o Estado nunca deveria arrebatar uma vida, - nunca, nem sequer a de um assassino. Concordo com esse jovem estadista, - Maximiliano Robespierre, - que o verdugo é invenção do tirano. O que mais me faz adorar a nossa próxima revolução, é a idéia de que veremos desaparecer esta matança legal.

O advogado interrompeu-se, como se lhe faltasse o alento. O estrangeiro olhou-o fixamente e empalideceu.
Observo uma mudança no seu semblante, senhor, -disse Dumas; - sem dúvida, não participa da minha opinião?
Perdoe-me; neste momento me esforçava em reprimir um vago temor que me parecia profético. - E qual é?
Que nos encontraremos outra vez numa época em que sua opinião sobre a Morte e sobre a filosofia das Revoluções será bem diferente.
Nunca!
Encanta-me, primo René, - disse o ancião, que escutava o seu parente com grande prazer. Ah! Vejo que tem sentimentos próprios de justiça e de filantropia. Porque não procurei conhecê-lo antes. O senhor admira a Revolução! O senhor, o mesmo como eu, detesta a barbaridade dos reis e fraude dos padres?
Detesto! Como poderia eu amar a humanidade, se não detestasse essas coisas?

E, - disse o ancião, hesitando, - não pensa como este cavalheiro, que errei nos preceitos que inculquei àquele miserável?
Se errou? Pode-se, acaso, censurar a Sócrates, porque Alcebíades foi um adúltero e um traidor?
Está ouvindo, está ouvindo! Porém, Sócrates teve também um Platão; de hoje em diante, será um Platão para mim. Ouviu? - exclamou o ancião, voltando-se para o estrangeiro.
Este, porém, já estava no umbral da porta. Quem pode discutir com o mais obstinado fanatismo, o fanatismo da incredulidade?
Já queres ir? - exclamou Dumas, - e antes que eu lhe tenha agradecido e abençoado, por ter salvado a vida a este querido e venerável homem? Oh, se alguma vez puder retribuir-lhe este favor, - se algum dia o precisar, o sangue de René Dumas é seu!
E, dizendo isto, seguiu o estrangeiro até à porta do segundo quarto, onde, tomando-o suavemente pelo braço, e depois de olhar por cima do seu ombro para assegurar-se de que o ancião não podia ouvir, murmurou em voz baixa:
Tenho que voltar a Nancy. Não quereria perder tempo. Não pensa, senhor, que aquele velhaco levou consigo todo o dinheiro deste velho louco?
Era assim que Platão falava de Sócrates, senhor Dumas?
Ah! Ah! Seu gênio é cáustico. Bem; tem razão, nós nos encontraremos outra vez.
Outra vez! - murmurou o estrangeiro.

E a sua fronte se anuviou. Subiu, apressadamente, ao seu quarto; passou o dia e a noite sozinho, e em estudos, não importa de que classe e que ainda mais aumentaram a sua tristeza.
Qual podia ser a casualidade que, um dia, viesse enlaçar o seu destino com o de René Dumas, ou com o fugitivo assassino?
Por que os ares vibrantes de Paris lhe pareciam pesados e impregnados de vapores de sangue? Por que um instinto o impelia a afastar-se desses círculos faiscantes, desse foco de idéias que infundira tantas esperanças a todo o mundo, e porque esse instinto o advertia que não voltasse mais para lá? - ele, cuja vida elevada afrontava os perigos. - Porém, para que se ocupar com esses sonhos e esses vaticínios ominosos?
Ia deixar a França, para tornar a saudar as majestosas rumas da Itália! A sua alma torna a respirar o ar livre dos Alpes. O ar livre! Ah! Deixa que esses homens, que se propuseram reformar o mundo, esgotem sua química; o homem nunca será tão livre nos grandes mercados das cidades, como está livre na montanha.
Mas nós, leitor, fujamos também dessas cenas de falsa sabedoria, que encobre impiedades e crimes, Voltemos, novamente, “às regiões risonhas, onde residem as formas puras”.
Conservando-se impoluto no meio da vida material, o Ideal vive somente com a Arte e a Beleza. Meiga, Viola, pelas praias azuladas de Partenope, pela tumba de Virgílio, e pela caverna Cimeriana, voltamos outra vez a ti!


(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni