terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sobre a Vida dos Celtas VIII






Para leitura do episódio anterior: Sobre a Vida dos Celtas VII

Sobre a vida dos Celtas – VIII

Por Charlotte von Troeltsch e Suzanne Schwartzkoff

Anteriormente: Seabhac Habicht, na mata sofre ameaça de ser morto pela lança de seu inimigo Taig, que no momento perde a vida pelo ataque inesperado de uma ursa faminta; tendo ocorrido ainda o desaparecimento desesperador de Padraic, o chefe dos druidas...


— “Tu pensaste acertadamente, Seabhac” saudou Nuado amigavelmente. “Padraic teve de deixar a Terra para que não prejudicasse seus irmãos. Ele não pôde tornar-se senhor de sua vaidade e de sua vontade de dominar. Assim o Pai Eterno também não pôde deixar que ele fosse auxiliado. Seus falsos pensamentos, porém, ele não deveria difundir entre os druidas. Estes têm de se tornar novamente servos do Pai Eterno, pois do contrário todos eles terão de partir.”
— “Como eu devo então começar para que os sacerdotes se deixem instruir por mim?” perguntou Seabhac incerto.
— “Deixa que eles cuidem do falecido. Depois disso eles encontrar-se-ão abalados e pedirão por si mesmos, conselho a ti. Diga-lhes então que tu tens uma indicação do Pai Eterno para lhes fortalecer a crença e lhes ensinar. Eles aceitarão voluntariamente aquilo que tu lhes anunciares. Eu, porém, estarei junto de ti e te auxiliarei.”
— “E eu devo permitir que amanhã eles tragam aqui o falecido para incinerá-lo ao invés de enterra-­lo?” quis Seabhac saber. Ele recebeu uma resposta afirmativa e então foi mais confiante para casa do que havia vindo.

Bem cedo, na manhã seguinte, reuniram-se os homens convidados juntamente com todos os sacerdotes e alunos no local de devoção. Eles trouxeram o falecido vestido com as vestes brancas sobre ramos entretecidos uns nos outros e colocaram-no sobre a pedra de sacrifícios. Depois o despiram recitando as palavras prescritas: “Padraic, tu que fostes um homem entre os homens, despe teu corpo. Tu foste druida superior, agora não és mais. Deixa teu invólucro. Um homem foste tu aqui sobre a Terra, tu não és mais. Despe a vestimenta de homem.”
Quando o corpo do falecido estava totalmente despido sobre a pedra de sacrifício, alguns dos alunos acenderam um fogo sob a mesma, que era incessantemente provido com lenha sob o recitar de frases de longas orações e outras fórmulas. Ao mesmo tempo cuidavam muito bem para que as chamas não se lançassem para fora da pedra de sacrifício. Todo o seu calor deveria concentrar-se na pedra, sobre a qual o corpo do falecido era literalmente cozido.
Finalmente, à tardinha, a horrível obra estava consumada. O esqueleto foi deixado ali e o fogo apagou-se. Quando, na manhã seguinte tudo havia esfriado, os sacerdotes mais jovens deveriam retirar o esqueleto e jogá-lo em algum lugar. Ninguém deveria tomar conhecimento do local. A isso denominavam de “por de lado o morto”.
Toda essa cerimônia era repulsiva e cansativa para todos os presentes. Eles não podiam se alimentar enquanto as chamas ardessem. Também não se permitiam beber, apesar da fumaça forte lhes ressecar bastante as gargantas.

O profundo sentido da presença deles residia no fato de que as pessoas, durante o tempo da cerimônia, deveriam refletir sobre como a vida terrena é passageira. Elas deveriam tomar resoluções e procurar ligações com os deuses. Mas quem fazia isso? Mal um entre todos pensava em tais coisas. Depois eles também evitavam tais pensamentos e, à tardinha, apenas um desejo dominava a todos, que tudo aquilo terminasse logo.
Seabhac sentiu isso profundamente e chegou a estremecer. Ele teria gostado de falar, entretanto o luminoso o impediu, o qual se lhe havia tornado visível várias vezes durante o dia. “Ainda não chegou o momento para isso.” Seabhac refletia sobre isso. Por que ele não deveria falar agora a respeito daquilo que movimentava sua alma? Agora os espíritos certamente deveriam estar abertos. E todos tinham tempo para ouvir.
De repente, sobreveio-lhe a compreensão. Se naquele momento, durante a cerimônia do falecido, ele tivesse falado depreciativamente a respeito dela, teria despertado na maioria dos homens uma contradição. Apenas no dia seguinte, quando todos ainda estivessem preenchidos pelo cansaço, tédio e horror, pois era horroroso ver como os membros iam se atrofiando sob a influência do forte calor, apenas então é que eles estariam receptivos para algo melhor.
— “Nuado, eu te agradeço, tu, luminoso” sussurrou Seabhac como que para si mesmo. “Eu teria feito tudo errado se tu não estivesses ao meu lado.”
Quando tudo estava terminado e os homens puseram-se a voltar para casa, os druidas aproximaram­-se de Seabhac e pediram-lhe que viesse à sua aldeia no dia seguinte. Eles tinham de chegar a um acordo no que referia a questão do sucessor e ainda a outras questões, e necessitavam de seu conselho decisivo.
Com o corpo e o espírito esgotado ele esticou-se mais tarde sobre uma pele de urso, diante do fogo de seu fogão, tão cansado que sequer alimentou-se. Meinin procurou em vão dirigir sua atenção para outras coisas. Ele permaneceu calado e sem dar sua participação.
Então, ela sentou-se calmamente com o seu tecer no outro lado do fogo e começou a cantar suavemente. Carinhosamente os sons tocavam os ouvidos do homem, até que ele os começou a ouvir permitindo que adentrassem em sua alma preocupada. Então, ele também começou a escutar as palavras:

— “Pai Eterno, a Terra inteira curva-se diante de Ti. Como delicadas ramagens, da mesma forma teus servos luminosos dos céus se unem com os luminosos da Terra. Eles vivem em Tua vontade e cumprem Tuas ordens.
Pai Eterno, quando as criaturas humanas irão aprender a fazer como eles? Ou será que alguma vez já o sabiam e o esqueceram novamente?
A sementeira má de Lug foi voluntariamente aceita pelos seres humanos e eles cuidaram para que ela crescesse e frutificasse.
Pai Eterno, por quanto tempo irá durar Tua paciência conosco? Quando Tu enviarás o luminoso com a espada oriunda do fogo?
Pai Eterno, não retire Tua misericórdia de nós. Nós Te suplicamos: Abri nossos olhos e ouvidos, para que cheguemos ao reconhecimento e nos tornemos Teus servos.”
Quão belo cantava sua esposa! Certamente as rimas e as palavras eram dela própria. Será que ela não gostaria de utilizá-las no local de devoção por ocasião das festas agora novas? Ele tinha de perguntar-lhe.
Ele ergueu-se e a chamou suavemente ao seu lado. Ela afirmou alegremente que sim, à sua pergunta.
— “Para essa finalidade isto me fora presenteado por Brigit, meu esposo,” disse ela com segurança. “Mas eu irei ensinar essa cantiga às moças e mulheres. Se muitas cantarem, então ela soará longe.”
Seabhac aceitou alegremente este plano, sem refletir que com isso toda maneira das devoções seria modificada. Se as mulheres e moças cantassem, elas teriam, pois, que participar! E isto jamais havia ocorrido. Quando isto se lhe tornou claro, ele teve que rir. Meinin havia prometido por ocasião da última festa, que as mulheres não seriam mais excluídas no futuro.
Então ele começou a se alegrar por todas as coisas novas que o futuro remoto já teria de trazer. À noite ele pediu por orientação para a conversação que teria com os druidas. Novamente Nuado prometeu que ele estaria ao seu lado auxiliando.

Pela primeira vez Seabhac entrou então na cabana abandonada do sacerdote superior. Se antigamente ele tivesse que falar com ele, Padraic havia sempre saído para fora, ao ar livre, no local à frente de sua cabana. Também agora os sacerdotes teriam gostado de manter isso assim, mas Nuado caminhou à frente e Seabhac seguiu-o naturalmente. Os druidas entreolharam-se embaraçados, mas nenhum teve coragem de impedir a entrada ao príncipe.
Dentro era horrível. Um ar denso e pesado pairava roubando a respiração, pequenas cobras de uma espécie não venenosa se arrastavam pelo chão por entre ratos que corriam e sapos que saltavam. Do madeiramento gritavam dois grandes corvos. No meio deste estado horripilante encontrava-se o leito suntuoso do falecido. Uma enorme quantidade de peles estava amontoada bem alta e por cima de todas encontrava-se a pele branca de lobo, o símbolo da dignidade principesca, a qual Padraic não havia alcançado.
Aparentemente Nuado tinha apenas desejado que Seabhac desse uma olhada na moradia do sacerdote superior. Agora ele caminhava novamente para o ar livre e Seabhac o seguia, esclarecendo aos sacerdotes que o ar lhe era muito abafadiço. Lá fora ele sentou-se sobre um acento de pedra e pediu aos sacerdotes para que fizessem o mesmo. Depois disso, ele perguntou pelo que eles desejavam. Eles disseram então que não conseguiam chegar a um acordo na escolha do novo druida superior. Contudo, todos queriam curvar-se então a uma palavra do chefe da tribo.

— “Então ouvi o que o Pai Eterno vos quer anunciar através de mim: Vós os druidas deveriam ter continuamente ligação com Ele através de Seus servos luminosos, que vós denominais de deuses. Antigamente isto também era assim, mas os druidas decaíram em uma sabedoria própria. Vede a cabana de Padraic! Toda sorte de animais se aninha lá dentro, com os quais ele havia realizado certas magias. Eu não sei como se dá isso no que se refere a vós, nem quero saber a esse respeito hoje. Mas eu exijo que toda essa imundice seja posta fora até amanhã. Puras devem ser vossas cabanas, apenas então podeis também pensar novamente em serdes puros, assim como vossos antepassados o foram. Não é por meio das vísceras dos animais, do serpentear das cobras e do coaxar e saltitar dos sapos, que deveis averiguar a vontade do Pai Eterno. Se vós o procurardes com o coração ele se revelará a vós de outra forma. Podeis vos tornar novamente felizes e portadores de bênçãos, se vós aprenderdes primeiramente de novo a trazer em vossas almas uma imagem do Pai Eterno. E para que sejais capazes disso o Pai Eterno ordenou que vós ainda não escolhêsseis nenhum druida superior. Vós deveis ser instruídos todos os dias, até que o saber a respeito do Pai Eterno se encontre novamente luminoso dentro de vós e à vossa frente. Apenas então o mais digno entre vós deverá ser druida superior. O próprio Pai Eterno o determinará através de mim. Quem dentre vós não quiser cooperar na ascensão dos druidas que o diga. Ele pode partir desimpedido.”
Todos ficaram com as cabeças abaixadas, contudo, ninguém se manifestou para partir.
— “Muito bem, então, assim começaremos amanhã” encorajou Seabhac. “Hoje tendes já muito o que fazer, a fim de por para fora de vossas habitações os animais e toda sujeira, deixando que o ar fresco penetre nelas. A cabana do sacerdote superior deve estar de tal forma vazia, que possamos realizar dentro dela as instruções quando estiver chovendo.”

— “E como se dará com os alunos?” perguntou um dos sacerdotes mais velhos. “Deverão eles participar das instruções?” Por um momento Seabhac refletiu. Então, ele decidiu: “Não, os alunos devem aprender convosco. Nós queremos elevar em conjunto o status dos druidas, não degradá-lo aos olhos dos jovens. Deixai que nos próximos dias eles busquem madeira, pesquem peixes e preparem os jardins, enquanto eu vos estiver instruindo.”
Com essa perspectiva bondosa, Seabhac ganhou ainda certos corações de sacerdotes que estavam fechados. Todos eles estavam aflitos, mas muito mais por causa do fato que as instruções deveriam residir nas mãos de uma pessoa que não era druida, do que pelo fato do Pai Eterno estar irado. Pois, diante de Seabhac eles se sentiam humilhados.

(continua)

Texto da série especial denominada: Escritos Valiosos

Personagens e fatos processados dentro do contexto deste episódio:

Seabhac, Habicht: Se trata do personagem de destaque nos acontecimentos, que se situa como soberano de uma comunidade celta.

Muirne: velha mãe do príncipe dos celtas Seabhac, Habicht  

Muirne: esposa de Seabhac, Habicht que veio de outro reino salva e aceita para proteção.

Padraic: É o nome principal do ancião que surge neste episódio como druida da comunidade celta, sendo, portanto um personagem influente de seu meio.

Nuado Silberhand: No folclore irlandês, era reverenciado como rei e grande líder dos Tuatha Dé Danann. Possuía uma espada invencível, vindo da cidade de Findias e que fazia parte dos Tesouros de Dananns. Na primeira Batalha de Magh Turedh perdeu o braço ou a mão, órgão que foi restituído, mas fez com que ele perdesse o trono da tribo. Ficou conhecido como "Nuada, Braço de Prata" ou "Nuada, Mão de Prata". Nuada era o Deus da justiça, cura e renascimento; irmão de Dagda e Dian Cecht.
Pelo direcionamento dado a este enredo pelas autoras, este personagem se trata de um enteal de certa forma importante em sua ligação com os seres humanos.

Goban: deus ferreiro dos Tuatha Dé Danann; com Credne e Luchtain formavam o "Trí Dé Dana"; fez as armas que os Tuatha usaram para derrotar os Fomorianos. Equivalente a Goibniu e Govannon (galês).
Na mitologia irlandesa Goibniu ou Goibhniu era um dos filhos de Brigid e Tuireann e ferreiro dos Tuatha Dé Danann. Ele e seus irmãos Creidhne e Luchtaine tornaram-se conhecidos como os Trí Dée Dána, "os três deuses de arte", que forjaram as armas que os Tuatha Dé usaram para combater os Fomorianos. Suas armas eram sempre letais e seu hidromel concedia invulnerabilidade a quem o bebesse.

Brigit, é a Deusa dos ferreiros, dos artistas, das artes e da cura. Sendo uma Deusa solar, ela é padroeira do fogo e de tudo que envolva Inspiração e Artes. É uma Deusa tríplice, tendo três faces, a poetisa, a médica e a ferreira.


Lug: ou Lugh - filho de Cian (Kian) dos Tuatha Dé Danann e Eithne (também Etaine), filha de Balor (rei dos Fomorianos). Comandou as forças dos Tuatha na vitoriosa Segunda Batalha de Mag Tuireadh (Moytura) contra os Fomorianos, na qual matou o avô Balor. É a figura extraordinária do Deus jovem irlandês que suplanta o Deus Velho; está associado à habilidade e à técnica; é conhecido como Lugh Samhioldanach (de muitas artes) e Lugh Lámhfhada (de mão comprida). Raiz da palavra gaélica que significa Agosto (Lúnasa), isto é, Lughnasadh (festa de Lugh). Corresponde ao Lleu Llaw Gyffes galês.