domingo, 8 de julho de 2018

Zanoni XX





Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Segundo

Capítulo X

Uma Paixão Desamável

“Oh sollecito dubbio e freda tema Che pensando l ́ accresci”. Tasso, canzone VI

“Oh, solícita dúvida e frio medo, que aumenta ao pensar.”

A jovem atriz estava sentada diante da porta de sua casa. O mar, na encantadora baia que tinha diante dos olhos, parecia dormir nos braços da praia, enquanto à sua direita, não muito distantes, se elevavam as negras e amontoadas rochas de onde o viajante de hoje vai contemplar a tumba de Virgílio, ou comparar com a caverna de Posilipo a catacumba de Highgate Hill.
Alguns pescadores vagavam por aqueles rochedos, sobre os quais haviam posto a secar as suas redes; e lá ao longe, de vez em quando, o som de alguma flauta (mais comum então do que agora) se mesclava ao ruído das campainhas das mulas preguiçosas e vinha interromper aquele voluptuoso silêncio que reina nas praias de Nápoles pelas horas do meio-dia. Nunca, enquanto não o tiver desfrutado, nunca, enquanto não houver sentido sua deliciosa languidez, não poderá você compreender toda a significação do “dolce far niente” (isto é, o prazer de não fazer nada); e uma vez conhecido este suave estado, quando tiver respirado a atmosfera daquela linda terra, não se admirará mais que o coração amadurece e frutifica tão prestes e tão abundantemente debaixo do firmamento rosado e sob os gloriosos raios solares do Sul.
Os olhos da atriz haviam-se fixado no vasto e profundo mar azulado que se estendia diante dela. O desusado descuido do seu traje revelava um estado de abstração. Os lindos cabelos estavam enrolados sena arte, e parcialmente atados com um lenço cuja cor de púrpura fazia ressaltar mais o brilho dos seus caracóis. Um anel das soberbas madeixas, que se desprendera inadvertidamente, caialhe sobre o colo gracioso. Trajava uma bata ampla ajustada ao talhe por um cinto, e o ligeiro sopro da brisa, que o mar enviava de vez em quando, vinha expirar no seu peito semi-descoberto; e as minúsculas chinelas, que até Cinderela poderia calçar, pareciam um mundo demasiadamente espaçoso para o delicado pé que só em parte cobria. Talvez fosse o calor do dia que houvesse aumentado a cor rosada das suas faces, e dava uma extraordinária languidez aos seus grandes olhos negros. Nunca Viola, com toda a pompa do seu traje teatral, e todo o brilho que ao seu semblante comunicara o resplendor das lâmpadas, havia parecido tão formosa.

Ao lado da atriz, no umbral da porta, estava Gianetta, com as mãos metidas nas enormes algibeiras do avental.  
Mas eu lhe asseguro - disse a aia, esse tom agudo, rápido e pouco melodioso, que é tão comum às anciãs do sul - eu lhe asseguro, minha querida, que não há, em toda Nápoles, um cavalheiro mais fino, elegante belo do que este inglês; e ouvi dizer que todos os ingleses são mais ricos do que parecem. Embora eles não tenham árvores no seu país, pobre gente! E em vez de vinte e quatro, só tenham doze horas no seu dia; fui informada que seus cavalos têm ferraduras de ouro; e como estes senhores ingleses - pobres heréticos! - não podem fazer vinho, porque não têm uvas, preparam remédios de ouro e tomam um copo ou dois de dinheiro de ouro, quando se sentem atacados de cólicas. Porém, vejo que não me escuta, minha queridinha, e então?...
Todas estas coisas se dizem de Zanoni! - disse Viola, como a si mesma, sem fazer caso dos elogios que Gianetta tributava a Glyndon e aos ingleses.
Virgem Maria! Não fale desse terrível Zanoni. Pode estar bem certa de que a sua formosura, como também as suas bonitas moedas de ouro, é tudo bruxaria. Cada quarto de hora vou olhar o dinheiro que ele me deu noutra noite, para ver si se converteu em pedra.
Crê realmente - perguntou Viola, com tímida seriedade - que existe a bruxaria?

Se o creio! Creio-o, como creio no bendito São Januário. Como pensa que Zanoni curou o velho Felipe, o pescador, quando o médico o deixou porque não havia remédio para a sua doença? Como pôde ele ter conseguido viver pelo menos trezentos anos? E 141 como pensa que ele fascina aos que olha e faz com que se submetam à sua vontade, tal e qual como os vampiros?
Ah! É bruxaria tudo isto? Sim, deve sê-lo! - murmurou Viola, empalidecendo.
Gianetta mesma não era mais supersticiosa do que a filha do músico; assim é que a inocência da jovem se alarmou ao sentir os efeitos de uma paixão original, atribuindo à magia o que outros corações mais experimentados teriam tido por amor.
E depois, como é que esse grande Príncipe de *** ficou aterrorizado diante dele? Porque deixou de perseguir-nos? Por que ficou tão tranquilo e quieto? Não há, em tudo isto, bruxaria? - continuou Gioneta.
Pensa, pois, - disse Viola, com certa timidez, - que devo esta felicidade e segurança à sua proteção? Ah! Deixa-me que eu assim o creia! Não me diga mais nada, Gianetta! Por que, ó lindo Sol, não tenho senão a ti e aos meus terrores para consultar? - exclamou a jovem, pondo a mão sobre o coração, com apaixonado ardor. - Oh! Querido Sol, que ilumina tudo, menos este lugar. Vai Gianetta! Deixe-me só, quero ficar só; deixe-me.
E, com efeito, já é hora que a deixe, pois, do contrário, perderíamos a “polenta”, e você não provou nada em todo o dia. Se não come minha querida, perderá a sua beleza, e ninguém a olhará. Ninguém se importa com as mulheres feias, eu o sei; e se ficar feia, como a velha Gianetta, haverá de procurar alguma Viola, para ter consigo uma criatura bonita. Agora vou ver a “polenta”.

Desde que conheci este homem, - disse a jovem a meia voz, - desde que os seus negros olhos em mim se fitaram, sinto-me totalmente transformada. Desejaria fugir de mim mesma, desaparecer como os raios do sol detrás do horizonte; converter-me em alguma coisa que não seja deste mundo. De noite, uma multidão de fantasmas cruza por diante dos meus olhos, enquanto sinto no coração uma agitação como se fossem as asas de uma ave, quase como se o meu espírito aterrorizado quisesse fugir de sua prisão.
E, enquanto a atriz pronunciava estas incoerentes palavras, um homem aproximou-se dela, sem ser pressentido, e tocando-lhe levemente no braço, disse:
Viola! Belíssima Viola!
A jovem voltou a cabeça e viu Glyndon. A presença do elegante mancebo tranquilizou-a algum tanto, dando-lhe mesmo prazer.
Viola, - disse o inglês tomando-lhe a mão e fazendo-a sentar-se outra vez no banco do qual se tinha levantado, - é preciso que me escute. Deve já ter percebido que a amo. Não foi mera compaixão ou admiração o que me impeliu sempre e sempre para o seu lado. Se até aqui não tenho falado senão com os olhos, é porque certas razões me o impediram, hoje, nem sei dizer porque sinto-me com mais coragem para dirigir-me àquela de quem depende a minha felicidade ou a minha desgraça. Sei que tenho rivais, rivais que são mais poderosos do que o pobre artista; serão eles também mais ditosos do que eu?
Viola corou levemente; porém, o seu aspecto era grave e um tanto abatido. A jovem permanecia com os olhos baixos e, enquanto traçava, com a ponta da chinela, algumas figuras hieroglíficas na areia, respondeu:
Senhor quem quer que ponha seus pensamentos numa atriz, há de conformar-se em ter rivais. É nosso cruel destino não sermos sagradas nem a nós mesmas.

Porém, diga-me Viola, não gosta desta carreira tão brilhante como é e na qual tem alcançado tantos e tão belos triunfos?
Ah, não! - respondeu a atriz, com os olhos marejados de lágrimas. - Em outro tempo, anelei ser sacerdotisa do canto e da música; agora só sinto que é uma triste sorte ser escrava da multidão.
Fujamos, pois, - disse o artista, apaixonadamente; - abandone para sempre a carreira que me rouba parte desse coração que eu somente quereria possuir. Compartilhe da minha sorte agora e sempre. Será o meu orgulho, a minha delicia, o meu ideal. Inspirará o meu pincel; a sua beleza será santa e admirada ao mesmo tempo. A multidão se aglomerará nas galerias de príncipes para contemplar a esfinge de uma Vênus ou de uma Santa, e um murmúrio de entusiasmo dirá: “Viola Pisani!” Ah! Viola, eu a adoro! Diga-me uma palavra, uma só, de esperança.
Glyndon, - redarguiu Viola, contemplando o seu apaixonado, enquanto este se lhe aproximava ainda mais e a olhava ansioso, ao mesmo tempo que lhe apertava suavemente a mão, - o que é que eu posso dar-lhe em troca?
Viola! Belíssima Viola!- Amor, amor, - nada mais que amor! - Um amor de irmão?- Ah! Porque é tão cruel para mim?
Não posso amar-lhe de outra maneira, - respondeu a jovem. - Escute-me, peço-lhe. Quando o vejo e ouço a sua voz, sinto que uma calma doce e tranquila adormece meus pensamentos, ardentes e estranhos. Quando se ausenta, meu amigo, parece-me que uma nuvem obscurece o dia, porém essa nuvem não tarda em desaparecer. Não quero enganar-lhe; não sinto a sua falta, não o amo e darei a minha mão somente a quem eu amar.
Mas não poderá vir a amar-me, um dia? O amor que acaba de descrever-me, em nossos climas tranquilos é o amor da inocência e da juventude.
Da inocência!- repetiu Viola. - É certo? Talvez...A jovem quedou-se pensativa, um instante e acrescentou, após um grande esforço:

Estrangeiro! Daria sua mão a uma órfã? Ah, o senhor ao menos é generoso! Não quer destruir a inocência!
Glyndon teve um sobressalto, como se fosse impelido por um remorso da consciência.
Não, não é possível! - prosseguiu a jovem, levantando-se, sem suspeitar os pensamentos que cruzavam a mente do enamorado mancebo, pensamentos de vergonha e de suspeita ao mesmo tempo.
Peço-lhe que se retire, e que me esqueça. O senhor não compreende, nem pode compreender a natureza o caráter da mulher que julga amar. Desde a minha infância, até agora, tenho sentido sempre como se estivesse destinada para não sei que fim estranho e sobrenatural; parece-me que sou o único ser de minha espécie. Este sentimento (Oh! Às vezes ele tem um não sei que de delicioso e vago, e outras vezes transforma-se numa aflição inexplicável) domina-me cada vez mais. Ele é como a sombra do crepúsculo, que se estende lenta e solenemente sobre a terra, anunciando a noite. A minha hora se aproxima; em breve será noite para mim!
Enquanto a jovem atriz falava, Glyndon escutava, visivelmente comovido, como se fosse preso de uma forte agitação.
Viola! - exclamou ele, quando a jovem cessou de falar, -essas palavras não fazem mais do que estreitar os laços que me ligam a ti. Eu sinto o mesmo que acaba de descrever-me. Eu também tenho sofrido sob a influência de uma voz terrível e misteriosa, que não pertence a terra. No meio das multidões, tenho-me sentido só. Nos meus prazeres, nas minhas aflições, em todos os meus intentos, essa voz murmura sempre no meu ouvido: “O tempo te reserva um negro mistério para provar a tua coragem”. Quando ouço a sua voz, Viola, parece-me ouvir o eco da minha própria alma
Viola contemplou-o com uma espécie de temor mesclado de admiração. O semblante da jovem estava, neste momento, branco como o mármore; e aquelas feições, tão divinas em sua rara simetria, podiam ter servido ao pintor grego para representar a Pitonisa, quando, em sua mística caverna e sentada junto à fonte murmurante, ouvia a voz do deus que a inspirava. A rigidez do seu formoso semblante foi desaparecendo pouco a pouco, a cor volveu-lhe às faces, o pulso batia novamente com regularidade e o coração reanimou-se.

Diga-me, - perguntou Viola, voltando um pouco a cabeça, - conhece um estrangeiro nesta cidade, um homem de que se contam mil estranhas histórias?
Fala de Zanoni? Sim, tenho-o visto; conheço-o... Ah! Ele também pode ser meu rival! Ele também pode arrebatar o meu amor!
Engana-se, - respondeu Viola, com precipitação, exalando um profundo suspiro: - Zanoni advoga pelo meu caro Glyndon; foi ele quem me informou deste seu amor, e aconselhou-me que eu. . . o não rejeitasse.
Ser misterioso! Enigma incompreensível! Porque me fala dele? - exclamou Glyndon.
Por quê? Ah! Eu queria perguntar-lhe, quando viu esse homem pela primeira vez, aquele pressentimento, o instinto, de que me falou, se apresentou em sua mente mais aterrador, mais inteligível do que antes; se experimentou um sentimento que o arrastava para esse homem, ao mesmo tempo que outra coisa o mandava fugir de sua presença; se sentiu (e a atriz falava com inquieta animação) que o segredo da sua vida estava em relação com ele?
Sim, - respondeu Glyndon, com voz trêmula, - senti tudo isto pela primeira vez que me encontrei em sua presença. Apesar de ser alegre tudo o que me rodeava, - música, iluminação entre as árvores, conversação agradável ao redor de mim, e o céu acima de mim, sem nuvens, - os meus joelhos tremiam, os meus cabelos se eriçavam, e parecia-me que o sangue se gelava em minhas veias. Desde então, este homem está constantemente nos meus pensamentos.
Basta! Basta! - exclamou Viola, com voz agitada. - Em tudo isto, há de estar a mão do destino. Por enquanto, não posso falar mais contigo. Adeus!
E, ao dizer isto, entrou precipitadamente em casa, e fechou a porta.
Glyndon não a seguiu, nem pensou, por mais estranho que o julguemos, em segui-la. A recordação daquela noite de luar nos jardins e da misteriosa conversação de Zanoni sufocou no seu coração, as paixões humanas. Naquele momento, a imagem de Viola passou como uma sombra, ao mais recôndito recesso do seu coração. Quando se levantou para retirar-se, sentiu que tinha frio, apesar dos ardentes raios de sol e, em seguida, com passo lento, e entregue à meditação, encaminhou-se para a parte mais movimentada da mais rumorosa das cidades italianas.



(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni