Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo X
Uma
Paixão Desamável
“Oh sollecito dubbio e freda tema
Che pensando l ́ accresci”. Tasso, canzone VI
“Oh, solícita dúvida e frio medo,
que aumenta ao pensar.”
A jovem atriz estava sentada
diante da porta de sua casa. O mar, na encantadora baia que tinha diante dos
olhos, parecia dormir nos braços da praia, enquanto à sua direita, não muito
distantes, se elevavam as negras e amontoadas rochas de onde o viajante de hoje
vai contemplar a tumba de Virgílio, ou comparar com a caverna de Posilipo a
catacumba de Highgate Hill.
Alguns pescadores vagavam por
aqueles rochedos, sobre os quais haviam posto a secar as suas redes; e lá ao
longe, de vez em quando, o som de alguma flauta (mais comum então do que agora)
se mesclava ao ruído das campainhas das mulas preguiçosas e vinha interromper
aquele voluptuoso silêncio que reina nas praias de Nápoles pelas horas do
meio-dia. Nunca, enquanto não o tiver desfrutado, nunca, enquanto não houver
sentido sua deliciosa languidez, não poderá você compreender toda a
significação do “dolce far niente” (isto é, o prazer de não fazer nada); e uma
vez conhecido este suave estado, quando tiver respirado a atmosfera daquela
linda terra, não se admirará mais que o coração amadurece e frutifica tão
prestes e tão abundantemente debaixo do firmamento rosado e sob os gloriosos
raios solares do Sul.
Os olhos da atriz haviam-se
fixado no vasto e profundo mar azulado que se estendia diante dela. O desusado
descuido do seu traje revelava um estado de abstração. Os lindos cabelos
estavam enrolados sena arte, e parcialmente atados com um lenço cuja cor de
púrpura fazia ressaltar mais o brilho dos seus caracóis. Um anel das soberbas
madeixas, que se desprendera inadvertidamente, caialhe sobre o colo gracioso.
Trajava uma bata ampla ajustada ao talhe por um cinto, e o ligeiro sopro da
brisa, que o mar enviava de vez em quando, vinha expirar no seu peito
semi-descoberto; e as minúsculas chinelas, que até Cinderela poderia calçar,
pareciam um mundo demasiadamente espaçoso para o delicado pé que só em parte
cobria. Talvez fosse o calor do dia que houvesse aumentado a cor rosada das
suas faces, e dava uma extraordinária languidez aos seus grandes olhos negros.
Nunca Viola, com toda a pompa do seu traje teatral, e todo o brilho que ao seu
semblante comunicara o resplendor das lâmpadas, havia parecido tão formosa.
Ao lado da atriz, no umbral da
porta, estava Gianetta, com as mãos metidas nas enormes algibeiras do avental.
– Mas eu lhe asseguro - disse a aia, esse tom
agudo, rápido e pouco melodioso, que é tão comum às anciãs do sul - eu lhe
asseguro, minha querida, que não há, em toda Nápoles, um cavalheiro mais fino,
elegante belo do que este inglês; e ouvi dizer que todos os ingleses são mais
ricos do que parecem. Embora eles não tenham árvores no seu país, pobre gente!
E em vez de vinte e quatro, só tenham doze horas no seu dia; fui informada que
seus cavalos têm ferraduras de ouro; e como estes senhores ingleses - pobres
heréticos! - não podem fazer vinho, porque não têm uvas, preparam remédios de
ouro e tomam um copo ou dois de dinheiro de ouro, quando se sentem atacados de
cólicas. Porém, vejo que não me escuta, minha queridinha, e então?...
– Todas estas coisas se dizem de Zanoni! -
disse Viola, como a si mesma, sem fazer caso dos elogios que Gianetta tributava
a Glyndon e aos ingleses.
– Virgem Maria! Não fale desse terrível
Zanoni. Pode estar bem certa de que a sua formosura, como também as suas
bonitas moedas de ouro, é tudo bruxaria. Cada quarto de hora vou olhar o
dinheiro que ele me deu noutra noite, para ver si se converteu em pedra.
– Crê realmente - perguntou Viola, com tímida
seriedade - que existe a bruxaria?
– Se o creio! Creio-o, como creio no bendito
São Januário. Como pensa que Zanoni curou o velho Felipe, o pescador, quando o
médico o deixou porque não havia remédio para a sua doença? Como pôde ele ter
conseguido viver pelo menos trezentos anos? E 141 como pensa que ele fascina
aos que olha e faz com que se submetam à sua vontade, tal e qual como os
vampiros?
– Ah! É bruxaria tudo isto? Sim, deve sê-lo!
- murmurou Viola, empalidecendo.
Gianetta mesma não era mais
supersticiosa do que a filha do músico; assim é que a inocência da jovem se
alarmou ao sentir os efeitos de uma paixão original, atribuindo à magia o que
outros corações mais experimentados teriam tido por amor.
– E depois, como é que esse grande Príncipe
de *** ficou aterrorizado diante dele? Porque deixou de perseguir-nos? Por que
ficou tão tranquilo e quieto? Não há, em tudo isto, bruxaria? - continuou
Gioneta.
– Pensa, pois, - disse Viola, com certa
timidez, - que devo esta felicidade e segurança à sua proteção? Ah! Deixa-me
que eu assim o creia! Não me diga mais nada, Gianetta! Por que, ó lindo Sol,
não tenho senão a ti e aos meus terrores para consultar? - exclamou a jovem,
pondo a mão sobre o coração, com apaixonado ardor. - Oh! Querido Sol, que
ilumina tudo, menos este lugar. Vai Gianetta! Deixe-me só, quero ficar só;
deixe-me.
E, com efeito, já é hora que a
deixe, pois, do contrário, perderíamos a “polenta”, e você não provou nada em
todo o dia. Se não come minha querida, perderá a sua beleza, e ninguém a
olhará. Ninguém se importa com as mulheres feias, eu o sei; e se ficar feia,
como a velha Gianetta, haverá de procurar alguma Viola, para ter consigo uma
criatura bonita. Agora vou ver a “polenta”.
– Desde que conheci este homem, - disse a
jovem a meia voz, - desde que os seus negros olhos em mim se fitaram, sinto-me
totalmente transformada. Desejaria fugir de mim mesma, desaparecer como os
raios do sol detrás do horizonte; converter-me em alguma coisa que não seja
deste mundo. De noite, uma multidão de fantasmas cruza por diante dos meus
olhos, enquanto sinto no coração uma agitação como se fossem as asas de uma
ave, quase como se o meu espírito aterrorizado quisesse fugir de sua prisão.
E, enquanto a atriz pronunciava
estas incoerentes palavras, um homem aproximou-se dela, sem ser pressentido, e
tocando-lhe levemente no braço, disse:
– Viola! Belíssima Viola!
A jovem voltou a cabeça e viu
Glyndon. A presença do elegante mancebo tranquilizou-a algum tanto, dando-lhe
mesmo prazer.
– Viola, - disse o inglês tomando-lhe a mão e
fazendo-a sentar-se outra vez no banco do qual se tinha levantado, - é preciso
que me escute. Deve já ter percebido que a amo. Não foi mera compaixão ou
admiração o que me impeliu sempre e sempre para o seu lado. Se até aqui não
tenho falado senão com os olhos, é porque certas razões me o impediram, hoje,
nem sei dizer porque sinto-me com mais coragem para dirigir-me àquela de quem
depende a minha felicidade ou a minha desgraça. Sei que tenho rivais, rivais
que são mais poderosos do que o pobre artista; serão eles também mais ditosos
do que eu?
Viola corou levemente; porém, o
seu aspecto era grave e um tanto abatido. A jovem permanecia com os olhos
baixos e, enquanto traçava, com a ponta da chinela, algumas figuras
hieroglíficas na areia, respondeu:
– Senhor quem quer que ponha seus pensamentos
numa atriz, há de conformar-se em ter rivais. É nosso cruel destino não sermos
sagradas nem a nós mesmas.
– Porém, diga-me Viola, não gosta desta
carreira tão brilhante como é e na qual tem alcançado tantos e tão belos
triunfos?
– Ah, não! - respondeu a atriz, com os olhos
marejados de lágrimas. - Em outro tempo, anelei ser sacerdotisa do canto e da
música; agora só sinto que é uma triste sorte ser escrava da multidão.
– Fujamos, pois, - disse o artista, apaixonadamente;
- abandone para sempre a carreira que me rouba parte desse coração que eu
somente quereria possuir. Compartilhe da minha sorte agora e sempre. Será o meu
orgulho, a minha delicia, o meu ideal. Inspirará o meu pincel; a sua beleza
será santa e admirada ao mesmo tempo. A multidão se aglomerará nas galerias de
príncipes para contemplar a esfinge de uma Vênus ou de uma Santa, e um murmúrio
de entusiasmo dirá: “Viola Pisani!” Ah! Viola, eu a adoro! Diga-me uma palavra,
uma só, de esperança.
– Glyndon, - redarguiu Viola, contemplando o
seu apaixonado, enquanto este se lhe –aproximava ainda mais e a olhava ansioso, ao mesmo tempo que lhe
apertava suavemente a mão, - o que é que eu posso dar-lhe em troca?
– Viola! Belíssima Viola!- Amor, amor, - nada
mais que amor! - Um amor de irmão?- Ah! Porque é tão cruel para mim?
– Não posso amar-lhe de outra maneira, -
respondeu a jovem. - Escute-me, peço-lhe. Quando o vejo e ouço a sua voz, sinto
que uma calma doce e tranquila adormece meus pensamentos, ardentes e estranhos.
Quando se ausenta, meu amigo, parece-me que uma nuvem obscurece o dia, porém
essa nuvem não tarda em desaparecer. Não quero enganar-lhe; não sinto a sua
falta, não o amo e darei a minha mão somente a quem eu amar.
– Mas não poderá vir a amar-me, um dia? O
amor que acaba de descrever-me, em nossos climas tranquilos é o amor da
inocência e da juventude.
– Da inocência!- repetiu Viola. - É certo?
Talvez...A jovem quedou-se pensativa, um instante e acrescentou, após um grande
esforço:
– Estrangeiro! Daria sua mão a uma órfã? Ah,
o senhor ao menos é generoso! Não quer destruir a inocência!
Glyndon teve um sobressalto, como
se fosse impelido por um remorso da consciência.
– Não, não é possível! - prosseguiu a jovem,
levantando-se, sem suspeitar os pensamentos que cruzavam a mente do enamorado
mancebo, pensamentos de vergonha e de suspeita ao mesmo tempo.
– Peço-lhe que se retire, e que me esqueça. O
senhor não compreende, nem pode compreender a natureza o caráter da mulher que
julga amar. Desde a minha infância, até agora, tenho sentido sempre como se
estivesse destinada para não sei que fim estranho e sobrenatural; parece-me que
sou o único ser de minha espécie. Este sentimento (Oh! Às vezes ele tem um não
sei que de delicioso e vago, e outras vezes transforma-se numa aflição
inexplicável) domina-me cada vez mais. Ele é como a sombra do crepúsculo, que
se estende lenta e solenemente sobre a terra, anunciando a noite. A minha hora
se aproxima; em breve será noite para mim!
Enquanto a jovem atriz falava,
Glyndon escutava, visivelmente comovido, como se fosse preso de uma forte
agitação.
– Viola! - exclamou ele, quando a jovem
cessou de falar, -essas palavras não fazem mais do que estreitar os laços que
me ligam a ti. Eu sinto o mesmo que acaba de descrever-me. Eu também tenho
sofrido sob a influência de uma voz terrível e misteriosa, que não pertence a
terra. No meio das multidões, tenho-me sentido só. Nos meus prazeres, nas
minhas aflições, em todos os meus intentos, essa voz murmura sempre no meu
ouvido: “O tempo te reserva um negro mistério para provar a tua coragem”.
Quando ouço a sua voz, Viola, parece-me ouvir o eco da minha própria alma
Viola contemplou-o com uma
espécie de temor mesclado de admiração. O semblante da jovem estava, neste
momento, branco como o mármore; e aquelas feições, tão divinas em sua rara
simetria, podiam ter servido ao pintor grego para representar a Pitonisa,
quando, em sua mística caverna e sentada junto à fonte murmurante, ouvia a voz
do deus que a inspirava. A rigidez do seu formoso semblante foi desaparecendo
pouco a pouco, a cor volveu-lhe às faces, o pulso batia novamente com
regularidade e o coração reanimou-se.
– Diga-me, - perguntou Viola, voltando um
pouco a cabeça, - conhece um estrangeiro nesta cidade, um homem de que se
contam mil estranhas histórias?
– Fala de Zanoni? Sim, tenho-o visto;
conheço-o... Ah! Ele também pode ser meu rival! Ele também pode arrebatar o meu
amor!
– Engana-se, - respondeu Viola, com
precipitação, exalando um profundo suspiro: - Zanoni advoga pelo meu caro
Glyndon; foi ele quem me informou deste seu amor, e aconselhou-me que eu. . . o
não rejeitasse.
– Ser misterioso! Enigma incompreensível!
Porque me fala dele? - exclamou Glyndon.
– Por quê? Ah! Eu queria perguntar-lhe,
quando viu esse homem pela primeira vez, aquele pressentimento, o instinto, de
que me falou, se apresentou em sua mente mais aterrador, mais inteligível do
que antes; se experimentou um sentimento que o arrastava para esse homem, ao
mesmo tempo que outra coisa o mandava fugir de sua presença; se sentiu (e a
atriz falava com inquieta animação) que o segredo da sua vida estava em relação
com ele?
– Sim, - respondeu Glyndon, com voz trêmula,
- senti tudo isto pela primeira vez que me encontrei em sua presença. Apesar de
ser alegre tudo o que me rodeava, - música, iluminação entre as árvores,
conversação agradável ao redor de mim, e o céu acima de mim, sem nuvens, - os
meus joelhos tremiam, os meus cabelos se eriçavam, e parecia-me que o sangue se
gelava em minhas veias. Desde então, este homem está constantemente nos meus
pensamentos.
– Basta! Basta! - exclamou Viola, com voz
agitada. - Em tudo isto, há de estar a mão do destino. Por enquanto, não posso
falar mais contigo. Adeus!
E, ao dizer isto, entrou
precipitadamente em casa, e fechou a porta.
Glyndon não a seguiu, nem pensou, por mais estranho
que o julguemos, em segui-la. A recordação daquela noite de luar nos jardins e
da misteriosa conversação de Zanoni sufocou no seu coração, as paixões humanas.
Naquele momento, a imagem de Viola passou como uma sombra, ao mais recôndito
recesso do seu coração. Quando se levantou para retirar-se, sentiu que tinha
frio, apesar dos ardentes raios de sol e, em seguida, com passo lento, e
entregue à meditação, encaminhou-se para a parte mais movimentada da mais
rumorosa das cidades italianas.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni