Zanoni
Introdução:
A Livraria do Senhor D
É possível que entre os meus
leitores haja alguns poucos que ainda se recordem de uma antiga livraria, que
existia, há alguns anos, nas imediações de COVENT GARDEN; digo poucos, porque
certamente, para a grande maioria da gente, muito escasso atrativo possuíam
aqueles preciosos volumes que toda uma vida de contínuo labor havia acumulado
nas empoadas estantes do meu velho amigo D. Ali não se encontravam tratados
populares, nem romances interessantes, nem histórias, nem descrições de
viagens, nem “Biblioteca para o povo”, nem “Leitura recreativa para todos”. O
curioso, porém, podia descobrir ali uma rica coleção de obras de Alquimia,
Cabala e Astrologia, que um entusiasta conseguiu reunir e que, em toda a
Europa, talvez, era a mais notável em seu gênero. O seu proprietário havia despendido
uma verdadeira fortuna na aquisição de tesouros que não deviam ter saída. Mas o
velho D. não desejava, na realidade, vendê-las. O seu coração não se sentia
bem, quando um freguês entrava em sua livraria; ele espiava os movimentos do
intruso, lançando-lhe olhares vingativos; andava ao redor dele, vigiando-o
atentamente; fazia carrancas e dava suspiros, quando mãos profanas tiravam de
seus nichos algum dos seus ídolos. Se, por acaso, a alguém atraia uma das
sultanas favoritas do seu encantador harém, e o preço dado não lhe parecia ser
demasiado exorbitante, muitas vezes era duplicado esse preço. Se vacilasse um
pouco, o proprietário com vivo prazer, lhe arrebatava das mãos a venerável obra
que o encantava; se aceitasse suas condições, o desespero se pintava no rosto
do vendedor; e não eram raros os casos que, no meio do silêncio da noite, tinha
bater à porta da moradia do freguês, pedindo-lhe que lhe vendesse, nas
condições que desejasse, o livro que batia com prado, pagando-lhe tão
esplendidamente o preço estipulado. Um crente admirador do seu Averrois e do
seu Paracelso, ele sentia a mesma repugnância, como os filósofos que havia
estudado, em comunicar aos profanos o saber que tinha adquirido.
Sucedeu, pois, que, nos anos
juvenis de minha existência e de minha vida literária, senti um vivo desejo de
conhecer a verdadeira origem e as doutrinas da estranha seita a que se dá o
nome de “Rosacruzes”. Não satisfeito com as escassas e superficiais informações
que, acerca deste assunto, se pode achar nas obras comuns, opinei que talvez na
coleção do Sr. D., que era rica, não só em livros impressos, como também em
manuscritos, encontrasse alguns dados mais precisos e autênticos sobre aquela
famosa fraternidade, escritos, quiçá, por algum dos membros da Ordem, e que
confirmassem, com o valor de sua autoridade e com certas particularidades, as
pretensões à sabedoria e à virtude que Bringaret atribuía aos sucessores dos
Caldeus e dos Ginosofistas. De acordo com estas suposições, encaminhei os meus
passos ao dito sítio, o qual era, indubitavelmente (embora eu tenha que me
envergonhar disso), um dos meus passeias prediletos. Porém, não existem, acaso,
nas crônicas dos nossos próprios dias, erros e enganos tão obscuros, como os
dos alquimistas dos tempos antigos? E possível que até os nossos periódicos vão
parecer à nossa posteridade tão cheios de ilusões, como aos nossos olhos
parecem os livros dos alquimistas; e, talvez, achem até estranho que a imprensa
é o ar que respiramos, quando este ar é tão nebuloso! Ao entrar na livraria,
notei num freguês de venerável aspecto, a quem nunca dantes ali havia
encontrado, e cuja presença chamou a minha atenção. Surpreendeu-me também o
respeito com que era tratado pelo colecionador, de ordinário desdenhoso.
– Senhor, - exclamou este, com ênfase,
enquanto eu estava folheando o catálogo, - nos quarenta e cinco anos que levo
dedicado a esta classe de investigações, é você o único homem que tenho
encontrado digno de ser meu freguês. Como pode nestes tempos tão frívolos,
adquirir um saber tão profundo? E quanto a esta augusta fraternidade, cujas
doutrinas, vislumbradas pelos primeiros filósofos, lhes ficaram sendo
misteriosas, diga-me se existe realmente, na terra, um livro, um manuscrito, em
que se possam aprender as descobertas e os ensinos dessa sociedade?
Ao ouvir as palavras “augusta
fraternidade”, excitou-se muito a minha curiosidade e atenção, e escutei com
avidez a resposta do desconhecido. - Eu não julgo - disse o velho cavalheiro -
que os mestres da dita escola tenham revelado ao mundo as “suas verdadeiras
doutrinas, a não ser por meio de obscuras insinuações e parábolas místicas”, e
não os censuro por sua discrição. Depois de ter dito estas palavras, calou-se e
parecia que ia retirar-se, quando eu me dirigi ao colecionador, dizendo-lhe, de
um modo algo brusco: - Não vejo em seu catálogo, Sr. D., nada que tenha
referência aos Rosacruzes.
– Os Rosacruzes! - repetiu o velho
cavalheiro, olhando-me fixamente, com certa surpresa. - Quem, a não ser um
Rosacruz, poderia explicar os mistérios Rosacruzes? E o Sr. poderá imaginar que
um membro dessa seita, a mais zelosa de todas as sociedades secretas, tenha
querido levantar o véu que oculta ao mundo a Isis de sua sabedoria? Ah! Pensei
eu comigo, esta será, pois, a “augusta fraternidade” de que falou. Louvado seja
o céu! Com certeza, topei agora com um membro dessa fraternidade. - Porém, -
respondi em voz alta, - onde poderia eu, senhor, obter alguma informação, se
não se encontra nos livros? Em nossos dias, não pode um literato arriscar-se a
escrever sobre qualquer coisa, sem conhecê-la a fundo, e quase nem se pode
citar uma frase de Shakespeare, sem citar ao mesmo tempo o titulo da obra, o
capítulo e o versículo. A nossa época é a época dos fatos, senhor, a época dos
fatos. - Bem, - disse o ancião, com um amável sorriso; - se nos virmos outra
vez, poderei talvez, ao menos, dirigir as investigações do senhor à fonte mesma
do saber. E, ditas estas palavras, abotoou o, sobretudo, chamou com um assobio
o seu cão, e saiu. Quatro dias depois da nossa breve conversação na livraria do
Sr. D., encontrei-me de novo com o velho cavalheiro. Eu ia tranquilamente a
cavalo em direção a Highgate, quando, ao pé da sua clássica colina, distingui o
desconhecido, que ia montado num cavalo preto, e diante dele marchava o seu
cão, preto também. Se você encontrar, prezado leitor, o homem que desejas
conhecer, cavalgando ao pé de uma longa subida, de onde não pôde se afastar
muito, por certa consideração de humanidade à espécie animal, a não ser que
ande no cavalo de estimação de algum amigo que lho emprestou, julgo que seria
sua a culpa, se não o alcançasse antes dele chegar em cima da colina. Em suma,
favoreceu-me tanta a sorte que, ao chegar a Highgate, o velho cavalheiro me
convidou a descansar um pouco em sua casa, que estava a curta distância da
povoação; e era uma casa excelente, pequena, porém confortável, com um vasto
jardim, e das suas janelas gozava-se de uma vista tão bela que seguramente
Lucrécio a recomendaria aos filósofos. Num dia claro, podia-se distinguir
perfeitamente as torres e sé pulas de Londres; aqui estava o tranquilo retiro
do eremita, e lá longe o “mare-magnum” do mundo.
As paredes dos principais
aposentos estavam decoradas com pinturas de um mérito extraordinário,
pertencentes àquela alta escola de arte que é tão mal compreendida fora da
Itália. Eu fiquei admirado ao saber que essas pinturas haviam sido feitas pela
mão do mesmo proprietário. As demonstrações da minha admiração pareceram
agradar ao meu novo amigo, e levaram-no a falar sobre este ponto, e notei que
ele não era menos inteligente no que se referia às teorias da arte, do que
consumado na prática da mesma. Sem querer molestar o leitor com juízos críticos
desnecessários, não posso deixar, entretanto, de observar, a fim de elucidar em
grande parte o desígnio e o caráter da obra, à qual estas páginas servem de
introdução, digo, não posso deixar de observar em poucas palavras, que ele
insistia muito sobre a relação que existe entre as diferentes artes, de igual
modo como um eminente autor o tem feito com respeito às ciências; e que também
opinava que, em toda a classe de obras de imaginação, sejam estas expressas por
meio de palavras ou por meio de cores, o artista, pertencente às escolas mais
elevadas, deve fazer a mais ampla distinção entre o real e o verdadeiro, - ou,
em outras palavras, entre a imitação da vida real e a exaltação da Natureza até
o Ideal.
– O primeiro - disse ele - é o que
caracteriza a escola holandesa; o segundo, a escola grega. - Hoje, senhor, -
repliquei, a escola holandesa está mais com voga.- Sim, na arte de pintar, pode
ser, - respondeu o meu amigo, porém na literatura...
– Foi precisamente à literatura que me
referi. Os nossos poetas mais novos estão todos pela simplicidade e por Betty
Foy; e o que os nossos críticos apreciam mais numa obra de imaginação, é
poder-se dizer que suas personagens são exatamente como tiradas da vida comum.
Até na escultura.
– Na escultura! Não, não! Ali o ideal mais
elevado deve ser, pelo menos, a parte mais essencial! - Perdoe-me, senhor;
parece-me que não viu Souter Johnny e Tom O’Shanter.
– Ah! - exclamou o velho cavalheiro, meneando
a cabeça, - pelo que vejo, vivo muito apartado do mundo. Suponho que
Shakespeare deixou de ser admirado, não é? -
– Pelo contrário; a gente adora Shakespeare,
porém esta adoração não é mais que um pretexto para atacar a todos os outros
escritores. Mas os nossos críticos descobriram que Shakespeare é tão realista!
-
– Shakespeare realista! O poeta que nunca
delineou uma personagem que se pudesse encontrar no mundo em que vivemos, - e
que nem uma vez sequer desceu a apresentar uma paixão falsa, ou uma personagem
real!
Estava eu pronto a replicar
gravemente a este paradoxo, quando adverti que o meu companheiro começava a
perder sua calma habitual. E aquele que desejava pescar um Rosa-Cruz, deve
cuidar de não turvar a água. Assim, pois, achei que convinha mais dar outro
giro à conversação.
– Revenons à nos moutons (Volvamo-nos ao
nosso tema), - disse-lhe; - o senhor me prometeu dissipar a minha ignorância
acerca dos Rosacruzes.
– Muito bem! - respondeu-me ele, em tom
sério; - porém, com que propósito? Deseja talvez entrar no templo somente para
ridicularizar os ritos?
– Por quem me toma o senhor? Certamente, se
tal fosse o meu intento, a infeliz sorte do Abade de Vilars seria uma lição
suficiente para advertir a toda a gente que não se deve tratar com frivolidade
os reinos das Salamandras e dos Silfos. Todo o mundo sabe como misteriosamente
foi privado da vida aquele homem de talento, em paga das satíricas burlas do
seu “Conde de Gabalis”.
– Salamandras e Silfos! Vejo que incorre no
erro vulgar de entender ao pé da letra a linguagem alegórica dos místicos.
Esta observação deu motivo ao
velho cavalheiro para condescender a fazer-me uma relação muito interessante e,
como me pareceu, muito erudita, acerca das doutrinas dos Rosacruzes, dos quais,
segundo me assegurou, alguns ainda existiam, continuando ainda, em augusto
mistério, suas profundas investigações no domínio das ciências naturais e da filosofia
oculta.
– Porém, esta fraternidade, - disse o ancião,
- se bem que respeitável e virtuosa, porque não há, no mundo, nenhuma ordem
monástica que seja mais rígida na prática dos preceitos morais, nem mais
ardente na fé cristã, - esta fraternidade é apenas um ramo de outras sociedades
ainda mais transcendentes nos poderes que adquiriram, e ainda mais ilustres por
sua origem. Conhece o senhor a filosofia platônica?
– De vez em quando me tenho perdido em seus
labirintos - respondi. - A minha fé, os platônicos são cavalheiros que não se
deixam compreender facilmente.
– E, contudo, os seus problemas mais
intrincados nunca foram publicados. Suas obras mais sublimes conservam-se
manuscritas, e constituem os ensinamentos da iniciação, não só dos Rosacruzes,
como também daquelas fraternidades mais nobres a que me referia há pouco.
Porém, ainda mais solenes e sublimes são os conhecimentos que podem respigar-se
de seus antecessores, os Pitagóricos, e das imortais obras mestras de Apolônio.
– Apolônio, o impostor de Tyana! Existem seus
escritos?
– Impostor! - exclamou o meu amigo. -
Apolônio impostor?
– Perdoe-me, senhor; eu não sabia que ele era
um dos seus amigos; e se o senhor me garante por sua pessoa, acreditarei com
gosto que ele foi um homem muito respeitável, que dizia só pura verdade quando
se gabava de poder estar em dois lugares distintos ao mesmo tempo.
E isto é tão difícil? -- replicou
o ancião. - Se lhe parece impossível, é por que nunca sonhou!
Aqui terminou a nossa
conversação; porém, desde aquele momento, ficou formada entre nós uma
verdadeira intimidade que durou até que o meu venerável amigo abandonou esta
vida terrestre. Descansem em paz as suas cinzas! Ele era um homem de costumes
muito originais e de opiniões excêntricas; mas a maior parte do seu tempo
empregava em atos de filantropia, sem alarde e sem ostentação alguma. Era
entusiasta dos deveres do Samaritano, - e assim como as suas virtudes eram
realçadas pela mais doce caridade, as suas esperanças tinham por base a mais
fervorosa fé. Nunca falava sobre sua própria origem e da história de sua vida,
e eu nunca pude elucidar o mistério obscuro em que estava envolvida. Segundo
parece, tinha viajado muito pelo mundo, e havia sido testemunha ocular da
primeira Revolução Francesa, a respeito da qual se expressava de um modo tão
eloquente como instintivo. Não julgava os crimes daquela tempestuosa época com
aquela filosófica indulgência com que alguns escritores ilustrados (que têm as
suas cabeças bem seguias sobre os seus ombros) se sentem, atualmente,
inclinados a tratar as matanças desses tempos passados; ele falava não como um
estudante que tinha lido e macio raciocinado, mas como um homem que tinha visto
e sofrido.
O velho cavalheiro parecia estar
só no mundo; e eu ignorava que ele tivesse algum parente, até que seu executor
testamentário, um primo seu em grau afastado, que residia no estrangeiro, me
informou do bonito legado que fizera o meu pobre amigo. Este legado consistia,
em primeiro lugar, numa quantia de dinheiro, a qual, julgo que convém guardar,
em previsão de um novo imposto sobre as rendas e bens imóveis; e, em segundo
lugar, em certos preciosos manuscritos, aos quais este livro deve a sua
existência.
Suponho que devo este último
legado a uma visita que fiz àquele sábio, si se me permitem chamá-lo com tal
nome, poucas semanas antes da sua morte.
Embora lesse pouco da literatura
moderna, o meu amigo, com a amabilidade que o caracterizava, permitia-me
afavelmente que o consultasse acerca de alguns ensaios literários, projetados
pela irrefletida ambição de um estudante novo e sem experiência. Naquele tempo,
procurei saber o seu parecer a respeito de uma obra de imaginação, em que eu me
propunha pintar os efeitos do entusiasmo nas diversas modificações do caráter.
Ele escutou, com sua paciência habitual, o argumento da minha obra, que era
bastante’ vulgar e prosaica, e dirigindo-se, depois com ar pensativo, à sua
coleção de livros, tirou um volume antigo, do qual me leu, primeiro em grego, e
em seguida em inglês alguns trechos do teor seguinte:
“Platão fala aqui de quatro
classes de mania”, palavra que, a meu entender, denota entusiasmo, a inspiração
dos deuses: Primeira, a musical; segunda, a teléstica ou mística; terceira, a
profética; a quarta, a pertencente ao amor”.
O autor citado pelo meu amigo,
depois de sustentar que na alma há algo que está acima do intelecto, e depois
de afirmar que em nossa natureza existem distintas energias, - uma das quais
nos permite descobrir e abraçar, por assim dizer, as ciências e os teoremas com
uma rapidez quase intuitiva, ao passo que, mediante outras, se executam as
sublimes obras de arte, tais como as estátuas de Fidias, - veio dizer que “o
entusiasmo, na verdadeira acepção da palavra aparece quando aquela parte da
alma, que está por cima do intelecto, se eleva, exaltada até aos deuses, de
onde provém a sua inspiração”.
Prosseguindo em seus comentários
sobre Platão, o autor observa que “uma destas manias” (isto é, uma das classes
de entusiasmo) especialmente a que pertence ao amor, pode fazer remontar a alma
à sua divindade e bem-aventurança primitivas; porém que existe uma intima união
entre elas todas, e que a ordem progressiva, pela qual a alma sobe, é esta:
primeiro, o entusiasmo musical; depois, o entusiasmo telético ou místico; terceiro,
o profético; e, finalmente, o entusiasmo do amor”.
Escutava eu estas intrincadas
sublimidades, com a cabeça aturdida e com atenção relutante, quando o meu
mentor fechou o livro, dizendo-me com complacência:
– Ali tem você o mote para o seu livro, a
tese para o seu tema.
– Davus sum, non OEdipus, - respondi,
meneando a cabeça e com ar descontente. - Tudo pode ser muito belo, mas,
perdoe-me o Céu, - eu não compreendi nem uma só palavra de tudo o que acaba de
dizer-me. Os mistérios dos Rosacruzes e as fraternidades de que fala, não são
mais do que brinquedos de crianças, em comparação com a geringonça dos
Platônicos.
– E, contudo, enquanto o senhor não tiver
compreendido bem esta passagem, não poderá entender as mais elevadas teorias
dos Rosacruzes ou das fraternidades ainda mais nobres, das quais fala com tanta
leviandade. - Oh! Se assim é, então renuncio a toda esperança de consegui-lo.
Porém, uma vez que está tão
versado nesta classe de matérias, porque não adota o senhor mesmo, aquele mote para
um de seus próprios livros?
– Mas, se eu já tivesse escrito um livro com
aquela tese encarregar-se-ia o meu amigo de prepará-lo para o público?
– Com o maior gosto, respondi eu,
infelizmente, com bastante imprudência.
– Pois eu o tomo pela palavra, - replicou o
ancião, - e quando eu tiver deixado de existir nesta terra, receberá os
manuscritos. Do que diz a respeito do gosto, que hoje predomina na literatura,
deduzo que não posso lisonjear-lhe com a esperança de que venha a obter grande
proveito em sua empresa; e advirto-lhe de antemão que achará bastante laboriosa
a tarefa.
– É a sua obra um romance?
– É romance, e não é. É uma realidade para os
que são capazes de compreendê-la; e uma extravagância para os que não se acham
neste caso.
Por fim, chegaram às minhas mãos
os manuscritos, acompanhados de uma breve carta do meu inolvidável amigo, na
qual me recordava da minha imprudente promessa.
Com o coração oprimido, e com
febril impaciência, abri o embrulho, avivando a luz da lâmpada. Julguem qual
foi o desalento que se apoderou de mim, quando vi que toda a obra estava
escrita em caracteres que me eram desconhecidos! Apresento aqui ao leitor uma
amostra deles: e assim por diante, as novecentas e quarenta páginas de grande
formato! Apenas podia dar crédito aos meus próprios olhos; comecei a pensar que
a lâmpada estava luzindo com um azul singular; e assaltaram à minha
desconcertada imaginação vários receios a respeito da profanada índole dos
caracteres que eu, sem dar-me conta disso, havia aberto, contribuindo para isto
as estranhas insinuações e a mística linguagem do ancião. Com efeito, para não
dizer outra coisa pior, tudo aquilo me parecia muito misterioso, impossível!
Já estava eu querendo meter,
precipitadamente, esses papéis num canto da minha escrivaninha, com a pia
intenção de não me ocupar mais deles, quando a minha vista, de improviso,
fixou-se num livro, primorosamente encadernado em marroquim. Com grande
precaução, abri este livro, ignorando o que podia sair dali, e - com uma alegria
que é impossível descrever - vi que ele continha uma chave ou um dicionário
para decifrar aqueles hieróglifos. Para não fatigar o leitor com relação às
minúcias do meu trabalho, me contentarei em dizer que por fim, cheguei a
julgar-me capaz de interpretar aqueles caracteres, e pus mãos à obra, com
verdadeiro afinco. A tarefa não era, porém, fácil; e passaram-se dois anos
antes que eu fizesse um adiantamento notável. Então, desejando experimentar o
gasto do público, consegui publicar alguns capítulos desconexos num periódico,
em que tinha a honra de colaborar, havia alguns meses.
Estes capítulos pareceram excitar
a curiosidade do público muito mais do que eu havia presumido; dediquei-me,
pois, com mais ardor do que nunca, à minha laboriosa tarefa. Porém, então me
sobreveio um novo contratempo: ao passo que eu ia adiantando no meu trabalho,
achei que o autor tinha feita dois originais de sua obra, sendo um deles mais
esmerado e mais minucioso do que o outro; infelizmente, eu tinha topado com o
original defeituoso (*),e, assim, tive que reformar o meu trabalho, desde o
princípio até o fim, e traduzir de novo os capítulos que já escrevera. Posso
dizer, pois, que, excetuando os intervalos que eu dedicava às ocupações mais
peremptórias, a minha desditosa promessa me custou alguns anos de trabalhos e
fadigas, antes de poder vê-la devidamente cumprida. A tarefa era tanto mais
difícil, porque o original estava escrito numa espécie de prosa rítmica, como
se o autor houvesse pretendido que a sua obra fosse considerada, em certo modo,
como uma concepção ou um debuxo poético. Não foi possível dar uma tradução que
conservasse tal forma, e onde tentei fazê-lo, é, freqüentemente, necessário
pedir a indulgência do leitor. O respeito natural com que, ordinariamente,
tenho aceitado os caprichos do velho cavalheiro, cuja Musa era de um caráter
bastante equívoco, deve ser a minha única desculpa onde quer que a linguagem,
sem entrar plenamente no campo da poesia, apareça com algumas flores
emprestadas, um tanto impróprio da prosa.
Em honra da verdade, hei de
confessar também que, apesar de todos os esforços que fiz, não tenho a certeza
absoluta de ter dado sempre a verdadeira significação a cada um dos caracteres
hieroglíficos do manuscrito; e acrescentarei que, em algumas passagens, tenho
deixado em branco certos pontos da narração, e que houve ocasiões em que,
encontrando um hieróglifo novo, de que não possuía a chave, vi- me obrigado a
recorrer a interpolações de minha própria invenção, que, sem dúvida, se
distinguem do resto, mas que com prazer reconheço, não estão em desacordo com o
plano geral da obra. Esta confissão que acabo - de fazer, leva-me a formular a
seguinte sentença, com a qual vou terminar: Se neste livro, o caro leitor,
encontrar algo que seja de seu gosto, sabe que é, com toda a certeza, produzido
por mim; porém, onde achar algo que o desagrade, dirija a sua reprovação ao
endereço do velho cavalheiro, o autor dos hieróglifos manuscritos!
Edward Bulwer-Lytton
Esta Introdução narra o primeiro
episódio da obra para a coleção: Zanoni