Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Terceiro
Capítulo I
Toda Paixão Sempre Retorna
“But that which especially distinguishes the
brotherhood is their marvellous knowledge of all resources of medical art. They
work not by charms, but simples”.M. S. Account of the Origin and Attributeof
the true Rosicrucian’s, by J.Von D.
“Porém, o que especialmente
distingue a Irmandade,é que os seus membros têm um maravilhoso conhecimento de
todos os recursos da arte médica. Eles não agem por meio de encantos, mas por
meio de remédios”. Manuscrito que trata da Origem e dos Atributos dos
verdadeiros Rosacruzes, por J. Von D.
Naquele tempo, apresentou-se a
Viola a oportunidade de pagar ao único amigo de seu inolvidável pai o favor que
lhe fizera, quando, ao vê-la só e desamparada, lhe ofereceu um asilo no meio de
sua família. - O velho Bernardi tinha três filhos que se haviam dedicado à
profissão de seu pai e todos os três tinham abandonado, havia pouco tempo,
Nápoles, para buscarem fortuna em cidades mais ricas do Norte da Europa, onde a
música não possuía tantos virtuosos. Não ficava em casa de Bernardi senão a sua
velha mulher e uma linda e loquaz menina de olhos pretos, de oito anos de
idade, filha do seu segundo filho, cuja mãe morrera ao dar a luz. Esta menina
era a alegria dos dois velhos. Um mês antes da data em que começa esta parte da
nossa história, um ataque de paralisia impedira a Bernardi o desempenho dos
deveres de sua profissão. Deste homem tinha sido sempre um companheiro
sociável, bondoso, impróvido e generoso, gastando diariamente o que ganhava,
como se a velhice e as enfermidades não devessem nunca chegar. Embora recebesse
um pequeno salário por seus serviços passados, este era tão insignificante que
não bastava para cobrir as suas necessidades; além disso, tinha também dívidas.
A pobreza reinava em sua casa,
quando Viola, com um sorriso gracioso e com mão liberal, veio afugentar o
espectro da miséria. Para um coração verdadeiramente bondoso, não é suficiente
que envie e dê; a caridade é mais bela quando visita e consola. “Não esqueça o
amigo de seu pai”. Assim, quase todos os dias, o radiante ídolo de Nápoles
vinha à casa de Bernardi.
De repente, uma nova aflição,
mais grave do que a pobreza e a paralisia, veio contristar o velho músico. Sua
neta, a pequena Beatriz, adoeceu perigosamente, atacada de uma dessas terríveis
febres, tão comuns nos países meridionais; e Viola abandonou suas estranhas e
tétricas meditações e seus sonhos de amor, para ir velar à cabeceira da pequena
enferma.
Esta criança amava muito a Viola,
e os avós pensaram que bastaria a presença desta para restituir a saúde à
enferma; porém, quando Viola chegou, Beatriz não dava acordo de si. Felizmente,
naquela noite não havia função no São Carlos, e a jovem atriz resolveu passar a
noite cuidando da menina.
Pela noite adiante, o estado da criança
piorou; o médico (a arte de curar nunca foi muito adiantada em Nápoles) meneou
a sua polvilhada cabeça, administrou um paliativo qualquer e retirou-se. O
velho Bernardi veio sentar-se ao lado de sua neta, silencioso e acabrunhado;
era o único laço que o ligava à vida. Si se romper a âncora, o navio irá à
pique!
Esta resolução, pesada como
ferro, era muito mais terrível do que a tristeza de ver doente a criança
querida.
Um dos espetáculos mais aflitivos
que podem oferecer as calamidades da vida, é um ancião, com um pé na sepultura,
velando junto ao leito de uma criança moribunda. A avozinha parecia mais ativa
e mais esperançosa; acudia a tudo, embora com lágrimas nos olhos. Viola pôs-se
a cuidar dos três. Ao amanhecer, porém, o estado de Beatriz começou a ser tão
alarmante, que Viola sentiu desvanecer-se toda a esperança.
Eis senão quando a jovem viu que
a anciã, levantando-se de repente de diante da imagem do santo onde estivera
ajoelhada, envolvia-se em sua capa e touca, e saia silenciosamente do quarto.
Viola seguiu-a apressadamente.
– O tempo está demasiado frio para sair,
querida mãe, - disse a jovem. – Permita que eu mesma vá buscar o médico.
– Filha minha, não vou à casa do médico. Ouvi
falar que, na cidade, há um homem muito caridoso para os pobres, e que curou
muitos doentes que médicos declararam já incuráveis. Irei vê-lo e lhe direi:
“Senhor, somos muito pobres, porém ontem éramos muito ricos em amor. Estamos à
borda do túmulo, porém vivíamos da vida da nossa neta. Dê-nos a nossa riqueza, dê-nos
a nossa juventude. Faça com que possamos morrer dando graças a Deus por ter
deixado sobreviver-nos a criatura que adoramos”. E tenho a esperança que não
suplicarei em vão. A boa anciã foi-se.
– Por que bate mais forte o seu coração,
Viola? Um grito agudo de dor, que a menina soltou, chamou a atriz ao lado da
cama, onde o ancião permanecia ainda, com os olhos aterrorizados fitos na
criança e, ignorando que sua mulher saíra em procura da salvação, assistia
horrorizado aos movimentos de agonia do anjinho. Os 'ais' arrancados pela dor
foram reduzindo-se, gradualmente, a um gemido sufocado, as convulsões
tornavam-se mais débeis, porém mais frequentes; o ardor violento da febre
converteu-se em um matiz azul pálido, indício da morte que se aproximava.
A claridade do dia começava a
iluminar o quarto, quando se ouviram passos precipitados na escada. A anciã
entrou correndo; deitou um olhar à doentinha e exclamou:
– Vive ainda, senhor, ela vive ainda!
Viola, que tinha a cabeça da menina
apoiada no seu peito, levantou os olhos, e viu Zanoni. Ele sorriu,
dirigindo-lhe um suave e terno olhar de aprovação, e tomou a criança em seus
braços. No momento em que viu a cabeça de Zanoni inclinar-se silenciosamente
sobre o pálido semblante da menina, um medo supersticioso veio mesclar-se, na
mente de Viola, às suas esperanças. Curava este homem por meios lícitos, por
uma arte santa? Estas perguntas, que a jovem atriz se fazia interiormente,
cessaram de súbito, porque os escuros olhos de Zanoni pareciam ler em sua alma,
e o seu olhar acusava-a da suspeita que sua consciência repreendia com certo
desdém.
– Tranquilize-se - disse Zanoni, dirigindo-se
afavelmente ao ancião; - o perigo pode ainda desaparecer ante os recursos da
ciência humana.
E, tirando do bolso um pequeno
frasquinho de cristal, pingou algumas gotas do seu conteúdo num copo de água.
Apenas este remédio umedeceu os lábios da menina, pareceu produzir um efeito
maravilhoso. A cor reapareceu, em seguida, nos seus lábios e faces, e um sono
tranquilo sucedeu à sua agitação. Um instante depois, o ancião se levantou
rigidamente, como pode levantar-se um corpo quase sem vida, - baixou os olhos,
escutou, e, dirigindo-se lentamente a um canto do quarto, chorou e deu graças a
Deus!
O velho Bernardi havia sido, até
esse momento, um crente frio; a aflição não lhe havia deixado nunca, antes,
erguer a cabeça acima da terra. Apesar da sua idade, nunca havia pensado na
morte, como deve fazê-lo uma pessoa velha; o perigo de sua neta veio despertar
a sua alma, que jazia em um letargo de indiferença. Zanoni disse algumas
palavras, em voz baixa, à anciã, e esta levou seu esposo, com toda a
solicitude, para fora do quarto.
– Permita-me, Viola, que eu fique uma hora
com a criança? Ou pensa ainda que os meus conhecimentos são de origem
diabólica? -
– Ah! - exclamou Viola, humilhada e feliz ao
mesmo tempo. - Perdoe-me, senhor, perdoe-me! Restituiu a vida à menina e fez o
ancião rezar. Nunca mais tornarei a suspeitar de ti, ainda que por pensamentos!
Antes do nascer do sol, Beatriz
estava fora de perigo; e, ao meio-dia, pôde Zanoni esquivar-se aos
agradecimentos do casal de anciães, que o abençoavam; e quando fechava a porta
da casa, encontrou Viola que o aguardava.
A jovem permaneceu, por alguns
instantes, diante dele, com ar tímido e com os braços graciosamente cruzados
sobre o peito, enquanto de seus olhos, que não se atrevia a levantar, caiam
abundantes lágrimas.
– Que não seja eu a única a quem deixa
desconsolada! -murmurou.
– Que efeito quer que produzam em si as ervas
e os anodinos! - respondeu Zanoni. - Se pode com tanta facilidade, pensar mal
dos que a auxiliam e ainda estão prontos a servi-la a sua enfermidade é do
coração; e - não chore! Sendo eu um assistente dos enfermos, e consolador dos
tristes, antes aprovo a sua atitude, em vez de a censurar. Eu a perdoo. A vida,
que sempre necessita perdão, tem, por seu primeiro dever, perdoar.
– Não. Não.
– Não, não me perdoe ainda; não o mereço,
pois ainda que, neste instante, enquanto sinto quão ingrata tenho sido em crer
e suspeitar coisas injuriosas e falsas contra o meu libertador, as minhas
lágrimas caem de prazer, e não arrancadas pelo remorso. Oh! - prosseguiu a
jovem, com singelo fervor, inconsciente, em sua inocência e suas generosas
emoções, - você não pode saber como me era amargo acreditá-lo não melhor, não
mais puro, não mais santo do que todos os outros homens. E quando o vi, - sendo
rico e nobre, vir do seu palácio para socorrer os infelizes que sofriam na
cabana, - quando ouvi as bênçãos dos pobres seguir os seus passos ao sair desta
casa à qual restituiu a felicidade, senti que a minha alma se exaltava também,
boa por sua bondade, nobre ao menos naqueles pensamentos que não a injuriavam.
– E pensa, Viola, que, num mero ato de
ciência, há tanta virtude? O mais vulgar dos médicos visita os enfermos,
recebendo os seus honorários. São as orações e as bênçãos uma recompensa menos
digna do que o ouro?- As minhas, pois, não são sem valor? Quer aceitá-las?
– Ah! Viola! - exclamou Zanoni, com uma
repentina paixão que o fez corar; - você, penso, é a única, em toda a terra,
que pode fazer-me sofrer ou gozar.
Zanoni tendo dito estas palavras,
calou-se por instantes, e o seu semblante tornou-se novamente grave e triste.
– E isto, - prosseguiu com voz alterada, -
porque se quisesse ouvir meus conselhos, parece-me que poderia eu guiar o seu
puro coração a um destino feliz.
– Seus conselhos! Estou disposto a segui-los.
Ordena e eu obedeço. Quando está ausente, sou como uma criança que se assusta
de toda a sombra na escuridão; em sua presença, a minha alma se expande, e todo
o mundo me parece estar cheio de calma celestial de um meio-dia de verão. Não
me negue essa presença. Sou órfã ignorante e só!
Zanoni volveu a cabeça para
ocultar sua emoção, e depois de um momento de silêncio, respondeu
tranquilamente:
– Seja assim, minha irmã; eu a visitarei outra vez!
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni