Zanoni
Capítulo VI
Uma
Tarde em Paris
“Précepteurs ignorants de ce
faible univers”. - Voltaire. “Nous étions à table chez un de nos confrêres à
I’Académie, un Grand Seigneur et homme d’esprit”. - La Harpe.
“Preceptores ignorantes deste
fraco Universo”. Voltaire Estavamos à mesa com um dos nossos confrades da
Academia um Grande Senhor e homem de espírito”. – La Harpe
Uma tarde em Paris, alguns meses
depois da data do nosso capítulo precedente, achavam-se reunidos alguns dos
homens mais eminentes da época, em casa de uma personagem distinta, tanto por
seu nobre nascimento, como por seus princípios liberais. Quase todos os
presentes eram partidários das opiniões que então estavam em voga. Pois, assim
como veio, depois, um tempo em que nada havia tão impopular como o povo,
naqueles dias nada havia tão vulgar como a aristocracia. O mais fino cavalheiro
e a mais altiva nobreza falavam de igualdade e luzes.
Entre os mais notáveis membros
daquela reunião, estava Condorcet, que se achava, naquele tempo, no apogeu de
sua reputação; era o correspondente do rei da Prússia, íntimo de Voltaire (consultar),
membro da metade das Academias de Europa, - nobre de nascimento, de maneiras
distintas e de opiniões republicanas. Encontrava-se também ali o venerável
Malesherbes, “o amor e as delicias da nação”, como o chamava o seu historiador,
Gaillard. Estava lá o erudito Jean Silvam Bailly, o aspirante político.
Celebrava-se uma dessas festas denominadas “petits soupers”, que tornaram
famosa a capital de todos os prazeres sociais. A conversação, como é de supor,
versava sobre assuntos literários e científicos, animada, por graciosas
facécias. Muitas das senhoras daquela antiga e orgulhosa nobreza, - pois a
nobreza existia ainda, se bem que as suas horas já estavam contadas, -
aumentavam o encanto da sociedade; elas se convertiam, de vez em quando, em
críticos atrevidos e, com frequência, faziam alarde de seus sentimentos
liberais.
Muito trabalho me custaria, - e
quase me seria impossível, com o meu idioma materno, - o poder fazer justiça
aos brilhantes paradoxos que corriam de boca em boca. O tema favorito da
conversação era a superioridade dos modernos sobre os antigos. Sobre este
assunto, Condorcet esteve eloquente, até o ponto de deixar convencidos muitos
dos ouvintes. Poucos eram os que se atreveram a negar que Voltaire fosse maior
do que Homero.
Ridicularizou-se sem compaixão o
torpe pedantismo que quer que tudo o que é antigo seja necessariamente sublime.
– Todavia, - disse o gracioso marquês de ***,
enquanto o champanhe dançava no seu copo, - mais ridícula ainda é a superstição
que santifica tudo o que não compreende. Mas a inteligência circula; e, como a
água, encontra o seu nível. O meu cabeleireiro disse-me esta manhã: - “Ainda
que eu não seja mais que um pobre diabo, creio tão pouco como o mais fino
cavalheiro”.
- Indubitavelmente, a grande
Renovação marcha para o seu auge, a passos de gigante, como disse Montesquieu
de sua própria obra imortal. Indubitavelmente, a grande Renovação marcha para o
seu auge, a passos de gigante, como disse Montesquieu de sua própria obra
imortal.
E os homens de saber e os homens
de nobreza, os cortesãos e os republicanos, formaram um harmonioso coro,
elogiando antecipadamente as brilhantes coisas que “a grande Revolução”
produziria. Sobre este ponto, Condorcet falou com eloquência ainda maior.
– “Il faut absolutement que la Superstition
et le Fanatisme fassent place à la Philosophie”. (É absolutamente necessário
que a Superstição e o Fanatismo cedam o lugar à Filosofia). Os reis perseguem
as pessoas, os sacerdotes perseguem as opiniões. Quando não houver reis, os
homens estarão seguros; quando não houver sacerdotes, o pensamento será livre.
– Ah, - murmurou o Marquês, e como esse
querido Diderot cantou tão bem:
“Et des boyaux du dernier prêtre
Serrez le cou du dernier roi”.
– E então, - prosseguiu Condorcet, - então
começará a Idade da Razão! Igualdade de instrução, igualdade de instituições,
igualdade de fortunas! Os grandes obstáculos que se opõem à difusão dos
conhecimentos são, em primeiro lugar, a falta de uma linguagem comum; e, em
seguida, a curta duração da existência. Pelo que toca ao primeiro, porque não
há de haver um idioma universal, uma vez que todos os homens são irmãos? Quanto
ao segundo, sendo indisputável a perfectibilidade orgânica do mundo vegetal,
seria menos poderosa a Natureza, tratando-se de uma existência muito nobre, a
do homem pensante? A destruição das duas causas mais ativas da deterioração
física, - a exorbitante riqueza de um lado, e a degradante miséria do outro, -
devem necessariamente prolongar o termo geral da existência. Assim como hoje se
tributam honras à arte da guerra, que é a arte de assassinar, dar-se-ia então
toda a importância à medicina: todas as mentes privilegiadas se entregariam à
busca dos descobrimentos que tendessem a minorar as causas que produzem as
enfermidades e a morte. Eu admito que não se possa eternizar a vida; mas creio
que se poderia prolongá-la quase indefinidamente. E assim como o mais
insignificante animal lega o seu vigor à sua prole, da mesma forma o homem
transmitirá a seus filhos a sua aperfeiçoada organização mental e física. Oh,
sim, para conseguir isto devem dirigir-se os esforços do nosso século!
O venerável Malesherbes suspirou.
Temia, talvez, que esta reforma não viesse a tempo para ele. O belo Marquês de
*** e as senhoras, ainda mais belas do que elas pareciam convencidas e
deleitadas.
Estavam ali, entretanto, dois
homens sentados um ao lado do outro, que nenhuma parte tornaram na conversação
geral: um era estrangeiro, recentemente chegado a Paris, onde a sua riqueza,
sua pessoa e suas maneiras distintas lhe alcançaram já certa reputação e não
poucas atenções; o outro, um ancião que contava uns setenta anos de idade, era
o espirituoso, virtuoso, valente e bondoso Cazotte (consultar), o autor do “Os Amores do
Diabo”.
Estes dois homens conversavam
familiarmente, separados dos demais, e só de vez em quando manifestavam, por um
ocasional sorriso, a atenção que prestavam à conversação geral.
– Sim, - disse o estrangeiro, - sim, nós já
nos temos encontrado várias vezes.
– A sua fisionomia não é desconhecida; e,
contudo, em vão procuro relembrar-me do passado em que a vi.
– Eu vou auxiliá-lo a recordar-se. Lembre-se
do tempo quando, levado por curiosidade, ou talvez pelo nobre desejo de
alcançar conhecimentos elevados, você procurava a maneira de obter a iniciação
na misteriosa ordem de Martinez de
Pasqually?
– Ah! é possível! Você pertence àquela irmandade telúrica?
– Ah! é possível! Você pertence àquela irmandade telúrica?
– Não; só assisti às suas cerimônias para ver
como debalde tratavam de ressuscitar as antigas maravilhas da Cabala.
– Gosta desses estudos? Eu, por minha parte,
expulsei para longe a influência que outrora exercia sobre a minha imaginação.
– Você não a sacudiu, - retrucou o
estrangeiro gravemente - aquela influência ainda o domina. Domina-o nesta hora
mesmo; ela bate no seu coração; ilumina a sua razão e falará com a sua língua.
E ao dizer isto, o estrangeiro
continuou a falar-lhe, em voz ainda mais baixa, recordando-lhe certas
cerimônias e doutrinas daquela seita, - explicando-as e acomodando-as à atual
experiência e à história do seu interlocutor, causando a Cazotte uma grande
admiração o fato de ser a sua vida tão conhecida a esse estrangeiro.
O tranquilo e amável semblante do
ancião anuviava-se gradualmente e, de vez em quando, dirigia ao seu
companheiro, olhares pesquisadores, curiosos e penetrantes.
A encantadora Duquesa de D*** fez
observar à animada reunião o olhar abstrato e a enrugada testa do poeta; e
Condorcet, que não gostava que fosse levada a atenção a outrem quando ele
estava presente, disse a Cazotte:
– E que nos diz você da Revolução? Ou, ao
menos, qual a sua opinião sobre a maneira como ela influirá sobre nós?
Cazotte sobressaltou-se ao ouvir
esta pergunta; as suas faces empalideceram; grossas gotas de suor corriam por
sua fronte; os seus lábios tremiam; os seus alegres companheiros miraram-no
cheios de surpresa.
– Fale! - murmurou o estrangeiro, pondo sua
mão, suavemente, sobre o braço do ancião.
A esta palavra, a fisionomia de
Cazotte tomou uma expressão grave e rígida, o seu olhar errou pelo espaço e,
com voz baixa e rouca, respondeu o velho poeta:
– Pergunta-me você que efeito a Revolução
produzirá sobre os seus mais ilustrados e desinteressados agentes. Vou
responder-lhe. O Marquês de Condorcet, morrerá numa prisão, mas não pela mão do
verdugo. Na tranquila felicidade daquele dia, o filósofo levará consigo não o
elixir, mas o veneno.
– Meu pobre Cazotte - disse Condorcet, com
seu amável sorriso - que têm que ver as prisões, os verdugos e os venenos com
uma era de liberdade e fraternidade?
– É em nome da Liberdade e da Fraternidade
que as prisões estarão cheias, e o algoz terá muito que fazer.
– Sem dúvida, você se refere ao reinado dos
padres, e não ao da filosofia, Cazotte, - disse Champfort.
– E a mim, o que está previsto?
– Você abrirá suas próprias veias para
escapar à fraternidade de Caim. Console-se; as últimas gotas não seguirão a
navalha. Para você, venerável Malesherbes; para Aimar Nicolai; para o douto
Bailly - vejo levantar-se o cadafalso! E, entretanto, ó grandes filósofos, os
seus assassinos não falarão senão de filosofia!
O silêncio era completo e geral,
quando o pupilo de Voltaire, - o príncipe dos cépticos acadêmicos, o ardente La Harpe (consultar), -exclamou com riso sarcástico:
– Não me lisonjeie, ó profeta, excluindo-me
do destino dos meus companheiros. Não terei eu nenhum papel para representar,
neste drama de suas fantasias?
A esta pergunta, o semblante de
Cazotte perdeu aquela estranha expressão de terror e rigidez; o seu constante
humor sardônico tornou ao poeta e brincou nos seus olhos brilhantes.
– Sim, La Harpe, reservo a você o papel mais
maravilhoso de todos! O de se transformar em cristão.
Isto era demasiado para o
auditório que, um momento antes, parecera sério e meditabundo, e todos, menos o
estrangeiro, caíram numa forte gargalhada, ao passo que Cazotte, como se
estivesse exausto por essas suas predições, caiu sobre a cadeira, respirando
pesada e dificilmente.
– Agora, - disse Mme. De G***, - que nos
predisse coisas tão graves para nós, é dever profetizar também algo para si
mesmo.
Um tremor convulsivo sacudiu o
involuntário profeta, - e, a seguir, a sua fisionomia animou-se de uma
expressão de resignação e calma.
– Senhora, - respondeu Cazotte, depois de uma
longa pausa, - o historiador de Jerusalém nos diz que, durante o sítio daquela
cidade, um homem andou sete dias consecutivos ao redor das muralhas, gritando:
“Ai de ti, Jerusalém, e ai de mim!”
– Bem, Cazotte, e que mais?
– E ao cabo dos sete dias, enquanto ele assim
falava, uma pedra arrojada pelas máquinas dos romanos, esmagou-o.
Ditas estas palavras, Cazotte se
levantou; e os hóspedes, profundamente impressionados, contra sua vontade,
também fizeram o mesmo, e retiraram-se.
(continua)
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