segunda-feira, 2 de abril de 2018

Zanoni VII





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Capítulo VII

Um Estranho em Paris

“Qui donc t’a donnê mission d’annoncer au peuple que la divinité n’existe pas? Quel avantage trouve-tu à persuader à l’homme qu’une force aveugle preside à ses destlnées et frappe au hasard le crime et la vertu?” Robespierre, Discours, Mai, 7, 1794.

“Quem, pois, lhe deu a missão de anunciar ao povo que a divindade não existe? Que vantagem acha no persuadir ao homem que uma força cega presidea seus destinos e fustiga ao acaso o crime como a virtude?”

Era um pouco antes da meia-noite, quando o estrangeiro entrou em sua casa. Os seus aposentos estavam situados num daqueles grandes edifícios que poderiam chamar-se uma miniatura de Paris mesma; - os sótãos eram alugados por pobres operários, apenas um pouco melhor alojados do que mendigos; e não raras vezes eram também habitados por proscritos e fugitivos, ou por algum atrevido escultor que, depois de haver espalhado entre o povo as mais subversivas doutrinas, ou algum libelo contra o clero, o ministro ou o rei, retirava-se para viver entre ratos, a fim de evadir-se da perseguição; os pavimentos térreos destas vastas casas eram ocupados por vendas ou lojas; as sobrelojas, por artistas; os primeiros andares por nobres; e as águas-furtadas por jornaleiros ou por aprendizes.
Enquanto o estrangeiro subia a escada, passou apressadamente por seu lado um jovem de fisionomia duvidosa e pouco simpática, tendo saído de uma porta da sobreloja. O seu olhar era furtivo, sinistro, feroz e, contudo, tímido; a face desse homem era de uma palidez cinzenta, e as feições se moviam convulsivamente. O estrangeiro parou, observando-o com olhos pensativos, quando o moço descia correndo pela escada. Dali a instantes, ouviu-se um gemido dentro do quarto que aquele moço acabara de deixar; e, apesar deste, ao sair, ter puxado a porta para si, com violência, algum objeto, provavelmente uma lasca de lenha, não a deixou fechar bem, e agora estava entreaberta; o estrangeiro empurrou-a, e entrou na habitação.
Passou por uma pequena ante-sala, pobremente mobiliada, e deteve-se num dormitório de aspecto desagradável e sórdido. Estendido na cama, e torcendo-se de dor, estava um ancião; apenas uma vela ardia no quarto, e alumiava fracamente o enrugado e quase cadavérico rosto do enfermo. Não havia em casa pessoa alguma que dele cuidasse; o doente parecia prestes a exalar o último alento, ali, abandonado e só.
Água! - gemia ele, com voz fraca, - água! Como me queima a garganta! O intruso, aproximando-se do leito, inclinou-se sobre o enfermo, tomando-lhe a mão:
Oh! Muito grato Jean, muito grato! - disse o paciente - já trouxe o médico? Senhor, sou pobre, mas pagar-lhe-ei bem. Eu não queria morrer ainda, por amor a este jovem.
E, ao dizê-lo, o enfermo sentou-se na cama, fixando os olhos enfraquecidos sobre o visitante.
Que tem? - perguntou este.
Que mal o aflige?
Tenho fogo no coração e nas entranhas! Parece-me que estou a arder!
Quanto tempo faz que tomou o último alimento? -
Alimento! Só esta taça de caldo; fora dela, não tomei nem comi nada durante as últimas seis horas. E apenas a tinha provado, quando comecei a sofrer estas dores.
O estrangeiro examinou a taça; uma pequena porção do conteúdo ficara ainda nela.
Quem lhe deu isto?
Quem havia de dar-me, senão Jean? Não tenho criado algum, senhor. Sou pobre, muito pobre. Mas não! Os médicos, não gostam de assistir aos pobres. Sou rico! Pode curar-me?
Sim, se o céu o permitir. Espere alguns instantes.
O ancião quase já sucumbia sob os rápidos efeitos do veneno. O estrangeiro foi aos seus aposentos, e voltou dali a instantes, trazendo um poção, que produziu o resultado instantâneo de um antídoto. Apenas o ancião tomou este remédio, cessaram as suas dores, desapareceu a cor azulada e lívida dos seus lábios, e o doente adormeceu profundamente.
O estrangeiro deixou, então, cair as cortinas em redor do leito, agarrou a vela na mão, e pôs-se a inspecionar essa habitação. As paredes de ambos os aposentos estavam adornadas com pinturas de grande mérito. Havia ali também uma carteira cheia de desenhos igualmente preciosos, - porém estes eram, em sua maior parte, assuntos que espantavam os olhos e revoltavam o gosto: exibiam a figura humana em grande variedade de sofrimentos, o cavalete, a roda, a força; tudo o que a crueldade inventou para aumentar as angústias da morte, parecia ainda mais horrível com o gosto apaixonado e a força séria de veracidade com que o expressava o pintor. E algumas dessas figuras assim desenhadas se afastavam bastante do ideal, para mostrar que eram verdadeiros retratos; com grandes letras irregulares, e mão atrevida, estava escrito debaixo destes desenhos: ‘O Futuro dos Aristocratas”. Num canto do quarto, perto de um velho armário, estava um pequeno pacote, por cima do qual, como se o devesse ocultar, uma capa, estendida negligentemente. Algumas estantes estavam cheias de livros, quase todos obras de filósofos do tempo, - filósofos da escola materialista, especialmente os Enciclopedistas, aos quais mais tarde Robespierre atacou tão veemente, quando o covarde julgou perigoso deixar a sua nação  sem um Deus.
Sobre uma mesa, estava um livro, - era uma obra de Voltaire, e a página estava aberta na passagem que apresentava os argumentos para provar a existência do Ser Supremo , a margem estava coberta de notas traçadas a lápis, por uma mão rija, porém que a idade fizera tremer; todas estas notas tendiam a refutar ou ridicularizar a lógica do sábio de Ferney: Voltaire não tinha ido tão longe como o desejava o anotador!
O relógio batia duas horas, quando se ouviu, fora, o ruído de passos. O estrangeiro sentou-se silenciosamente no canto mais afastado da cama, cujas cortinas o ocultavam à vista de um homem que entrou nos pontinhas dos pés; era o mesmo que tinha descido na escada, ao lado do estrangeiro, quando este vinha subindo. O recém-chegado agarrou a vela e aproximou-se da cama. O rosto do ancião estava voltado no travesseiro; mas ele estava tão quieto, e a sua respiração era tão imperceptível, que o seu sono, ante aquele olhar intranquilo, trêmulo e culpável, podia equivocar-se muito facilmente com o repouso da morte. O recém-chegado retirou-se, e um sorriso sinistro apareceu-lhe no semblante: o moço tornou a colocar a vela sobre a mesa, e, abrindo o armário com uma chave que tirou da algibeira, apanhou alguns cartuchos de ouro que achou nas gavetas.
Neste instante, o ancião começava a voltar a si do letargo em que jazia. Moveu-se no leito, abriu os olhos; dirigiu o olhar à luz que começava já a apagar-se, e viu o que estava fazendo o ladrão. Mais admirado do que aterrorizado, sentou-se por um instante, e depois saltou da cama para ir colocar-se em frente ao malfeitor.
Justo céu! - exclamou. - Estarei sonhando? Você, para quem tanto trabalhei e sofri, privando-me, às vezes, até do necessário! ... Você!
O ladrão, sobressaltado, deixou cair o ouro da mão, e o metal rolou pelo assoalho. - Como! disse o jovem, - ainda não está morto? O veneno não agiu?
Veneno, rapaz? Ah! - gritou o ancião, cobrindo o rosto com as mãos; e, em seguida, com uma energia repentina, exclamou:

Jean, Jean! Retire essa palavra! Roube-me, saqueie-me, se quer; porém não diga que quis assassinar a quem tem vivido somente para ti! Aqui tem o ouro, tome-o; eu o havia acumulado para seu proveito. Vai, vai!
E o ancião, que em sua ira abandonara a cama, caiu estendido aos pés do assassino confuso, e torcia-se sobre o assoalho, atormentado pela agonia mental, muito mais intolerável do que a que antes experimentara o seu corpo.
O ladrão contemplou-o com frio desdém.
Que lhe fiz eu, infeliz? - continuou dizendo o ancião, - senão amá-lo e alimentá-lo toda a minha vida? Você era um órfão desamparado, e eu o alimentei; dei-lhe educação, e até adotei-o como filho. Se os homens me chamam de avarento, é porque eu não queria que pudesse ser desprezado quando eu deixasse de existir, já que a Natureza o fez tão desgraçado e disforme; você devia ser o meu herdeiro, e teria tudo o que acumulei. Não podia deixar-me viver alguns meses, ou dias, - que é nada para a sua juventude, porém tudo o que sobrou à minha velhice? Que é que lhe fiz?
Continuou vivendo, e não fazia o testamento.
Ó meu Deus! Meu Deus!
“Seu Deus”, imbecil! Não me dizia, desde a minha infância: “Não há Deus?” Não me alimentou com filosofia? Não me dizia: “Seja virtuoso, seja bom, seja justo, por amor à humanidade: porém, não há outra vida depois desta vida”; não me dizia? A humanidade! Porque devo eu amar esta humanidade? Esta humanidade que mofa de mim, porque sou feio e desgraçado, e me escarnece quando passo pelas ruas? Que é que me fez? Tiraram de mim, que sou o escárnio deste mundo, as esperanças de um outro mundo! Não há outra vida depois desta? Bem, então eu quero ter o seu ouro, para gozar, ao menos, tudo o que se possa nesta vida!
Monstro! Que a minha maldição caia sobre ti!
E quem ouvirá a sua maldição? Bem sabe que não há Deus! Ouve! Eu tenho tudo preparado para fugir. Olha, - aqui está o meu passaporte; os meus cavalos que me esperam na rua, e já estão dadas ordens a respeito dos cavalos de muda. E tenho eu o dinheiro. (E o miserável, ao dizê-lo, enchia friamente as suas algibeiras com cartuchos de ouro). E agora, se poupo a sua vida, como estarei seguro de que não me denunciará?
E o malvado aproximava-se do ancião, com cara sinistra e gesto ameaçador. A cólera do velho, que se havia acobardado ante aquele selvagem, transformou-se em medo. - Deixe-me viver! Para que.- Para que?
Para que eu o perdoe! Sim, não terá nada que temer de mim. Juro-lhe!
Jura! Porém, por quem e por que, desgraçado? Eu não posso crer, uma vez que você não crê em Deus algum! Ah! Ah! Vê os resultados das suas lições!
Um momento mais, e as mãos do assassino teriam estrangulado a sua vítima. Porém, entre os dois se interpôs uma sombra imponente e ameaçadora que lhes pareceu um ser vindo desse mundo em que nenhum dos dois cria.
O ladrão recuou, olhou-o aterrorizado e fugiu. O ancião caiu outra vez ao chão, desmaiado.

(continua)

Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni