Zanoni
Capítulo V
Um
Encontro Misterioso
“QuelIo
Ippogrifo, grande e strano augello Lo porta via”.
“Aquele
Hipogrifo, grande e maravilhoso pássaro, leva-o embora”.
Orlando Furioso, canto VI, 18.
Agora, acompanhando este
misterioso Zanoni, tenho que deixar, por algum tempo, Nápoles. Monta, leitor
amigo, na garupa do meu hipogrifo, coloque-se nele da melhor forma que puder.
Há poucos dias que comprei a sela a um poeta amante da comodidade, e depois fiz
recheia-la para você se acomodar nela melhor. Assim pois, montemos! Veja como
nos levantamos nos ares, - olhe! - não tema, os hipogrifos nunca tropeçam e, na
Itália, estão acostumados a carregar cavaleiros de avançada idade. Dirija o
seu olhar à terra, debaixo de nós! Ali, perto dos rumas da antiga cidade osca,
chamada Átela, se levanta Aversa, outrora uma praça forte dos normandos; ali
brilham as colunas de Cápua, sobre a corrente do Vulturno. Eu os saúdo, férteis
campos e vinhas, célebre pelo famoso velho vinho de Falerno! Eu os saúdo, ricas
campinas onde crescem as doiradas laranjas de Mola di Gaeta! Saúdo também os
lindos arbustos e flores silvestres, “omnis copia narium”, que cobrem as
ladeiras da montanha do silencioso Látula! Pararemos na cidade volsca de Anxur,
- a moderna Terracina, - cujo sublime rochedo se assemelha a um gigante que
guarda os últimos limites da meridional terra do amor. Adiante! Adiante! e
retenhamos o fôlego enquanto voarmos por cima dos Pântanos Pontinos. Medonhos e
desolados, os seus miasmas são, para os jardins que temos atravessado, o que a
vida comum é para o coração que deixou de amar. Lúgubre Campagna, que se
apresenta â nossa vista em toda sua majestosa tristeza. Roma, cidade das sete
colinas! Recebe-nos como a Memória recebe o viajante cansado; recebe-nos em
silêncio, no meio de suas rumas!
Onde está o viajante que
procuramos? Deixemos o hipogrifo apascentar-se, solto: ele gosta do acanto que
trepa por aquelas colunas rompidas. Sim, aquele é o arco de Tito, o conquistador
de Jerusalém; ali está o Coliseu! Por um, passou em triunfo o divinizado
invasor; no outro, caiam ensanguentados os gladiadores. Monumentos de matanças,
como pobres são os pensamentos, e como mesquinhas as lembranças que despertam,
comparados com o que dizem ao coração do homem as alturas de Phyle, ou o seu
solitário dique, pardo Marathon! Estamos no meio de cardos, espinhos e ervas
silvestres. Aqui, onde estamos, reinou, outrora, Nero; aqui estavam seus
pavimentos marchetados; aqui, “como um segundo céu”, se elevava a abobada de
tetos de marfim; aqui, arco sobre arco, pilar sobre pilar, resplandecia ante o
mundo o doirado palácio do seu senhor, - a Casa de Ouro de Nero. Olhem como o
lagarto nos observa com seus olhos brilhantes e tímidos! Perturbamos o seu
reino. Colham aquela flor silvestre: a Casa de Ouro desapareceu, mas a flor
silvestre talvez seja da família das flores que a mão do estrangeiro espalhou
por cima do sepulcro do tirano; veja, como a Natureza faz crescer ainda as
flores silvestres sobre este solo, que é a tumba de Roma!
No meio desta desolação,
levanta-se um velho edifício do tempo da Idade Média. Ali mora um singular
recluso. Na época das febres, os camponeses daquela região fogem da viçosa
vegetação destes lugares; mas ele, que é um estrangeiro, respira sem temor o ar
pestilento. Este homem não tem amigos, sócios, nem companheiros, a não ser os
livros e instrumentos científicos. Muitas vezes é visto como anda pelas
verdejantes colinas, ou como passeia pelas ruas da cidade nova, não com o ar
negligente de estudantes, mas com os olhos observadores e penetrantes, que
parecem sondar os corações dos transeuntes. É um homem velho, porém robusto, -
alto e direito, como se estivesse moço. Ninguém sabe se ele é rico ou pobre.
Não pede, nem dá esmola, - não faz mal a ninguém, mas também corno parece, não
confere bem algum. Segundo todas as aparências, este homem vive só para si; mas
as aparências são enganadoras, e a Ciência como também a Benevolência, vivem
para o Universo. É pela primeira vez, desde que esse homem habita esta morada,
que nela entra um visitante. E este é Zanoni.
Veja esses dois homens sentados
um ao lado do outro, e conversando seriamente. Muitos anos haviam transcorrido
desde que se viram pela última vez, - ao menos corporalmente, face a face.
Porém, se são sábios, o pensamento de um pode ir ao encontro do pensamento do
outro, e o espírito daquele voa em busca do espírito deste, embora os oceanos
separem as formas. Nem a morte mesma é capaz de separar os sábios. Você se encontra
com Platão, quando os seus olhos umedecidos se fixam sobre o seu Phedon. Oxalá
Homero viva eternamente com os homens!
Os dois homens estão conversando;
comunicam um ao outro suas aventuras; evocam o passado e o reprovam; porém,
observe com que modos distintos afetam as recordações. No semblante de Zanoni,
apesar da sua calma habitual, as emoções aparecem e se somem. Ele agiu no
passado que está recordando; ao passo que nem o menor vestígio dessas tristezas
ou alegrias, de que participa a humanidade, pode descobrir-se no semblante
insensível do seu companheiro; para este, o passado, o mesmo que o presente,
não é mais do que a Natureza para o sábio, ou o livro para o estudante, - uma
vida tranqüila e espiritual, um estudo, uma contemplação.
Do passado dirigem-se ao futuro!
Ah! pelos fins do século XVIII, o futuro parecia uma coisa tangível, - estava
enlaçado com os temores e as esperanças do presente.
Aos limites daquele século, o
Homem, o filho mais maduro do Tempo, estava como no leito de morte do Velho
Mundo, olhando o Novo Horizonte, envolto entre nuvens e ensangüentados vapores,
- não se sabendo se representava um cometa ou um sol. Observe o frio e profundo
desdém nos olhos do ancião, - a sublime e tocante tristeza que obscurece o
imponente semblante de Zanoni. É que, enquanto um olha com indiferença a luta e
o seu resultado, o outro a contempla com horror e compaixão! A sabedoria,
contemplando o gênero humano, só conduz a estes dois resultados: ao desdém ou à
compaixão.
Quem crê na existência de outros
mundos, pode acostumar-se a considerar este mundo assim como o naturalista
considera as revoluções de um formigueiro ou de uma folha. Que é a Terra para o
Infinito? Que valor tem a sua duração para o Eterno?
Oh! quantas vezes a alma de um só
homem é mais importante e maior do que as vicissitudes de todo o globo! Filho
do céu, e herdeiro da imortalidade! como, e quando residindo numa estréia,
olharás depois o formigueiro e suas comoções, desde Clovis até Robespierre,
desde Noé até o Juízo Final! O espírito que sabe contemplar, e que vive somente
no mundo intelectual, pode subir à sua estrela, embora ainda viva neste
cemitério chamado Terra, e enquanto o sarcófago chamado Vida, ncerra em suas
paredes de barro a essência eterna!
Porém você, Zanoni, - se recusou
a viver somente no mundo intelectual; você não mortificou o coração; o seu
pulso bate ainda com a doce música de paixão dos mortais; a humanidade é para
você ainda uma coisa mais atrativa do que o abstrato, - você quis ver essa
Revolução em seu berço, que a tempestade embala, e quis ver o mundo enquanto os
seus elementos lutam para sair do caos!
– Vai, pois!
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni