Zanoni
Capítulo II
“Fu stupor, fu vaghezza, fu
dileto!”“
Foi uma admiração, foi um prazer,
foi um deleite!”
Gerusal. Líb, canto II, 21.
A
Estréia de Viola
Enfim, a educação artística
acha-se terminada! Viola tem perto de dezesseis anos. O Cardeal declara que
chegou o tempo de inscrever um novo nome no Livro de Ouro, reservado aos filhos
da Arte e do Canto, mas com que caráter?
Qual o gênio a que Viola deve dar
forma e vida?
Ah! aqui está o segredo! Correm
rumores de que o infatigável Paisielo encantado da maneira com que a jovem
executou o seu “Nel cor piu non mi sento”, e o seu “Io son Lindoro”, quer
produzir alguma nova obra mestra para a estréia da nova artista. Outros
insistem em que Viola é mais forte no cômico, e que Cimarosa está trabalhando
assiduamente para dar outro “Matrimônio Secreto”. Ao mesmo tempo, se observa
que, em outras partes, reina uma reserva diplomática, e que o Cardeal está de
humor pouco alegre. Ele disse publicamente estas portentosas palavras:
– Esta tola menina é tão sem juízo como seu
pai; o que ela pede é absurdo!
Celebra-se uma conferência atrás
de outra; o Cardeal fala muito solenemente, em seu gabinete, à pobre jovem, -
tudo em vão. Nápoles se perde num mar de curiosidade e conjecturas. A leitura
termina numa dissensão e Viola regressa à casa, enfadada e teimosa: não
representará, - desfez o contrato!
Pisani, que não conhecia os
perigos do teatro, tinha concebido a lisonjeira esperança de que ao menos uma
pessoa de sua família aumentaria a celebridade da sua arte. A obstinação da
filha causava-lhe grande desgosto; todavia, não disse uma só palavra de enfado.
Pisani nunca ralhava com palavras, mas contentava-se em agarrar o seu fiel bárbito.
O fiel bárbito, de que horrível maneira te ralhava! O instrumento crocitava,
gralhava, gemia, rosnava. E os olhos de Viola enchiam-se de lágrimas, porque
ela compreendia aquela linguagem.
A jovem aproximou-se de sua mãe e
falhou-lhe ao ouvido; e quando o pai voltou do teatro, onde fora tocar, viu que
sua mãe e a filha estavam chorando.
Ele as contemplou com admiração;
e, em seguida, como se sentisse haver sido demasiado duro para com elas, correu
outra vez a agarrar o violino. E agora, eis que se faz ouvir o arrulho
melodioso de uma fada, tratando de consolar um filho impertinente que havia
adotado. Sons suaves, influentes, argentinos, manavam do instrumento, tocado
pelo mágico arco. O mais intenso pesar desaparecia diante daquela melodia; e,
contudo, às vezes ouvia-se uma nota estranha, alegre, repicante, parecida a um
riso, porém não ao riso mortal. Era um dos trechos mais excelentes da sua
querida ópera, - a Sereia no ato de encantar as ondas e adormecer os ventos. O
Céu sabe o que teria acontecido em seguida, se o seu braço não tivesse sido
detido. Viola se lançava ao seu peito, abraçando-o e beijando-o, com os olhos
radiantes de felicidade...
Neste mesmo instante, abriu-se a
porta, para dar entrada a um mensageiro do Cardeal. Viola devia apresentar-se
imediatamente à casa de Sua Eminência. A mãe a acompanhou. Fez-se a
reconciliação, e tudo ficou arranjado num instante; Viola foi de novo admitida,
e escolheu, ela mesma, a sua ópera. Ó sombrias nações no Norte, ocupadas com
suas dissensões e seus debates, em suas trabalhosas vidas do Pnyx e do Agora! -
não se pode imaginar que grande movimento ruidoso produziu entre a gente
musical de Nápoles o rumor de uma nova ópera e de uma nova cantora.
Mas que ópera será esta?
Nunca tinha sido tão secreta a
intriga de gabinete, como desta vez. Pisani voltou, uma noite, do teatro,
evidentemente enfadado e irado. Pobres dos seus ouvidos, leitor, se tivessem escutado o bárbito aquela noite! Haviam-no
suspenso do seu emprego, temendo que a nova ópera e a primeira representação de
sua filha, como “prima dona”, afetassem demasiados os seus nervos.
E, em tal noite, as suas
variações, as suas endemoninhadas sereias e harpias, produziram uma algazarra
que não se poderia ouvir sem terror. Separado do teatro, e isso exatamente na
noite em que sua filha, cuja melodia não era senão uma emanação da sua, ia
representar pela primeira vez! Estar à parte e ausente, para que ocupasse o seu
posto algum novo rival: isto era demasiado para um músico de carne e osso!
Pela primeira vez, o artista se
expressou em palavras sobre este assunto, perguntando, com muita gravidade, -
pois nesta questão o bárbito, apesar de sua eloquência, não podia expressar-se
claramente, - qual era a ópera que devia executar-se, e qual o papel que a
jovem devia representar?
E Viola respondeu, também com
gravidade, que o Cardeal lhe tinha proibido que o revelasse. Pisani não
respondeu, mas desapareceu com o seu violino; foi-se ao mais alto da casa
(onde, às vezes, quando estava de péssimo humor, se refugiava), e, em seguida,
a mãe e a filha ouviram o violino lamentar-se e suspirar de um modo capaz de partir
o coração.
As afeições de Pisani
manifestavam-se muito pouco no seu semblante. Não era um desses pais
carinhosos, cujos filhos estão sempre brincando ao redor dos seus joelhos; sua
mente e sua alma pertenciam tão inteiramente à sua arte, que a vida doméstica
deslizava para ele como se fosse um sonho, e o coração, a forma substancial, o
corpo da existência.
As pessoas que cultivam um estudo
abstrato, especialmente os matemáticos, costumam ser assim. Quando o criado de
um célebre filósofo francês foi correndo dizer a este: - “Senhor, a casa está
em chamas!” - respondeu o sábio, apenas levantando por um momento a vista dos
seus problemas: - “Vai dizê-lo a minha mulher, imbecil! Tenho eu que cuidar de
assuntos domésticos?“ - E que são as matemáticas para um músico, e, sobretudo
para um músico que não só compõe Óperas, mas também toca o bárbito?
Sabem o que respondeu o ilustre
Giardini, quando um principiante lhe perguntou quanto tempo deveria empregar
para aprender a tocar violino? Ouçam e desesperem os impacientes, que desejam
dobrar o arco em comparação com o qual o arco de Ulysses foi apenas um
brinquedo: - “Doze horas todos os dias, por espaço de vinte anos seguidos!”
– Poderá, pois, um homem que toca o bárbito,
estar sempre brincando com seus filhinhos?
– Não, Pisani! Muitas vezes, com a fina
suscetibilidade de sua infância, a pobre Viola se tinha retirado da sua
presença, para chorar, pensando que não a amava. E, contudo, debaixo desta
superficial abstração do artista, se ocultava um afetuoso carinho; e à medida
que a jovem foi crescendo, um sonhador foi compreendendo o outro.
E agora, não só lhe era fechado o
caminho da fama, mas até não se lhe permitia saudar a glória nascente da filha!
- e esta filha havia entrado numa conspiração contra ele! Tamanha ingratidão
era mais cruel do que a picada de uma serpente; e mais cruéis e dolorosos foram
ainda os lamentos do bárbito!
Chegou a hora decisiva.
Viola dirigiu-se ao teatro,
acompanhada de sua mãe.
O indignado músico ficou em casa.
Uma hora depois, Gianetta entrou
correndo no quarto e disse-lhe:
– A carruagem do senhor Cardeal está à porta;
o seu protetor manda buscá-lo.
Pisani teve que deixar a um lado
o seu violino; era necessário por a casaca bordada e os punhos rendados.
– Aqui estão; ligeiro, ligeiro! E já rola a
luxuosa carruagem, e o cocheiro, sentado majestosamente na boléia, açoita os
briosos cavalos. O pobre Pisani, envolto numa nuvem de confusão, não sabe o que
se passa. Chega ao teatro; apeia-se à porta principal; começa a olhar de um
lado para outro; sente que lhe falta alguma coisa, - onde está o violino? Ai! a
sua alma, a sua voz, o seu próprio ser, ficou em casa! O músico não era então
outra coisa senão um autômato que os lacaios conduziam, por entre corredores,
ao camarote do Cardeal.
Que surpresa, ao entrar ali!
Estaria sonhando? O primeiro ato havia terminado. Não quiseram mandar buscá-lo
até que o sucesso estivesse assegurado. O primeiro ato decidiu o triunfo.
Pisani advinha isto pela elétrica simpatia que se comunica de coração em
coração numa grande reunião de pessoas.
Sente-o no silêncio profundo que
reina entre o auditório; compreende-o até pela atitude do Cardeal, que o
recebeu com o dedo levantado.
Pisani vê sua Viola no cenário,
deslumbrante em seu vestido semeado de pedras preciosas, - ele ouve sua voz que
extasia milhares de corações. Porém, a cena, o papel, a música! É outra sua
filha, -sua imortal filha; a filha espiritual da sua alma; a sua filha
predileta que ele acariciava, por muitos anos, na obscuridade; a sua obra
prima; a sua opera “A Sereia!” Este, pois, foi o mistério que tanto o
atormentara, - esta a causa da sua dissensão com o Cardeal; este o segredo que
não devia revelasse até que o êxito estivesse garantido; e a filha tinha unido
o seu triunfo ao de seu pai!
E ela estava ali, enquanto todos
os corações se inclinavam diante dela, - mais formosa do que a mesma Sereia que
lhe inspirava aquelas melodias. Oh, longa e doce recompensa do trabalho! Que
prazer há, na terra, igual ao que desfruta o gênio, quando, por fim, abandona a
sua obscura caverna, para aparecer à luz e cercar-se de fama!?
Pisani não falava, nem se movia;
estava deslumbrado, sem respirar; grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces; só,
de quando em quando, moviam-se suas mãos, - maquinalmente procuravam o seu fiel
instrumento; por que não estaria ali, para participar do seu triunfo?
Por fim, o pano caiu; mas que
tempestade de aplausos!
O auditório levantou-se como um
só homem, - aclamando, com delírio, aquele nome querido. Viola apresentou-se,
trêmula e pálida, e, em toda aquela multidão, não viu senão a face de seu pai.
O auditório, seguindo a direção
daquele olhar umedecido, adivinhou o impulso da filha, e compreendeu a sua
significação.
O bom e velho Cardeal puxou
delicadamente o músico para diante. - Músico indomável você acaba de receber de
sua filha uma coisa de maior valor do que a vida que lhe deu! - Meu pobre
violino! - exclamou Pisani, enxugando os olhos, - agora nunca mais tornarão a
assobiá-lo!
(continua)