Zanoni
Capítulo III
O
Amor despontou do camarote
“Fra si contrarie tempre in
ghiaccio e in foco, In riso e in pianto, e fra paura e speme, L’ingannatrice
Donna”
“Entre tão contrárias misturas de
gelo e fogo, riso e pranto, temor e esperança, a Mulher enganadora”
Gerusal. Lib., canto IV, 44.
Não obstante a vitória definitiva
da atriz e da ópera houve um momento, no primeiro ato, e, por conseguinte,
antes da chegada de Pisani, em que a queda da balança parecia mais que
duvidosa. Foi num coro cheio de todas as singularidades do autor. E quando este
Maelstrom de Caprichos rolava e espumava, dilacerando os ouvidos e os sentidos
com toda a variedade de sons, o auditório reconheceu simultaneamente a mão de
Pisani. Por precaução, havia-se dado à ópera um título que afastava toda a
suspeita de sua procedência; e a introdução e o princípio dela, em que havia
uma música regular e suave, fez o público crer que ouvia algo do seu favorito
Paisiello. Acostumado desde muito tempo a ridicularizar e quase desprezar as
pretensões artísticas de Pisani, como compositor, o auditório julgou que havia
sido ilicitamente enganado e seduzido para os aplausos, com que saudara a
introdução e as primeiras cenas. Um uníssono zunido circulou por todo o teatro:
os atores e a orquestra, - eletricamente impressionados com o desagrado do
público, - começaram a agitar-se e a desmaiar, deixando de emprestar aos
respectivos papéis a necessária energia e precisão, que era o único recurso com
que se podia dissimular o grotesco da música.
Em cada teatro, sempre que se
trata de um novo autor e de um novo ator, são numerosos os rivais, - partido
impotente quando tudo vai bem, porém uma perigosa emboscada desde o momento em
que qualquer acidente introduz a menor confusão no curso dos acontecimentos.
Levantou-se um murmúrio; é verdade que era um murmúrio parcial, mas o silêncio
significativo que reinava por toda parte pressagiava que aquele desgosto não
tardaria em se tornar contagioso. Pode-se dizer que a tempestade pendia de um
fio de cabelo. Em tão crítico momento, Viola, a rainha Sereia, emergia pela
primeira vez do fundo do Oceano. A medida que ia aproximando-se das luzes, a
novidade de sua situação, a fria apatia dos espectadores, - sobre os quais nem
a vista daquela singular beleza parecia produzir, a principio, a mais ligeira
impressão, - o cochilar malicioso dos outros atores que havia no cenário, o
resplendor das luzes e sobretudo aquele recente murmúrio que chegara a seus
ouvidos enquanto se achava no seu esconderijo, todas estas coisas gelaram as
suas faculdades e suspenderam-lhe a voz. E, em vez da grande invocação, na qual
devia imediatamente prorromper, a régia Sereia, transformada em tímida menina,
permaneceu pálida e muda ante aquela multidão de frios olhares que a ela se
dirigiam.
Naquele instante, quando parecia
já abandoná-la a consciência de sua existência, e quando dirigia um tímido
olhar suplicante sobre a multidão silenciosa, Viola percebeu, num camarote do
lado do cenário, um semblante que, de repente e como por magia, produziu sobre
a sua mente um efeito incapaz de poder-se analisar nem esquecer. Pareceu-lhe
que despertavam em sua imaginação uma daquelas vagas e frequentes
reminiscências que acariciara nos momentos de suas ilusões infantis. Não podia
apartar a sua vista daquele semblante e, à medida que o contemplava, o terror e
o frio, que se apoderavam dela ao apresentar-se ante o público, dissipou-se
como a névoa diante do sol.
No escuro esplendor dos olhos que
encontravam os seus, havia realmente uma doçura que a reanimava tanto, e uma
admiração benévola e compassiva, - tanta coisa que aquecia, animava e
revigorava, - que qualquer que fosse o ator ou espectador, que houvesse
observado o efeito que produz um sério e benévolo olhar da multidão dirigido à
pessoa que se apresenta ante esta, e pela dita pessoa é percebida, teria
compreendido a repentina e inspiradora influência que o olhar e o sorriso do
estrangeiro exerceram sobre a estreante.
E, enquanto Viola ainda o mirava,
e o ardor voltava ao seu coração, o estrangeiro levantou-se, como para chamar a
atenção do público sobre o dever de cortesia para com uma jovem tão formosa;
reanimada, começou esta a cantar e, apenas se fez ouvir a sua voz o público
prorrompeu numa salva de generosos aplausos. Este estrangeiro era uma
personagem notável, e, além da nova ópera, fora a sua chegada a Nápoles o
objetivo principal das conversações naqueles dias. E quando cessou o aplauso, a
Sereia renovou o seu canto com voz clara, cheia e livre de todo o embaraço,
como o espírito libertado do pesado barro.
Desde aquele momento, Viola
esqueceu o auditório, o acidente, o mundo inteiro, - exceto esse paraíso ideal
ao qual ela presidia. Parecia que a presença do estrangeiro servia somente para
mais ainda acrescentar essa ilusão, na qual os artistas não vêem criação alguma
fora do círculo de sua arte. Viola sentia como se aquela fronte serena e
aqueles olhos brilhantes lhe inspirassem poderes anteriores nunca conhecidos:
e, como se buscando uma linguagem para expressar as estranhas sensações
produzidas pela presença do desconhecido, esta mesma presença lhe insuflasse a
melodia e o canto.
Somente quando terminou a função,
e Viola viu seu pai e sentiu a alegria dele, cedeu aquele estranho encanto,
para dar lugar à pura expansão do amor filial. Contudo, quando se retirava do
cenário, volveu a cabeça involuntariamente, e o seu olhar encontrou-se com o do
estrangeiro, cujo tranquilo e melancólico sorriso lhe caiu até ao fundo do
coração, - para ali viver e despertar em sua alma recordações confusas, meio
risonhas e meio tristes.
Depois das congratulações do bom
Cardeal-Virtuoso, admirado, como toda Nápoles, de haver vivido tanto tempo no
erro a respeito desse assunto do gosto, - e mais admirado ainda de ver que toda
Nápoles confessava este seu erro; depois de ter ouvido murmurar mil elogios que
aturdiam a pobre atriz, esta, com seu modesto véu e seu traje singelo, passou
por entre a multidão de admiradores que a aguardavam em todos os corredores do
teatro; depois do terno abraço do pai com a filha, volveram à sua casa na
carruagem do Cardeal, atravessando as ruas iluminadas só pelas estrelas, e ao longo
da estrada deserta; a escuridão não deixou ver as lágrimas da boa e sensível
mãe. Eis que, já em sua casa e no seu benvindo quarto, - “Venimus ad larem
nostrum”; a velha Gianetta, intensamente atarefada em preparar a ceia, observe
Pisani como tira o bárbito de sua caixa para comunicar-lhe tudo o que sucedeu;
escute como a mãe ri com toda a alegria tranquila de um riso inglês.
Por que Viola, estranha criatura
senta-se sozinha num canto com as faces apoiadas em suas lindas mãos e com os
olhos fixos no espaço? Levante-se! Tudo deve rir em sua casa, esta noite.
Feliz era o grupo que se sentou
em redor daquela mesa humilde: era uma festa capaz de causar inveja ao próprio
Lúculo, em sua sala de Apoio; havia uvas secas, delicadas sardinhas, rica
“polenta” e o velho vinho “Lácrima”, presente do bom Cardeal.
O bárbito, colocado numa alta
cadeira, ao lado do músico, parecia participar da festiva ceia. A sua honesta e
envernizada lace brilhava à luz da lâmpada; e havia algo de astuta gravidade em
seu silêncio, quando, depois de cada bocado engolido, o seu amo se dirigia a
ele para dizer-lhe alguma coisa que se esquecera de contar-lhe. A boa esposa
olhava afeiçoada de um lado para outro, e a alegria que experimentava não lhe
permitia comer; até que, levantando-se de repente, correu a colocar sobre as
fontes do artista uma coroa de louros, que o seu carinho lhe fizera preparar já
antecipadamente; e Viola, sentada ao outro lado do seu irmão, o bárbito,
arrumava o boné e alisava os cabelos de seu pai, dizendo-lhe:
– Querido papai, não deixará, daqui para
diante, que “ele” me ralhe, não é verdade?
Então, o pobre Pisani, louco de
prazer entre sua filha e o violino, e um tanto excitado pelo “Lácrima” e pelo
seu triunfo, voltou-se para Viola, e, com ingênuo e grotesco orgulho,
disse-lhe:
– Não sei a quem dos dois devo estar mais
agradecido. Você me causou um grande prazer, querida filha, e estou orgulhoso
de ti e de mim. Mas ele e eu, pobre companheiro, temos passado juntos tantos
momentos de sofrimento!
O sono de Viola foi inquieto,
perturbado, e isso era natural. A embriagues da vaidade e do triunfo, e a sua
felicidade, pela felicidade que causara, eram coisas melhores do que dormir.
Não obstante, o seu pensamento voava seguidamente atrás daqueles olhos
expressivos e daquele doce sorriso, aos quais deveria ir para sempre unida à
recordação do seu triunfo e da sua felicidade. Seus sentimentos, como o seu
caráter mesmo, eram estranhos e peculiares. Não eram os de uma jovem cujo
coração, alcançado pela primeira vez pelo olhar, suspira sua natural e original
linguagem do primeiro amor. Ainda que o rosto, que em todas as ondas de sua
desassossegada imaginação se refletia, ostentasse uma singular majestade e
beleza, não era tanto a admiração, nem a lembrança agradável e amorosa que a
vista desse estrangeiro despertara no seu coração: mas era um sentimento humano
de gratidão e prazer, mesclado a outra ideia misteriosa de medo e respeito.
Estava certa de que tinha visto, já antes, aquelas feições; porém, quando e
onde? Sem dúvida, só quando seus pensamentos haviam tratado de penetrar no seu
futuro, e quando, apesar de todos os esforços para apresentar em sua imaginação
um porvir semeado de flores e cheio de agradáveis raios solares, um negro e
glacial pressentimento a fazia retroceder ao seu mais profundo interior.
Parecia-lhe como se tivesse achado uma coisa que, desde muito tempo, buscara
por entre mil tristes inquietações e vagos desejos, menos do coração que da
mente; não como quando o estudante, depois de ter-se fatigado, correndo muito
tempo atrás de uma verdade científica, a vê brilhar confusamente diante de si,
porém ainda longe, e a vê luzir, apagar-se, reaparecer, e novamente sumir-se.
Por fim, Viola caiu num sono inquieto, povoado de disformes, fugitivos, vagos
fantasmas; e, ao despertar, quando os raios do sol, rompendo por meio de um véu
de nebulosa nuvem, brilhavam indecisos através da janela, ouviu seu pai que
desde muito cedo se havia entregado à sua tarefa quotidiana, arrancando do seu
violino um lento e triste som, parecido a um canto fúnebre.
– Como é, - perguntou Viola, quando desceu ao
quarto de Písani, - como é, meu pai, que sua inspiração foi tão triste, depois da
alegria da noite passada?
– Não sei minha filha. Eu queria estar alegre
e compor algo para dedicar-lhe, mas este obstinado não quis dar outras notas
além das que você ouviu.
(continua)
Os capítulos desta obra fazem parte da coleção do G +: Zanoni