Zanoni
Capítulo I
Livro Primeiro
O Músico
“Vergine era D’alta beltà, ma sua beltà non
cura:
Di natura, d’amor, de cieli amici
Le negligenze sue sono artifici”.
Gerusal. LIb., canto II, 14-18.
“Era uma virgem de grande beleza,
mas de sua beleza não fazia caso: A negligência mesma é arte nos que são
favorecidos pela Natureza, pelo amor e pelos céus”. Na segunda metade do século
XVIII, vivia e florescia em Nápoles um honrado artista, cujo nome era Caetano
Pisani. Era um músico de grande gênio, mas não de reputação popular; havia em
todas as suas composições algo caprichoso e fantástico, que não era do gosto
dos “dilettanti” de Nápoles. Era ele amante de assuntos pouco familiares, nos
quais introduziam toadas e sinfonias que excitavam uma espécie de terror nos
que as ouviam. Os títulos das suas composições lhes dirão, já por si mesmos de
que índole era. Acho, por exemplo, entre os seus manuscritos: “A Festa das
Harpias”, “As bruxas em Benevento”, “A descida de Orfeu aos Infernos”, “O mau
olhado”; Londres, Janeiro de 1842. “As Eumênides”, e muitos outros, que
demonstram nele uma grande imaginação que se deleitava com o terrível e o
sobrenatural, mas às vezes se elevava, com delicada e etérea fantasia, com
passagens de esquisita beleza, até ao sublime. É verdade que, na escolha dos
seus assuntos, que tomava da fábula antiga, Caetano Pisani era muito mais fiel
do que seus contemporâneos à remota origem e ao primitivo gênio da Opera
Italiana. Quando este descendente, embora efeminado, da antiga união do Canto e
do Drama, depois de uma longa obscuridade e destronamento, tornou a aparecer
empunhando o débil cetro e, coberto com mais brilhante púrpura, nas margens do
Amo, na Etrúmia, ou no meio das lagoas de Veneza, hauriu as suas primeiras
inspirações das desusadas e clássicas fontes da lenda pagã; e “A Descida de
Orfeu”, de Pisani, era apenas uma repetição muito mais atrevida, mais tenebrosa
e mais científica da “Eurídice”, que Jacopo Peri pôs em música quando se
celebraram as augustas núpcias de
[1]
Henrique de Navarra com Maria de
Médicis .
Todavia, como já disse, o estilo
do músico napolitano não era agradável em tudo aos ouvidos delicados,
acostumados às suaves melodias do dia; e os críticos, para desculparem seu
desagrado, apoderavam-se das faltas e das extravagâncias do compositor, que
facilmente se descobriam em suas obras, e ponderavam-nas, muitas vezes, com
intenção maligna. Felizmente, - pois do contrário o pobre músico teria morrido
de fome, - ele não era somente compositor, mas também um excelente tocador de
vários instrumentos, e especialmente de violino, e com este instrumento ganhava
uma decente subsistência, tendo encontrado uma colocação na orquestra do Grande
Teatro de São Carlos. Aqui, os deveres formais e determinados, dados pela sua
colocação, serviam necessariamente de tolerável barreira às suas
excentricidades e fantasias, ainda que se saiba que não menos de cinco vezes
deposto do seu lugar por haver desgostado os executantes e levado em confusão
toda a orquestra, tocando, de repente, variações de uma natureza tão frenética
e espantadiça que se podia pensar que as harpias ou as bruxas, que o inspiravam
em suas composições, se haviam apoderado do seu instrumento. A impossibilidade,
porém, de se encontrar um violinista de igual notabilidade (isto é, em seus
momentos de maior lucidez e regularidade) era a causa de sua reinstalação, e
ele, agora, quase sempre se conformava a não sair da estreita esfera dos
“adágios” ou “alegros” das suas notas. Além disso, o auditório, conhecendo sua
propensão percebia imediatamente quando ele começava a desviar-se do texto; e
se o músico divagava um pouco, o que se podia descobrir tanto pela vista como
pelo ouvido, por alguma estranha contorção do seu semblante, ou por algum gesto
fatal do seu arco, um suave murmúrio admonitório do público tornava a
transportar o violinista, das regiões do Eliseu ou do Tártaro à sua modesta
estante. Então parecia ele despertar, sobressaltado, de um sonho; lançava um
rápido, tímido e desconcertante olhar em redor de si, e com ar abatido e
humilhado, fazia voltar o seu rebelde instrumento ao carril trilhado da volúvel
monotonia.
Em casa, porém, se recompensava
desta relutante servilismo. Agarrando com dedos ferozes o infeliz violino,
tocava e tocava muitas vezes até ao amanhecer, fazendo sair do instrumento sons
tão estranhos e desenfreados, que enchiam de supersticioso terror os pescadores
que viam nascer o dia na praia contígua à sua casa, e até ele mesmo estremecia
como se alguma sereia ou algum espírito entoasse ecos extraterrestres ao seu
ouvido.
O semblante deste homem oferecia
um aspecto característico da gente de sua arte. As suas feições eram nobres e
regulares, porem magras e um tanto pálidas; os negros cabelos descuidados
formavam uma multidão de caracóis; e os seus grandes e profundos olhos
costumavam permanecer fixos, contemplativos, sonhadores. Todos os seus
movimentos eram particulares, repentinos e ligeiros, quando o frenético impulso
dele se apoderava; e quando andava precipitadamente pelas ruas, ou ao longo da
praia, costumava rir e falar consigo mesmo. Contudo, era um homem pacífico,
inofensivo e amável, que partia o seu pedaço de pão com qualquer dos “lazaroni” preguiçosos, parando para
contemplá-los como se estendiam ociosos, ao sol. Não obstante, esse músico era
totalmente insociável. Não tinha amigos; não adulava a nenhum protetor, nem
concorria a nenhum desses alegres divertimentos, de que gostam tanto os filhos
da Música e do Sul.
Parecia que ele e a sua arte eram
feitos para viverem isolados e um para o Outro: ambos delicados e estranhos,
irregulares, pertencentes aos tempos primitivos ou a um mundo desconhecido: Era
impossível separar o homem da sua música; esta era ele mesmo. Sem ela, Pisani
era nada, não passava de uma máquina! Com ela, era o rei dos seus mundos
ideais. E isto já bastava, ao pobre homem! Numa cidade fabril de Inglaterra, há
uma lousa sepulcral, cujo epitáfio recorda “um homem, chamado Cláudio Philips, que foi a admiração de
quantos o conheceram, devido ao desprezo absoluto que manifestava pelas
riquezas, e devido à sua inimitável habilidade em tocar violino”. União lógica
de opostos louvores! Tua habilidade no violino, ó Gênio, será tão grande,
quanto o seja o teu desprezo pelas riquezas!
O talento de Caetano Pisani, como
compositor, se havia manifestado principalmente em música apropriada ao seu
instrumento favorito, que é, indubitavelmente, o mais rico em recursos e o mais
capaz de exercer o poder sobre as paixões. O violino de Cremona é, entre os
instrumentos, o que Shakespeare é entre os poetas. Todavia, Pisani tinha
composto outras peças de maior ambição e mérito, e a principal era a sua
preciosa, sua incomparável, sua não publicada, sua não publicável e imortal
ópera “Sereia”. Esta grande obra
prima tinha sido o sonho doirado de sua infância, a dona da sua idade viril; e,
à medida que ele avançava na idade, “estava a seu lado como sua juventude”. Em
vão Pisani se tinha esforçado para apresentá-la ao público. Até o amável e
bondoso Paisielo, mestre de capela, meneava a gentil cabeça, quando o músico o
obsequiava com algum ensaio de uma das suas cenas mais marcantes. Contudo,
Paisielo, ainda que essa música difira de tudo o que Durante te ensinou como
regras de boa composição, pode ser que. . . Paciência Caetano Pisani! Aguarda o
tempo, e afina o teu violino!
Por mais estranho que possa
parecer à bela leitora, esta grotesca personagem havia contraído aqueles laços
que os mortais ordinários são capazes de considerar seu especial monopólio, -
tinha-se casado, e era pai de uma filha. E o que parecerá mais estranho ainda,
a sua esposa era filha de um calmo, sóbrio e concentrado inglês: tinha muito
menos anos de idade do que o músico; era formosa e amável, com um doce
semblante inglês; havia-se casado com ele por escolha própria, e (crê-lo-eis?)
amava-o ainda. Como aconteceu que ela se casou com ele, ou como este homem
esquivo, intratável, impertinente se havia atrevido a propor-lhe, só posso
explicá-lo, convidando-lhe a dirigir o seu olhar em redor de si, para depois
explicar, primeiro a mim, como a metade dos homens e a metade das mulheres que
você conhece, puderam encontrar o seu cônjuge! Entretanto, refletindo bem, esta
união não era coisa tão extraordinária. A moça era filha natural de pais
demasiado pobres para reconhecê-la ou reclamá-la. Foi levada à Itália para
aprender a arte que devia proporcionar-lhe os meios de viver, pois a jovem
tinha gosto e voz; vivia em dependência, e via-se tratada com dureza. O pobre
Pisani era seu mestre, e a voz dele era a única que a jovem havia ouvido desde
o seu berço, e que lhe parecia não a escarnecer ou desprezar. E assim. . . o
resto não é uma coisa muito natural? Natural ou não, eles se casaram. Esta
jovem amava o seu marido; e, jovem e amável como era, podia dizer-se quase que
era o gênio protetor dos dois. De quantas desgraças tinha-o salvo a sua
ignorada mediação oficiosa contra os déspotas de São Carlos e do Conservatório!
Em quantas enfermidades, - pois Pisani era de constituição delicada, - tinha-lhe
assistido e dado alimentação! Muitas vezes, nas noites escuras, esperava-o à
porta do teatro, com sua lanterna acesa, dando-lhe o seu robusto braço em que
ele se apoiava, para ser guiado por ela; se não o fizesse, quem sabe, o músico,
em seus abstratos sonhos e desvarios, não se teria arrojado ao mar, em busca da
sua ”Sereia”! Por outra parte, a boa esposa escutava com tanta paciência (pois
nem sempre o bom gosto é companheiro do verdadeiro amor) e com tanto prazer,
aquelas tempestades de excêntrica e caprichosa melodia, até que, por meio de
constantes elogios, conseguia levá-lo à cama, quando ele, no meio da noite, se
punha a tocar. Eu disse que a música era uma parte desse homem, e esta gentil
criatura parecia ser uma parte da música; com efeito, quando ela se sentava
junto dele, tudo o que era suave e maravilhoso em sua matizada fantasia, vinha
mesclar-se imperceptivelmente com a agradável harmonia. Sem dúvida, a presença
dessa mulher influía sobre a música, modificando-a e suavizando-a; Pisani, porém,
que nunca perguntava de onde ou como lhe vinha a inspiração, ignorava-o. Tudo o
que ele sabia era que amava e abençoava a sua esposa. Ele pensava que lhe dizia
pelo menos vinte vezes por dia; mas, na realidade, não lhe dizia nunca, pois
era muito parco de palavras, até para a sua consorte. A linguagem de Pisani era
a música; assim como a linguagem da sua mulher era os seus cuidados! Ele era
mais comunicativo com seu bárbito, como o sábio Merseno nos ensina a chamarmos
a todas as variedades da grande família da viola. Certamente, bárbito soa
melhor do que “rabeca”; deixemo-lo, pois, ser bárbito. Pisani passava horas
inteiras falando com este instrumento, - louvando-o, censurando-o,
acariciando-o; e até (pois assim é o homem, por mais inocente que seja) já o
havia ouvido jurar por seu bárbito; mas este excesso sempre lhe causava, em
seguida, remorso e penitência. E o instrumento tinha a sua linguagem
particular, sabia responder-lhe; e quando ele, o bárbito, ralhava, fazia-o às
mil maravilhas. Era um nobre companheiro, este violino! Um tirolês, que havia
saído das mãos do ilustre instrumentista Steiner. Havia algo de misterioso em
sua grande idade. Quantas mãos, agora já convertidas em pó, tinham feito vibrar
suas cordas, antes que passasse a ser o amigo familiar de Caetano Pisani? Até a
sua caixa era venerável; tinha sido belamente pintada, segundo se dizia, por
Caraci. Um inglês colecionador de antiguidades ofereceu a Pisani mais dinheiro
pela caixa, do que este tinha ganhado com o violino. Porém, o músico, a quem
pouco importava morar numa choupana, orgulhava-se de ter um palácio para o
bárbito, ao qual considerava como seu filho primogênito. Mas ele tinha também
uma filha, da qual agora nos vamos ocupar.
Como deverei fazer, ó Viola, para
descrever-te? Com certeza, a Música foi, de algum modo, responsável pelo
advento desta jovem desconhecida. Pois tanto em sua forma, como em seu caráter,
pode-se descobrir uma semelhança familiar com essa singular e misteriosa vida
do som, que, noite após noite, andava nos ares, imitando os divertimentos dos
espíritos dos elementos nos mares estrelados. . . Viola era formosa, porém de
uma formosura pouco comum; era urna combinação harmoniosa de atributos opostos.
Os seus cabelos eram de um ouro mais rico e mais puro do que os que vêem no
Norte; mas os olhos, totalmente pretos, eram de uma luz mais terna e mais
encantadora do que os olhos das italianas, sendo quase de esplendor oriental. A
sua fisionomia era extraordinariamente linda, mas nunca a mesma: ora rosada,
ora pálida; e, com a variação da sua fisionomia, também variava a sua disposição:
Ora era muito triste, ora muito alegre.
Sinto ter que dizer que esta
jovem não tinha recebido dos seus pais, em grau satisfatório, o que nós
chamamos, com razão, educação. Não resta dúvida que nenhum deles possuía
grandes conhecimentos que pudessem ensinar; e, naquela época, a instrução não
era tão espalhada entre o povo, como o é hoje. Mas o Acaso ou a Natureza
favoreceram a jovem Viola. Ela aprendeu, como era natural, a falar tanto a língua
materna como a paterna. Também aprendeu, em breve, a ler e a escrever; e sua
mãe, que era católica romana, ensinou-lhe, já na infância, a rezar. Porém, em
contraste com todas estas aquisições, os estranhos costumes de Pisani e os
incessantes cuidados e ocupações que ele reclamava de sua mulher, faziam com
que, muitas vezes, a menina ficasse com uma velha aia que, com certeza, amava-a
ternamente, mas não estava habilitada para instruí-la.
Dona Gianetta, a aia, era uma
italiana e napolitana completa. A sua juventude era todo amor, e a sua idade
madura era toda superstição. Era uma mulher loquaz e indiscreta, - uma
palradora. Umas vezes falava à menina de cavalheiros e príncipes prosternados a
seus pés, outras vezes lhe gelava o sangue nas veias, aterrorizando-a com
histórias e lendas, talvez tão velhas como as fábulas gregas ou etruscas, de
demônios e vampiros, - das danças ao redor da grande nogueira de Benevento, e
da benzedura contra o mal olhado. Todas estas coisas concorreram
silenciosamente para gravar supersticiosas ideias, na imaginação de Viola, que
nem a idade, nem a reflexão puderam dissipar. E tudo isso fez com que se
afeiçoasse, com uma espécie de mistura de temor e alegria, à música de seu pai.
Aquelas toadas visionárias, lutando sempre por traduzir em tons selvagens e
desconcertados a linguagem de seres extraterrestres, rodeavam-na desde o berço.
Pode-se dizer, pois, que sua imaginação, sua mente estava cheia de música;
encontros amorosos, recordações, sensações de prazer ou de sofrimento, - tudo
estava mesclado, inexplicavelmente, com aqueles sons que ora a deleitavam, ora
a enchiam de terror; isto a afagava e saudava quando abria os olhos ao sol, e
fazia-a despertar sobressaltada, quando se encontrava só em sua cama, rodeada
da escuridão da noite. As lendas e os contos de Gianetta serviam somente para
que a jovem compreendesse melhor o significado daqueles misteriosos tons;
forneciam-lhe as palavras para a musica. Era, pois, natural que a filha de tal
pai manifestasse cedo algum gosto pela sua arte. Ainda era muito criança e já
cantava divinamente. Um grande cardeal - grande igualmente no Estado e no
Conservatório - tendo ouvido elogiar o seu talento, mandou buscá-la. Desde
aquele momento, a sua sorte ficou decidida: estava destinada a ser a futura
glória de Nápoles, a “prima dona” do São Carlos. O Cardeal, insistindo em que
se cumprisse sua predição, lhe deu os mais célebres mestres. Para despertar
nela o espírito de emulação, Sua Eminência levou-a, numa noite, ao seu
camarote, crendo que serviria de alguma coisa ver a representação e ouvir os
aplausos que se prodigalizavam às deslumbrantes artistas, as quais ela devia
superar um dia. Oh! Como é gloriosa a vida teatral, e como é belo o mundo de
música e de canto, que começava a brilhar para ela!
Parecia ser o único que
correspondia a seus estranhos e juvenis pensamentos. Afigurava-se-lhe que,
tendo vivido até então em terra estrangeira, via-se, enfim, transportada a uma
região onde encontrava as formas e ouvia a linguagem do seu país natal. Belo e
verdadeiro entusiasmo, elevado pela promessa do gênio! Menino ou homem, nunca
será poeta, se não sentiste o ideal, o romance, se não viste a ilha de Calypso
diante dos teus olhos, quando, pela primeira vez, levantando-se o mágico véu,
se te apresentar o mundo da poesia sobreposto ao mundo da prosa!
E agora começou a iniciação para
a jovem. Ia ler, estudar, descrever com um gesto, com um olhar, as paixões que
depois devia expressar no palco; lições perigosas, na verdade, para algumas
pessoas, mas não para o puro entusiasmo que nasce da arte: para a mente que a
concebe exatamente, a arte não é mais que o aparelho onde se reflete o que se
põe sobre sua superfície, enquanto está sem mácula, Viola compreendeu a
natureza e a verdade, intuitivamente. As suas audições estavam impregnadas de
um poder de que ela não era consciente; a sua voz comovia os ouvintes até as
lágrimas, ou inspirava-lhes uma generosa ira. Mas estas emoções eram produzidas
pela simpatia que manifesta sempre o gênio, até em seus anos de infantil
inocência, por tudo o que sente, aspira ou sofre. Ela não era uma mulher
prematura que compreendia o amor ou o ciúme que as palavras exprimiam; a sua
arte era um daqueles estranhos segredos que os psicólogos podem explicar-nos,
se lhes apraz, dizendo-nos, ao mesmo tempo, porque crianças de uma mente
singela e de um coração puro sabem distinguir tão bem, nos contos que lhes são
relatados ou nos cantos que ouvem, a diferença entre a arte verdadeira e a
falsa, entre a linguagem apaixonada e a geringonça, entre Homero e Racine, - e
porque ressoam, dos corações que não têm ainda sentido o que repetem, os
melodiosos acentos, tão naturalmente patéticos.
Fora de seus estudos, Viola era
uma menina singela e afetuosa, porém um tanto caprichosa, - caprichosa não em
seu caráter, pois que este era sempre afável e dócil, mas em sua disposição de
ânimo, que, como já disse, passava da tristeza à alegria e vice-versa, sem uma
causa aparente. Se existia alguma causa, só podia atribuir-se às precoces e
misteriosas influências que já referi, ao tratar de explicar o efeito produzido
em sua imaginação por aquelas estranhas e arrebatadoras correntes de som que
constantemente a rodeavam; pois convém notar que aqueles que são demasiado
sensíveis aos efeitos da música, se vêem incessantemente acossados, nas suas
lidas mais ordinárias, por melodias e tons que os atormentam e inquietam. A
música sendo uma vez admitida à alma converte-se em uma espécie de espírito, e
nunca morre. Ela percorre perturbadoramente, os recantos e as galerias da
memória, e é ouvida, frequentemente, tão viva e distinta como quando fendeu os
ares pela primeira vez. De quando em quando, pois, estes fantasmas de sons
vagavam pela imaginação de Viola; faziam aparecer um sorriso em seus lábios, se
eram alegres; anunciavam o seu semblante, se eram tristes; e então ela
abandonava de repente a sua infantil alegria e sentava-se num canto, muda e
meditativa.
Com razão, pois, em sentido
alegórico, podia-se chamar a esta formosa criatura, de forma tão aérea, de
beleza tão harmoniosa, de pensamentos e costumes tão pouco comuns, mais
justamente filha da música do que do músico; um ser do qual se podia imaginar
que lhe estava reservado algum destino, menos da vida comum do que do romance,
desses que, pelo que os olhos podem ver, e pelo que os corações podem sentir,
deslizam sempre, junto com a vida real, de corrente em corrente, até ao Oceano
Negro.
Por isso, não parecia estranho que Viola, mesmo já em
sua meninice, e muito mais quando começava a florescer na doce serenidade da
juventude virginal, cresse ser a sua vida destinada a participar, fosse a bem
ou mal, do romance, cheio de sonhos, que formava a atmosfera da sua existência.
Frequentemente penetrava nos bosquezinhos que cercavam a gruta de Posillipo, -
a grande obra dos antigos cimerianos, - e, sentada ao lado da Tumba de
Virgilio, entregava-se a essas visões, a essas sutis divagações que nenhuma
poesia pode tornar palpáveis e definidas; porque o poeta que excede a todos que
têm cantado, é o coração da juventude sonhadora! Muitas vezes também, sentada
ali ao umbral, sobre o qual pendiam as folhas de parreira, e olhando o azulado
e sereno mar, passava a jovem as horas do meio-dia outonal, ou os crepúsculos
do verão, construindo seus castelos no ar. Quem é que não faz a mesma coisa, -
não só na juventude, como também no meio de débeis esperanças da idade madura?
Uma das prerrogativas do homem, desde o rei até ao campônio, é sonhar. Mas
esses sonhos eram em Viola mais habituais, mais distintos ou mais solenes do
que a maior parte de nós desfruta. Pareciam ser como o Orama dos gregos, -
fantasmas proféticos.
(continua)