Zanoni
Capítulo IV
De
Repente se Encontram...
“E cosi i pigri e timidi desiri
Sprona”.
“E assim estimula os lentos e
túmidos desejos”.
Era costume de Pisani, exceto
quando os deveres de sua profissão lhe exigiam o sacrifício do seu tempo, dedicar
uma parte do meio-dia ao sono; costume que não era tanto um luxo, como uma
necessidade para um homem que dormia pouco de noite. Com efeito, as horas do
meio-dia eram exatamente o tempo em que Pisani não podia fazer nada, nem
compor, nem se exercitar, mesmo que o quisesse. O seu gênio assemelhava-se às
fontes que estão cheias de manhã cedo e ao entardecer, abundantes de noite, e
inteiramente esgotadas ao meio-dia. Durante este tempo que o músico consagrava
ao descanso, a sua esposa costumava sair de casa, a fim de comprar o necessário
para a família, ou para aproveitar (e qual é a mulher que não gosta de
fazê-lo?) a ocasião de poder conversar um pouco com outras pessoas de seu sexo.
E no dia seguinte ao daquele brilhante triunfo, quantas felicitações a esperavam!
Viola, por sua vez, costumava
sentar-se, a essas horas, fora da porta da casa, debaixo de um toldo estendido
para preservar do sol, mas que não impedia a vista. Ali, com o livro posto
sobre os joelhos, no qual seus olhos se fixavam negligentemente de vez em
quando, você a veria contemplar as folhas da parreira que pendiam da latada que
havia por sobre a porta, e os ligeiros barcos que, com as velas brancas,
deslizavam, levantando flocos de espuma, ao longo da praia que se estendia a
perder de vista.
Enquanto Viola estava assim
sentada, entregue antes a um sonho do que a pensamentos, um homem que vinha ao
lado de Posilippo com passo lento e os olhos baixos passava por diante da casa
e a jovem, levantando os olhos de repente, ficou sobressaltada ao ver diante de
si o estrangeiro que a havia fitado no teatro. Ela deixou escapar uma
involuntária exclamação, e o cavalheiro, volvendo a cabeça, avistou-a e parou.
Ficou por um instante mudo diante
da jovem, contemplando-a; aquele silêncio era demasiado sério e tranquilo para
que pudesse interpretar-se como uma demonstração de galanteria. Por fim, falou:
– É feliz, minha filha, - perguntou-lhe em
tom quase paternal, - na carreira que escolheu? Dos dezesseis anos aos trinta,
a música do suave rumor dos aplausos é mais doce do que toda a música que sua
voz pode exprimir.
– Não sei, - respondeu Viola, em tom
vacilante, porém animada pelo afável acento da voz que se lhe dirigia, - não
sei se sou feliz ou não, neste momento; mas fui feliz ontem à noite. E também
sinto, Excelência, que devo agradecer-lhe, ainda que, talvez, não saiba o
motivo disso.
– Engana-se, - disse sorrindo o cavalheiro; -
eu assisti ao seu merecido sucesso, e você talvez não saiba de que maneira. O
“porquê”, eu lhe direi: porque vi que se albergava no seu coração uma ambição
mais nobre do que a vaidade de mulher; foi a filha que me interessou. Talvez
você preferisse que eu admirasse a artista?
– Não; oh! não!
– Bem, eu creio. E agora, já que nos
encontramos assim, quero dar-lhe um conselho. Quando for outra vez ao teatro,
terá aos seus pés todos os jovens galantes de Nápoles. Pobre menina! A fama que
deslumbra a vista, pode queimar as asas. Não esqueça que a única homenagem que
não mancha, é a que nenhum desses aduladores lhe fornecerá. E por mais elevados
que sejam os seus sonhos futuros, - e eu estou vendo neste momento, enquanto
falo contigo, como são extravagantes e exagerados - Oxalá que só se realizem
aqueles que se refiram à vida tranquila do lar.
Quando o desconhecido se calou, o
peito de Viola palpitava agitadamente sob o fino corpete. E, cheia de uma
natural e inocente emoção, compreendendo imperfeitamente, apesar de ser
italiana, a gravidade do aviso, exclamou:
– Ah, Excelência! Não pode fazer idéia de
como já me é caro esse lar. E meu pai - ah! para mim não haveria lar, sem meu
querido pai!
O semblante do cavalheiro
cobriu-se de profunda e melancólica sombra. Ele olhou a tranqüila casa,
construída entre as parreiras, e fixou outra vez os seus olhos na vívida e
animada face da jovem atriz.
– Está bem, - disse. - Uma jovem singela não
necessita outro guia que o seu coração inocente. Avante, pois, e prospere!
– Adeus, bela cantora!
– Adeus, Excelência; porém... - e um impulso
irresistível, uma espécie de ansiedade, um vago sentimento de temor e de
esperança, a impeliu a perguntar: - tornarei a vê-lo em São Carlos?
– Não, pelo menos por algum tempo. Hoje deixo
Nápoles.
– Sim! - E, ao dizer isto, Viola sentiu-se
desfalecer. O teatro perdia para ela toda a sua poesia.
– E, - disse o cavalheiro, voltando atrás, e
pondo suavemente sua mão sobre a da jovem - e, talvez, antes que tornemos a nos
ver, você terá sofrido, e conhecido as primeiras dores agudas da vida humana, e
saberá quão pouco tudo o que a fama pode dar, substitui o valor do que o coração
pode perder; mas seja forte e não ceda, nem ao que possa parecer tristeza
devida ao amor filial. Observe aquela árvore no jardim do seu vizinho. Veja
como cresce, curvada e torcida. Algum sopro de vento trouxe o gérmen, do qual
ela brotou, à fenda da rocha; cercada de rochedos e edifícios, oprimida pela
Natureza e pelo homem, a sua vida tem sido uma contínua luta pela luz, - luz
que é a necessidade e o princípio dessa vida mesma: veja como se tem agarrado e
enroscado; como, onde encontrava uma barreira, esforçou-se, criando o caule e
os ramos, por meio das quais conseguiu elevar-se e pôr-se em contato com a
clara luz do céu. Que é o que a tem preservado e protegido contra todas as
desvantagens do seu nascimento, e contra as circunstâncias adversas? Porque são
as suas folhas tão verdes e formosas como as da parreira que estão aqui, e que,
com todos os seus braços, desfruta o ar e o sol, sem empecilhos? Minha filha é
porque o instinto, que impelia a lutar, porque os esforços que tem feito para
alcançar a luz, a levaram a alcançar por fim, essa luz que tanto procurava.
Assim, pois, com o coração valente, atravesse os adversos acidentes e as mágoas
do fado, dirigindo o olhar interno ao sol, e lutando para alcançar o céu; é
esta luta que dá saber aos fortes, e felicidade aos fracos. Antes que nos
tornemos a ver, você terá olhado mais de uma vez, com olhos tristes e pesados
àqueles ramos, e quando ouvir como as aves trinam, pousando neles, e quando vir
como os raios do sol, vindo, de esguelha, do rochedo e da cumeeira da casa,
brincam com as suas folhas, aprenda a lição que a Natureza lhe ensina, e lute,
atravessando as trevas, para chegar à luz!
Assim que o desconhecido acabou
de falar, afastou-se lentamente, deixando Viola admirada, silenciosa,
tristemente impressionada pela predição do próximo mal, e, contudo, encantada
pela sensação desta tristeza. Involuntariamente os olhos da virgem seguiram o
estrangeiro, - involuntariamente estendeu os seus braços, como se quisesse
detê-lo com o gesto; teria dado um mundo para vê-lo voltar, - para poder ouvir
outra vez aquela voz suave, calma e sonora, e para poder sentir outra vez
aquela leve mão na sua. A presença desse homem produzia o efeito dos débeis
raios da lua fazendo ressaltar beleza dos ângulos que ilumina; - e, como quando
a lua deixa de brilhar, os objetos reassumem seu aspecto ordinário, de aspereza
e vida prosaica, quando o estrangeiro se retirou, a Viola apareceu novamente
sombria a cena que se apresentava a seus olhos.
O estrangeiro seguiu andando pelo
longo e pitoresco caminho que conduz aos palácios em face dos jardins públicos,
e dali aos bairros mais populosos da cidade.
Um grupo de jovens cortesãos,
desses que passam a vida em ócio e orgias, tendo invadido a porta de uma casa
estabelecida para o favorito passatempo do dia, e onde se reuniam os mais ricos
e ilustres jogadores, - abriu passo ao estrangeiro, quando passou diante deles,
saudando-os cortesmente.
– “Per fede” - disse um, - não é esse o rico
Zanoni, de quem fala toda a cidade?
– Ah! Dizem que a sua riqueza é incalculável!
– Dizem, - mas quem é que o diz? Quem pode
afirmá-lo com autoridade? Há muito poucos dias que ele está em Nápoles; e não
pude encontrar uma só pessoa que soubesse dizer algo a respeito do seu lugar de
nascimento, de sua família, nem, o que é mais importante, dos seus bens!
– É verdade; porém ele chegou ao nosso porto
num magnífico navio que, segundo dizem, é de sua propriedade. Veja-o - não,
você não pode vê-lo daqui; mas está ancorado lá na baía. Os banqueiros com quem
Zanoni trata, falam, cheios de respeito, das quantias que depositou em suas
mãos.
– Donde veio ele?
– De algum porto de Levante. O meu lacaio
soube, por boca de alguns marinheiros do Molhe, que ele viveu muitos anos no
interior da Índia.
– Ah! Eu ouvi dizer que na Índia se encontra
o ouro assim como aqui os seixos, e que lá há vales onde os pássaros constroem
seus ninhos com esmeraldas, para atrair os insetos. Ai vem Cetoxa, o nosso
príncipe dos jogadores; estou certo de que ele já conhece este rico cavalheiro,
pois o nosso amigo sente tanta atração para o ouro, como o imã para o aço. Olá,
Cetoxa! Que novidade nos traz a respeito dos ducados do senhor Zanoni?
– Oh! - disse Cetoxa, com indiferença, -
falavam do meu amigo?
– Ah! ah! Ouviu-o; o seu amigo... - Sim; o
meu amigo Zanoni foi a Roma, onde permanecerá por alguns dias; ele me prometeu
que, quando estiver de volta, me designará um dia para vir cear comigo, e então
o apresentarei aos meus amigos, e à alta sociedade napolitana! Diávolo!
Asseguro-lhes que é um cavalheiro muito agradável e espirituoso!
– Faça o favor de contar-nos o que fez para
ser, tão de repente, seu amigo.
– Nada mais natural, meu caro Belgioso.
Zanoni desejava ter um camarote em São Carlos; creio não ter necessidade de
dizer-lhes que, se tratando de uma ópera nova (ah! e que ópera tão magnífica! -
esse pobre diabo, o Pisani! - quem o haveria pensado?) e de uma nova cantora
(que rosto! e que voz! - ah!) estavam tomados todos os lugares do teatro. Ouvi
dizer que Zanoni desejava honrar o talento de Nápoles, e como mandam as boas
normas da civilidade, quando se trata de um distinto estrangeiro, mandei por à
sua disposição o meu camarote. Ele aceitou; fui visitá-lo nos entreatos; é um
homem encantador! Convidou-me a cear com ele. Caspita! Que comitiva! Estivemos
à mesa até muito tarde, - eu lhe contei todas as notícias de Nápoles;
tornamo-nos mui amigos. Antes de separar-nos, obrigou-me a aceitar este
diamante. - “É uma bagatela”, - disse-me; - “os joalheiros a avaliam em 5000
pistolas”.
Há dez anos que eu não tinha
passado uma noite tão divertida.
Os cavalheiros agruparam-se para
admirar o diamante.
– Senhor Conde Cetoxa, - perguntou um homem
de aspecto grave, que se havia persignado duas ou três vezes, enquanto o
napolitano fazia esta narração, - não sabe que coisas estranhas se contam a
respeito desse homem? E não lhe causa medo o ter recebido dele um presente que
pode trazer-lhe as mais funestas conseqüências? Não sabe que se diz que esse
homem e um feiticeiro? Que possui o mau olhado? Que...
– Vamos, poupe-nos de ouvirmos essas
antiquadas superstições, - interrompeu Cetoxa, com desprezo; - elas estão já
fora da moda. Nos nossos dias, não impera senão o ceticismo e a filosofia. E,
depois de tudo, quem ou o que é que fez surgir estes boatos? Um velho
mentecapto de oitenta e seis anos. Em suas tolices, assegura solenemente haver
visto esse mesmo Zanoni em Milão, há setenta anos (quando ele, o narrador, era
ainda rapaz); mas, como sabem, Zanoni não é mais velho do que eu ou o senhor,
Belgioso.
– Pois bem, - disse o sério cavalheiro, -
este é, precisamente, o mistério. O velho Aveli diz que esse Zanoni não parece
estar um dia mais velho do que naquele tempo, quando o encontrou em Milão. Ele
diz também, note-se isto, que já então, embora sob um nome diferente, este
Zanoni se apresentou naquela cidade com o mesmo esplendor, e envolto no mesmo
mistério, pois havia lá um homem que se lembrava de tê-lo visto, sessenta anos
antes, na Suécia.
– Bah! - replicou Cetoxa, - o mesmo se tem
dito do charlatão Cagliostro, meras fábulas, em que eu acreditarei só quando
este diamante se transformar numa mancheia de feno. Além disso, - acrescentou
com ar sério, - considero este ilustre cavalheiro meu amigo e qualquer
conversação que no futuro tenda a manchar sua reputação ou sua honra,
considerarei como uma ofensa feita a mim mesmo.
Cetoxa era um terrível
espadachim, e possuía uma habilidade particular, que ele mesmo tinha inventado,
para aumentar a variedade de estocadas. O bom e sério cavalheiro, se bem que
ansioso pela felicidade espiritual do conde, não perdia de vista a sua
segurança corporal; assim é que se contentou em dirigir-lhe um olhar de
compaixão, e entrou para a casa, subindo, em seguida, à sala onde estavam as
mesas de jogo.
– Ah! ah! - exclamou Cetoxa, rindo, - o nosso
bom Loredano cobiça o meu diamante. Cavalheiros, estão convidados a cear comigo
esta noite. Eu lhes asseguro que nunca, em minha vida, encontrei uma pessoa
mais amável, mais sociável e mais espirituosa do que o meu querido amigo, o
senhor Zanoni.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni