sexta-feira, 20 de julho de 2018

Zanoni XXI







Zanoni

por Edward Bulwer-Lytton

Livro Terceiro

Capítulo I

Toda Paixão Sempre Retorna

“But that which especially distinguishes the brotherhood is their marvellous knowledge of all resources of medical art. They work not by charms, but simples”.M. S. Account of the Origin and Attributeof the true Rosicrucian’s, by J.Von D.

“Porém, o que especialmente distingue a Irmandade,é que os seus membros têm um maravilhoso conhecimento de todos os recursos da arte médica. Eles não agem por meio de encantos, mas por meio de remédios”. Manuscrito que trata da Origem e dos Atributos dos verdadeiros Rosacruzes, por J. Von D.

Naquele tempo, apresentou-se a Viola a oportunidade de pagar ao único amigo de seu inolvidável pai o favor que lhe fizera, quando, ao vê-la só e desamparada, lhe ofereceu um asilo no meio de sua família. - O velho Bernardi tinha três filhos que se haviam dedicado à profissão de seu pai e todos os três tinham abandonado, havia pouco tempo, Nápoles, para buscarem fortuna em cidades mais ricas do Norte da Europa, onde a música não possuía tantos virtuosos. Não ficava em casa de Bernardi senão a sua velha mulher e uma linda e loquaz menina de olhos pretos, de oito anos de idade, filha do seu segundo filho, cuja mãe morrera ao dar a luz. Esta menina era a alegria dos dois velhos. Um mês antes da data em que começa esta parte da nossa história, um ataque de paralisia impedira a Bernardi o desempenho dos deveres de sua profissão. Deste homem tinha sido sempre um companheiro sociável, bondoso, impróvido e generoso, gastando diariamente o que ganhava, como se a velhice e as enfermidades não devessem nunca chegar. Embora recebesse um pequeno salário por seus serviços passados, este era tão insignificante que não bastava para cobrir as suas necessidades; além disso, tinha também dívidas.
A pobreza reinava em sua casa, quando Viola, com um sorriso gracioso e com mão liberal, veio afugentar o espectro da miséria. Para um coração verdadeiramente bondoso, não é suficiente que envie e dê; a caridade é mais bela quando visita e consola. “Não esqueça o amigo de seu pai”. Assim, quase todos os dias, o radiante ídolo de Nápoles vinha à casa de Bernardi.

De repente, uma nova aflição, mais grave do que a pobreza e a paralisia, veio contristar o velho músico. Sua neta, a pequena Beatriz, adoeceu perigosamente, atacada de uma dessas terríveis febres, tão comuns nos países meridionais; e Viola abandonou suas estranhas e tétricas meditações e seus sonhos de amor, para ir velar à cabeceira da pequena enferma.
Esta criança amava muito a Viola, e os avós pensaram que bastaria a presença desta para restituir a saúde à enferma; porém, quando Viola chegou, Beatriz não dava acordo de si. Felizmente, naquela noite não havia função no São Carlos, e a jovem atriz resolveu passar a noite cuidando da menina.
Pela noite adiante, o estado da criança piorou; o médico (a arte de curar nunca foi muito adiantada em Nápoles) meneou a sua polvilhada cabeça, administrou um paliativo qualquer e retirou-se. O velho Bernardi veio sentar-se ao lado de sua neta, silencioso e acabrunhado; era o único laço que o ligava à vida. Si se romper a âncora, o navio irá à pique!
Esta resolução, pesada como ferro, era muito mais terrível do que a tristeza de ver doente a criança querida.
Um dos espetáculos mais aflitivos que podem oferecer as calamidades da vida, é um ancião, com um pé na sepultura, velando junto ao leito de uma criança moribunda. A avozinha parecia mais ativa e mais esperançosa; acudia a tudo, embora com lágrimas nos olhos. Viola pôs-se a cuidar dos três. Ao amanhecer, porém, o estado de Beatriz começou a ser tão alarmante, que Viola sentiu desvanecer-se toda a esperança.
Eis senão quando a jovem viu que a anciã, levantando-se de repente de diante da imagem do santo onde estivera ajoelhada, envolvia-se em sua capa e touca, e saia silenciosamente do quarto.
Viola seguiu-a apressadamente.

O tempo está demasiado frio para sair, querida mãe, - disse a jovem.  Permita que eu mesma vá buscar o médico.
Filha minha, não vou à casa do médico. Ouvi falar que, na cidade, há um homem muito caridoso para os pobres, e que curou muitos doentes que médicos declararam já incuráveis. Irei vê-lo e lhe direi: “Senhor, somos muito pobres, porém ontem éramos muito ricos em amor. Estamos à borda do túmulo, porém vivíamos da vida da nossa neta. Dê-nos a nossa riqueza, dê-nos a nossa juventude. Faça com que possamos morrer dando graças a Deus por ter deixado sobreviver-nos a criatura que adoramos”. E tenho a esperança que não suplicarei em vão. A boa anciã foi-se.
Por que bate mais forte o seu coração, Viola? Um grito agudo de dor, que a menina soltou, chamou a atriz ao lado da cama, onde o ancião permanecia ainda, com os olhos aterrorizados fitos na criança e, ignorando que sua mulher saíra em procura da salvação, assistia horrorizado aos movimentos de agonia do anjinho. Os 'ais' arrancados pela dor foram reduzindo-se, gradualmente, a um gemido sufocado, as convulsões tornavam-se mais débeis, porém mais frequentes; o ardor violento da febre converteu-se em um matiz azul pálido, indício da morte que se aproximava.
A claridade do dia começava a iluminar o quarto, quando se ouviram passos precipitados na escada. A anciã entrou correndo; deitou um olhar à doentinha e exclamou:

Vive ainda, senhor, ela vive ainda!

Viola, que tinha a cabeça da menina apoiada no seu peito, levantou os olhos, e viu Zanoni. Ele sorriu, dirigindo-lhe um suave e terno olhar de aprovação, e tomou a criança em seus braços. No momento em que viu a cabeça de Zanoni inclinar-se silenciosamente sobre o pálido semblante da menina, um medo supersticioso veio mesclar-se, na mente de Viola, às suas esperanças. Curava este homem por meios lícitos, por uma arte santa? Estas perguntas, que a jovem atriz se fazia interiormente, cessaram de súbito, porque os escuros olhos de Zanoni pareciam ler em sua alma, e o seu olhar acusava-a da suspeita que sua consciência repreendia com certo desdém.
Tranquilize-se - disse Zanoni, dirigindo-se afavelmente ao ancião; - o perigo pode ainda desaparecer ante os recursos da ciência humana.
E, tirando do bolso um pequeno frasquinho de cristal, pingou algumas gotas do seu conteúdo num copo de água. Apenas este remédio umedeceu os lábios da menina, pareceu produzir um efeito maravilhoso. A cor reapareceu, em seguida, nos seus lábios e faces, e um sono tranquilo sucedeu à sua agitação. Um instante depois, o ancião se levantou rigidamente, como pode levantar-se um corpo quase sem vida, - baixou os olhos, escutou, e, dirigindo-se lentamente a um canto do quarto, chorou e deu graças a Deus!
O velho Bernardi havia sido, até esse momento, um crente frio; a aflição não lhe havia deixado nunca, antes, erguer a cabeça acima da terra. Apesar da sua idade, nunca havia pensado na morte, como deve fazê-lo uma pessoa velha; o perigo de sua neta veio despertar a sua alma, que jazia em um letargo de indiferença. Zanoni disse algumas palavras, em voz baixa, à anciã, e esta levou seu esposo, com toda a solicitude, para fora do quarto.
Permita-me, Viola, que eu fique uma hora com a criança? Ou pensa ainda que os meus conhecimentos são de origem diabólica? -
Ah! - exclamou Viola, humilhada e feliz ao mesmo tempo. - Perdoe-me, senhor, perdoe-me! Restituiu a vida à menina e fez o ancião rezar. Nunca mais tornarei a suspeitar de ti, ainda que por pensamentos!

Antes do nascer do sol, Beatriz estava fora de perigo; e, ao meio-dia, pôde Zanoni esquivar-se aos agradecimentos do casal de anciães, que o abençoavam; e quando fechava a porta da casa, encontrou Viola que o aguardava.
A jovem permaneceu, por alguns instantes, diante dele, com ar tímido e com os braços graciosamente cruzados sobre o peito, enquanto de seus olhos, que não se atrevia a levantar, caiam abundantes lágrimas.
Que não seja eu a única a quem deixa desconsolada! -murmurou.
Que efeito quer que produzam em si as ervas e os anodinos! - respondeu Zanoni. - Se pode com tanta facilidade, pensar mal dos que a auxiliam e ainda estão prontos a servi-la a sua enfermidade é do coração; e - não chore! Sendo eu um assistente dos enfermos, e consolador dos tristes, antes aprovo a sua atitude, em vez de a censurar. Eu a perdoo. A vida, que sempre necessita perdão, tem, por seu primeiro dever, perdoar.
Não. Não.
Não, não me perdoe ainda; não o mereço, pois ainda que, neste instante, enquanto sinto quão ingrata tenho sido em crer e suspeitar coisas injuriosas e falsas contra o meu libertador, as minhas lágrimas caem de prazer, e não arrancadas pelo remorso. Oh! - prosseguiu a jovem, com singelo fervor, inconsciente, em sua inocência e suas generosas emoções, - você não pode saber como me era amargo acreditá-lo não melhor, não mais puro, não mais santo do que todos os outros homens. E quando o vi, - sendo rico e nobre, vir do seu palácio para socorrer os infelizes que sofriam na cabana, - quando ouvi as bênçãos dos pobres seguir os seus passos ao sair desta casa à qual restituiu a felicidade, senti que a minha alma se exaltava também, boa por sua bondade, nobre ao menos naqueles pensamentos que não a injuriavam.
E pensa, Viola, que, num mero ato de ciência, há tanta virtude? O mais vulgar dos médicos visita os enfermos, recebendo os seus honorários. São as orações e as bênçãos uma recompensa menos digna do que o ouro?- As minhas, pois, não são sem valor? Quer aceitá-las?

Ah! Viola! - exclamou Zanoni, com uma repentina paixão que o fez corar; - você, penso, é a única, em toda a terra, que pode fazer-me sofrer ou gozar.
Zanoni tendo dito estas palavras, calou-se por instantes, e o seu semblante tornou-se novamente grave e triste.
E isto, - prosseguiu com voz alterada, - porque se quisesse ouvir meus conselhos, parece-me que poderia eu guiar o seu puro coração a um destino feliz.
Seus conselhos! Estou disposto a segui-los. Ordena e eu obedeço. Quando está ausente, sou como uma criança que se assusta de toda a sombra na escuridão; em sua presença, a minha alma se expande, e todo o mundo me parece estar cheio de calma celestial de um meio-dia de verão. Não me negue essa presença. Sou órfã ignorante e só!
Zanoni volveu a cabeça para ocultar sua emoção, e depois de um momento de silêncio, respondeu tranquilamente:
Seja assim, minha irmã; eu a visitarei outra vez!



(continua)


Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +Zanoni