quarta-feira, 18 de abril de 2018

Zanoni IX





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Capítulo IX

Situação Inevitável

“Che non vuol che’l destrier più vada in alto, Poi lo lega nel margine marinoA un verde mirto in mezzo um lauro e um pino”. Orlando Furioso, canto VI, 23.
“Não querendo que o seu animal corredor continue a andar nas altas regiões, ata-o, na beira do mar, a um verde mirto entre um louro e um pinho”.


Ó músico! És feliz agora? Estais reinstalado na tua esplendida escrivaninha, - o seu fiel bárbito tem a sua parte no triunfo. Esta música que recreia os ouvidos é a sua obra mestra; a sua filha é a rainha da cena, - a música e a atriz estão unidas, uma com a outra, que aplaudir um é aplaudir a outra também. As pessoas abrem passo quando você dirige a orquestra; já não o escarnecem, nem piscam os olhos, quando, com grande ternura, acaricia o seu violino, que se queixa e lamenta, ralha e rosna debaixo da sua severa mão. Agora compreendem quão irregular é sempre a simetria de um verdadeiro gênio. São as desigualdades de sua superfície, que fazem com que a lua seja um astro luminoso para o homem.
Giovani Paisielo, mestre de Capelo! se a sua alma generosa fosse capaz de sentir inveja, adoeceria de dor ao veres metidos ao canto a sua “Elfrida” e o seu “Pirro”, enquanto que toda Nápoles delira pela “Sereia”, a cujos compassos se meneou queixosamente a sua nobre cabeça. Porém, você Paisielo, tranquilo com a longa prosperidade de sua fama, sabe que o Novo tem o seu dia, e a você consola a ideia de que a “Elfrida” e o “Pirro” viverão eternamente. É talvez uma ilusão, mas com semelhantes ilusões o verdadeiro gênio vence a inveja.
“Se quer ser imortal”, diz Schiller, “viva no todo”. Para ser superior à hora, viva na estima de si mesmo. O auditório ouve agora com gosto aquelas variações e as estranhas melodias que outrora assobiava. Ah! - Pisani passou dois terços de sua vida trabalhando, em silêncio, em sua obra prima; não há nada que lhe possa acrescentar, embora tenha tentado corrigir as obras mestras de outros compositores. Não é um costume comum?
O crítico mais insignificante, ao rever alguma obra de arte, dirá: “Isto vale pouco; isto vale nada; isto devia alterar-se, - isto devia omitir-se”. Sim, com as cordas de arame, do seu violino, farão guinchar as suas amaldiçoadas variações.
Mas, deixemo-lo sentar-se e compor ele mesmo e veremos que considerará as suas variações impossíveis de serem melhoradas. Qualquer homem pode dominar o seu violino quando toca uma composição sua, e pode tornar agradáveis as suas extravagâncias até ao próprio diabo.
E Viola é o ídolo e o tema de Nápoles. É a mimada sultana do teatro. Seria talvez fácil inutilizar o seu mérito; porém, conseguirão viciar a sua natureza? Creio que não. Em sua casa continua sendo boa e singela; e ali, sentada debaixo do toldo em frente da porta da casa, passa horas, absortas em suas contemplações. Quantas vezes, árvore com o tronco torcido, tem ela fixado os seus olhos nos seus verdes ramos! Quantas vezes em seus sonhos e fantasias tem lutado pela luz, - não pela luz das lâmpadas teatrais. Ó, menina! Fiquei contente com o brilho opaco da mais humilde lâmpada! Para os fins domésticos, uma econômica vela de sebo é melhor do que as refulgentes estrelas.

Passaram-se semanas, e o estrangeiro não voltava; passaram-se meses, e a sua profecia de aflição não se realizara ainda. Uma tarde, Pisani adoeceu, O seu êxito o fazia, agora, dedicar-se assiduamente a composições de algumas peças, adaptadas a seu favorito violino; e foi assim que havia passado algumas semanas, trabalhando noite e dia numa obra, em que esperava alcançar excelente sucesso. Como de costume, escolheu um daqueles assuntos, aparentemente impraticáveis, e que se comprazia em sujeitar aos expressivos poderes da sua arte; o assunto era, desta vez, a terrível lenda que trata da transformação de Filomela. A pantomima da música começava imitando a alegria de uma festa.
O monarca de Tracia senta-se no banquete; de repente, aqueles sons alegres convertem-se numa música discordante; as cordas parecem crocitar com horror. O rei vem a saber que o seu filho foi assassinado pelas mãos das vingativas irmãs. O violino, com uma velocidade descomunal faz experimentar todas as sensações do medo, do horror, da ira, do desmaio. O pai persegue as irmãs, escute! Aqueles sons discordes e horríveis convertem-se numa música lenta, argentina, pesarosa! A transformação está completa; e Filomela, metamorfoseada agora em rouxinol, faz ouvir do seu ramo de mirto as suaves, fluentes, melodiosas notas que devem revelar eternamente ao mundo a historia dos seus sofrimentos.
Foi no meio deste complicado e difícil trabalho, que a enfermidade veio surpreender o sobrecarregado músico, excitado pelo triunfo obtido e por novas ambições. De noite, sentiu-se mal. No dia seguinte, o médico declarou que o seu incomodo era uma febre maligna e infecciosa. A esposa e Viola repartiam entre si os ternos cuidados que a doença do pobre Pisani delas exigia; mas em breve este trabalho ficou só ao cargo de Viola, porque a sua mãe contraiu a mesma enfermidade do seu esposo e, em poucas horas, ficou num estado ainda mais alarmante do que ele.
Os napolitanos, como a maior parte dos habitantes dos países quentes, tornam-se egoístas e brutais nas enfermidades contagiosas. Gianetta fingiu-se também doente, para não ter que assistir aos enfermos e, por conseguinte, todo o trabalho de amor e mágoa pesou sobre a pobre Viola. Foi uma prova terrível...
Abreviarei o mais possível a minha história, e não entrarei em minúcias. A mãe de Viola faleceu primeiro.
Uma tarde, um pouco antes do ocaso do sol, Pisani acordou um tanto melhor do delírio que dele se apoderara, desde o segundo dia de sua enfermidade; e, lançando ao redor de si olhares alucinados e fracos, reconheceu Viola e sorriu. Ele balbuciou o nome da filha e lhe estendeu os braços. Viola arrojou- se ao seu peito, esforçando-se em reprimir os soluços.
Sua mãe? - perguntou o enfermo. - Está dormindo?
 Sim, ela está dormindo, - respondeu a jovem, e as lágrimas correram-lhe dos olhos. -
Eu pensava; não sei o que eu pensava. Mas não chore: eu estarei outra vez são, - inteiramente são. Ela virá ver-me logo que acordar, não é verdade?
Viola não pôde responder; mas foi imediatamente buscar um calmante que devia dar ao enfermo, logo que cessasse o seu delírio. O doutor a tinha encarregado também de o avisar no momento em que se verificasse tão importante mudança.

Ela foi à porta para chamar a mulher que substituía Gianetta durante a pretendida indisposição desta; mas a criada não respondeu. Viola procurou-a de quarto em quarto, porém em vão, - a criada teve também medo do contágio, e desapareceu.
Que fazer? O caso exigia urgência, o médico tinha declarado que não se perdesse nem um momento, que o avisassem imediatamente; precisava, pois, deixar o enfermo para ir ela mesmo à casa do médico!
Entrou outra vez no quarto do pai - o calmante parecia haver produzido efeito favorável, pois o doente dormia um sono tranquilo, respirando regularmente. Viola, querendo aproveitar este momento, cobriu o rosto com o véu, e saiu apressada.
O remédio, porém, não tinha produzido o efeito que parecera à primeira vista; em vez de um sono benéfico, mergulhou o enfermo em uma espécie de leve sonolência, na qual a imaginação, extraordinariamente inquieta, vagava pelos seus objetos preferidos, despertando familiares instintos e inclinações. Não era sono nem delírio; era a sonolenta vigília que produz, às vezes, o ópio, quando os nervos, pondo-se em estado de trêmula vivacidade, que é acompanhada de uma correspondente atividade no corpo, comunicam a este uma espécie de vigor falso e ético.
Pisani sentia que lhe faltava alguma coisa; o que era, ele dificilmente poderia dizer; era uma combinação das duas necessidades principais da sua vida mental, - a voz da esposa e o contato do seu violino. Ele se levantou, saiu da cama, pôs devagar o seu fato velho, que costumava usar quando trabalhava em suas composições. Sorriu com complacência quando as recordações, que estavam em relação com esse fato, reviveram em sua memória; com passo incerto, dirigiu-se ao pequeno gabinete que havia junto ao seu quarto, e onde a sua esposa costumava permanecer, mais vezes despertada do que adormecida, sempre quando alguma enfermidade a separava do seu lado.
O gabinete estava deserto, e o que nele havia, estava em desordem.
Pisani olhou, pensativo, em redor de si, murmurou algo entre os dentes e pôs-se a percorrer, sem fazer ruído, todos os aposentos da silenciosa casa.
Por fim, chegou ao quarto da velha Gianetta, a qual, por medida de segurança, se havia retirado para o último extremo da casa, fugindo ao perigo do contágio. Ao vê-lo entrar, pálido e fraco, com o semblante transtornado, inspecionando a habitação com um olhar inquieto e ansioso, a velha criada deu um grito e caiu a seus pés. Pisani inclinou-se sobre ela e, passando as magras mãos pelo rosto da anciã, meneou a cabeça e disse com voz rouca:

Não posso encontrá-las; onde estão?
Quem, meu querido amo? Oh! Tenha compaixão de si mesmo; elas não estão aqui. Oh, santos abençoados! Que desgraça terrível! Está morta!
Morta! Quem morreu? Morreu alguém aqui?
Ah! Bem já devia sabê-lo; a minha pobre ama, - contagiou-a a sua febre; esta, capaz de infeccionar e matar a cidade inteira. Protege-me, São Januário! Minha pobre ama está já no cemitério; e eu, a sua fiel Gianetta, ai de mim! Vou morrer também! Retire-se, querido amo,
O pobre músico parou por um momento, mudo e imóvel, até que, por fim, um ligeiro estremecimento lhe percorreu todo o corpo; em seguida, voltou, com passos lentos, silencioso e qual um espectro, ao quarto onde costumava compor, e onde a sua esposa havia passado, tantas vezes, horas inteiras, sentada a seu lado, elogiando-o e animando-o, quando o mundo só o escarnecia.
A um canto, encontrou a coroa de louros que ela depositara sobre a sua fronte, naquela noite feliz de glória e de triunfo; e, junto a ela, meio oculto pela mantilha da inesquecível esposa, o abandonado instrumento, metido em sua caixa.
Viola esteve ausente pouco tempo; tendo encontrado o médico, regressou com ele à casa. Ao chegarem, ouviram uma sinfonia que fazia estremecer o coração de angústia. Parecia que aqueles sons não partiam de um instrumento tocado por mão humana, mas que era algum espírito, chamando com lamentos, das sombras e solidão, os anjos que via do outro lado do Eterno Golfo. O doutor e Viola trocaram um olhar de triste compreensão; entraram na casa e correram ao quarto. Pisani volveu a cabeça, dirigindo-lhe um olhar imperioso, que os obrigou a retroceder. A mantilha preta e a murcha coroa de louros estavam diante do músico. Viola, num relance, compreendeu tudo e, correndo para o pai, abraçou-o, exclamando:
Meu pai meu pai! Ainda lhe fico eu, sua filha!
De repente, cessaram os lamentos do violino, para passar a um outro gênero de música. Com uma confusão mescla, em que se revela o homem e o artista, prosseguiu a melodia, que era agora um misto de tristeza e suavidade. O rouxinol tinha escapado à perseguição, - e deixava ouvir seus trinos brandos, aéreos, melodiosos, até que foram expirando, pouco a pouco.

O instrumento caiu ao chão, e suas cordas se romperam. No meio do silêncio, parecia que ainda se ouvia o eco do seu canto. O artista olhou a filha, ajoelhada a seus pés, e as cordas rompidas do violino.
 Enterrem-me ao lado dela, - disse com voz baixa e tranquila; - e este meu fiel companheiro enterrem- no também junto a mim!...
E, ao dizer estas palavras, tornou-se lívido e rígido, como si se transformasse em pedra. Um último lampejo de vida apareceu no seu semblante, extinguindo-se no mesmo instante. O músico tombara inerte; estava morto. Eram as cordas do instrumento humano que acabavam de estalar. Ao cair, o seu manto arrastou a coroa de louros, que caiu também ao chão, quase ao alcance da mão do morto.
Quebrado, eis o instrumento! Rompido o coração! Murcha a coroa de louros! Os raios do sol poente, entrando pelas gelosias cobertas de folhas da parreira, iluminavam este triste quadro! Assim a eterna Natureza contempla, risonha, os destroços de tudo o que torna gloriosa a vida!
E não há sol poente que não ilumine, em alguma parte, a música que se calou, - o louro que murchou!

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni