Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo I
Decidindo na Espada
“Centauri, e Sfingi, e pallide Gorgoni”. Gerusal. Lib., canto IV, 5
“Centauros e Esfinges e pálidas Górgonas”.
Numa noite enluarada, nos Jardins
de Nápoles, quatro ou cinco cavalheiros, sentados debaixo de uma árvore,
tomavam o seu sorvete e, nos intervalos da conversação, ouviram a música que
animava aquele lugar favorito de alegres reuniões de uma população indolente.
Um deste pequeno grupo, jovem inglês, que momentos antes parecia o mais alegre
e vivaz dessa reunião, tornou-se subitamente triste e pensativo. Um dos seus
compatriotas observou esta mudança repentina e, dando-lhe uma pancadinha no
ombro, disse:
– Que tem, Glyndon? Está doente? Vejo-o tão
pálido e a estremecer... Sente frio? Será melhor que se retire; estas noites
italianas são, muitas vezes, perigosas para os nossos temperamentos.
– Não é nada; já me sinto bem. Foi um tremor
passageiro que não sei a que atribuir.
Um homem, de aparência ainda mais
distinta que os demais, e que parecia ter uns trinta anos de idade, voltando-se
repentinamente para Glyndon, fixou nele os olhos e disse:
– Parece-me que compreendo o que tem e,
talvez, - acrescentou com um ligeiro sorriso, – poderia explicá-lo melhor que o senhor mesmo.
Em seguida, dirigindo-se aos
outros, continuou:
– Sem dúvida, cavalheiros, todos já
experimentaram várias vezes, especialmente ao estarem sós, de noite, uma
sensação estranha e inexplicável de frio e terror que os assalta de repente; o
sangue gela; o coração cessa de bater; as pernas tremem; os cabelos se eriçam;
têm medo de lançar os olhos para os cantos mais escuros do quarto;
apresenta-se, em suas mentes, uma idéia que os horroriza, como, por exemplo, de
se encontrar diante de alguma coisa extraterrestre. De repente, porém, todo
esse feitiço, se assim podemos chamá-lo, cessa, desvanece-se, e quase sentem
vontade de rir de semelhante fraqueza. Não têm experimentado, muitas vezes,
esta sensação, que acabo de descrever-lhes imperfeitamente? – Se assim é, poderiam
compreender o que o nosso jovem amigo acaba de sentir, neste momento, apesar de
estar rodeado das delícias desta mágica cena, e respirando as brisas balsâmicas
desta noite de Julho.
– Senhor, - respondeu Glyndon, evidentemente
muito surpreendido, –
acaba de definir exatamente a natureza do arrepio que me assaltou. Como, porém,
pôde, de um modo tão precioso, notar as minhas impressões?
– Conheço os sinais característicos, -
replicou o estrangeiro, seriamente; - e estes não enganam facilmente a quem tem
a experiência que eu tenho.
Todos os presentes declararam,
então, que compreendiam perfeitamente o que o estrangeiro acabava de descrever,
porque o haviam experimentado alguma vez.
– Segundo uma superstição do meu pai, - disse
Mervale, o inglês que primeiramente dirigia a palavra a Glyndon, - no momento
em que você sente que o seu sangue está gelado e que se eriçam seus cabelos é
porque alguém pôs o pé no sítio em que está sua sepultura.
– Em todos es países existem diferentes
superstições para explicar este fenômeno tão comum, - replicou o estrangeiro;
entre os árabes, por exemplo, há uma seita que crê que, naquele instante, Deus
decreta sua morte, ou a morte de alguma pessoa que lhe é cara. Os selvagens
africanos, cuja imaginação está cheia de horrores de sua tenebrosa idolatria,
crêem que o demônio está puxando, naquele momento, a pessoa pelos cabelos;
assim se mescla o terrível com o grotesco.
– Evidentemente, o fenômeno de que nos
ocupamos não é outra coisa senão um acidente físico, uma indisposição do
estômago ou uma paralisação na circulação do sangue - disse um jovem napolitano,
que poucos dias antes fora apresentado a Glyndon.
– Por que, então, em todas as nações esta
sensação vai sempre acompanhada de algum pressentimento supersticioso ou algum
temor, - formando uma conexão entre o corpo material e o suposto mundo fora de
nós? Por minha parte, eu penso que...
– Que é o que pensa, meu caro? - perguntou
Glyndon, com curiosidade.
– Penso - prosseguiu o estrangeiro - que é a
repugnância e o horror com que os nossos elementos mais humanos retrocedem ante
alguma coisa, naturalmente invisíveis, porém antipática à nossa natureza, e que
não nos é dado conhecer por causa da imperfeição dos nossos sentidos.
– Então crê na existência dos espíritos? -
inquiriu Mervale, com um sorriso incrédulo.
– Não era precisamente dos espíritos que eu
falava; porém, podem existir formas de matéria, tão invisíveis e impalpáveis
para nós, como o são os animálculos no ar que respiramos, - ou da água que
corre daquela fonte. Aqueles seres podem ter suas paixões e seus poderes, da
mesma forma como nós temos as nossas paixões e os nossos poderes e como
animálculos aos quais os comparei. O monstro que vive e morre numa gota de
água, - carnívoro, insaciável, subsistindo às criaturas ainda menores do que
ele mesmo, - não é menos mortífero em sua fúria, nem menos feroz em sua
natureza, do que o tigre do deserto. Existem talvez, ao redor de nós, muitas
coisas que seriam perigosas e hostis para os seres humanos, se a Providência
não tivesse levantado uma barreira entre elas e nós, por diferentes
modificações da matéria.
– E pensa o senhor que estas barreiras nunca
podem ser removidas? - perguntou, de repente, o jovem Glyndon. - As tradições
de feiticeiros e bruxas, tão universais e imemoriais como são, não passarão de
meras fábulas?
– Talvez sim, talvez não, - respondeu o
estrangeiro, com indiferença. - Mas quem, numa época em que a razão tem
estabelecido os seus próprios limites, seria bastante louco para romper a
barreira que o separa da jibóia e do leão, - ou para murmurar e rebelar-se
contra a lei que encerra a tubarão no grande abismo? Porém, deixemos estas vãs
especulações.
Ao dizer isto, o estrangeiro se
levantou, chamou o “garçom”, pagou o seu sorvete, cumprimentou aos demais do
grupo e desapareceu, em seguida, entre as árvores.
– Quem é este cavalheiro? - perguntou
Glyndon, com curiosidade.Todos se entreolharam, sem responder, até que,
passados alguns minutos, disse Mervale: Esta é a primeira vez que o vi.- Eu
também.- E eu igualmente.
– Eu o conheço bem, - disse o napolitano, que
era o nosso conhecido, o conde Cetoxa. - Se estão lembrados, ele veio até aqui
como meu companheiro. Haverá uns dois anos, que este homem visitou Nápoles, e
há poucos dias veio outra vez à cidade. É muito rico, - muitíssimo rico, e uma
pessoa agradabilíssima. Sinto que tenha falado, esta noite, de uma forma tão
estranha, pois isto servirá para confirmar os diversos boatos loucos que
circulam a seu respeito.
– E seguramente, - disse um outro napolitano,
- o fato que aconteceu outro dia, e que o meu caro Cetoxa conhece
perfeitamente, justifica as suposições que pretende desprezar.
– Eu e o meu compatriota - disse Glyndon -
freqüentamos tão pouco a sociedade de Nápoles, que ignoramos muitas coisas que
parecem dignas de interesse. Quer fazer-nos o obséquio de contar-nos esse fato,
e o que se diz a respeito desse homem?
– Quanto aos boatos que circulam,
cavalheiros, - disse Cetoxa, dirigindo-se cortesmente aos dois ingleses, -
basta observar que atribuem ao Senhor Zanoni certas qualidades que cada um
desejaria ter para si, porém condena a qualquer outra pessoa que parece
possuí-las. O acontecimento, a que alude o Senhor Belgioso, exemplifica estas
qualidades e é, devo confessá-lo, um tanto surpreendente. Provavelmente jogam,
cavalheiros? (Aqui, Cetoxa fez uma pausa. Como, efetivamente, os dois ingleses
haviam arriscado alguns escudos nas mesas de jogo, inclinaram-se levemente,
para afirmar a suposição). Cetoxa continuou: - Bem; pois saibam que, há pouco
tempo, no mesmo dia em que Zanoni regressara a Nápoles, estava eu jogando,
tinha perdido quantias consideráveis. Levantei-me da mesa, decidido a não
tentar mais a fortuna, quando, de repente, percebi Zanoni, de quem me fizera
amigo em outro tempo (e que, posso dizê-lo, me devia uma pequena obrigação),
estando na sala como mero espectador. Antes de eu poder manifestar-lhe o meu
prazer de vê-lo, pôs sua mão sobre o meu ombro, e disse-me:
– “Perdeu muito; mais do que podia despender.
Por minha parte, não gosto de jogar; mas quero ter algum interesse pelo que
está se passando. Quer jogar esta quantia por mim? As perdas correm por minha
conta; e, se ganhar, repartiremos pela metade, os benefícios”.
Como podem supor, esta proposta
deixou-me desconcertado; porém, Zanoni o dizia com um ar e tom que era
impossível resistir-lhe; além disso, eu ardia em desejos de recuperar o que
havia perdido, e não me teria levantado da mesa, se me tivesse sobrado algum
dinheiro. Respondi-lhe que aceitava a sua oferta, porém com a condição de que
repartíssemos tanto os ganhos como as perdas.
– “Como quiser, - respondeu-me sorrindo; -
não precisamos ter escrúpulos, porque, com certeza, irá ganhar”.
“Sentei-me e Zanoni se pôs em pé
atrás de mim. A minha sorte mudou, e isso de tal maneira que não fiz mais do
que ganhar continuamente. Com efeito, levantei-me da mesa muito rico”.
– Não é possível trapacear nos jogos
públicos, e, sobretudo quando a trapaça teria que ser feita contra a banca -
asseverou Glyndon.
– Certamente - respondeu o conde; porém a
nossa sorte era tão extraordinária, que um siciliano (os sicilianos são, em
geral, malcriados e de mau gênio) tornou-se colérico e até insolente.
– “Senhor, - disse ele, dirigindo-se ao meu
novo amigo, - nada tem que fazer tão perto da mesa”.
Zanoni respondeu-lhe, com bons
modos, que não fazia nada que fosse contrário às regras do jogo, que sentia
muito que um homem não pudesse ganhar sem outro perder, e que ali não poderia
fazer nada de má fé, nem que estivesse disposto a fazê-lo. O siciliano tomou
por medo a brandura do estrangeiro, e começou a censurá-lo em voz ainda mais
alta; e até se levantou da mesa e pôs-se a olhar para Zanoni de um modo capaz
de fazer perder a paciência a qualquer cavalheiro que tivesse sangue inflamável
ou que soubesse manejar a espada”.
– E o mais singular, - interrompeu Belgioso,
- o que mais me surpreendeu é que Zanoni, que estava em frente de mim, e cujo
semblante, por conseguinte, eu podia examinar distintamente, não mudou as
feições, nem mostrou o menor ressentimento. Ele fixou sua vista no siciliano de
uma forma impossível de descrever; nunca me esquecerei daquele olhar! - gelava
o sangue nas veias. O siciliano titubeou como se tivesse sido golpeado,
estremeceu e caiu sobre o banco. E depois...
– Sim, depois, - concluiu Cetoxa, - com
grande surpresa minha, o nosso cavalheiro, desarmado por um olhar de Zanoni,
dirigiu a sua ira contra mim... Porém, talvez ignorem, senhores, que a minha
habilidade no manejo das armas me tem valido alguma reputação.
– É o melhor esgrimista da Itália, - afirmou
Belgioso.
– Antes que tivesse tempo de saber por que
motivo -prosseguiu Cetoxa, - encontrei-me no jardim detrás da casa, com Ughelli
(este era o nome do siciliano) encarando-me, e com cinco ou seis cavalheiros,
que deviam ser as testemunhas do nosso duelo. Zanoni, chamando-me à parte,
disse-me:
– “Este homem cairá. Quando ele estiver no
chão, pergunte-lhe se quer que o enterrem ao lado de seu pai na igreja de São
Januário”.
– “Conhece, então, a sua família?” -
perguntei-lhe, surpreendido.
– Zanoni não me respondeu, e um momento
depois estava eu batendo-me com o siciliano. Para fazer-lhe justiça devo dizer
que o seu “imbrogliato” era magnífico, e que nunca um mandrião manejou a espada
com mais destreza; apesar disso, porém, - acrescentou Cetoxa, com agradável
modéstia, - caiu com o corpo atravessado pela minha arma. Aproximei-me e vi que
o desgraçado mal podia falar.
– Tem que me encarregar de algo, ou tem algum
negócio para ultimar? - perguntei-lhe.
“O ferido fez um sinal negativo”.
– “Onde quer ser enterrado?” - tornei a
perguntar. “Ele apontou a costa da Sicília”. -
– “Como? - observei, com surpresa, - não quer
ser sepultado na igreja de São Januário, ao lado de seu pai”?
“Ao ouvir estas minhas palavras,
o seu semblante alterou-se terrivelmente; Ughelli soltou um grito agudo, lançou
uma golfada de sangue pela boca, e expirou”.
“Agora vem a parte mais
misteriosa desta história. Enterramos o siciliano na igreja de São Januário.
Para este fim, levantamos a tampa do caixão onde estavam os restos mortais de
seu pai cujo esqueleto ficou descoberto. Na cavidade do crânio, encontramos um
pedaço de arame de aço delgado e duro. Isto nos causou surpresa, e levou a
fazer-se investigações. O pai do meu rival, que era um homem rico e avarento,
falecera repentinamente, e, devido ao grande calor da estação, fora sepultado
sem perda de tempo. Como nosso achado levantasse suspeita, procedeu-se a um
exame minucioso do cadáver. Foi inquirido o criado do velho Ughelli, o qual
confessou, por fim, que o filho havia assassinado o pai. O ardil tinha sido
engenhoso: o arame de aço era tão delgado, que atravessou o cérebro sem que
saísse mais do que uma gota de sangue, que os cabelos ocultaram. O cúmplice
morrerá no patíbulo”.
– E Zanoni sabia desses fatos? Ele lhe
contou?
– Não, - respondeu o conde; - ele declarou
que, por um acaso, havia visitado, naquela manhã, a igreja de São Januário: que
havia reparado na lousa sepulcral do conde Ughelli; que o seu guia lhe havia
dito que o filho desse conde estava em Nápoles, e que era perdulário e jogador.
Enquanto jogávamos, Zanoni havia ouvido pronunciar o nome do conde Ughelli à
mesa; e quando estivemos no terreno do duelo, veio-lhe a lembrança de ter visto
a tumba do pai do meu rival, e ele, conforme assegura, falou-me nela, levado a
isto por um instinto que não podia ou não queria explicar.
– Uma história bastante explicável, - disse
Mervale.
– Sim! Mas nós os italianos, somos
supersticiosos; aquele instinto foi considerado, por muitos, como um aviso da
Providência. No dia seguinte, o estrangeiro foi objeto de curiosidade e
interesse geral. A sua riqueza, o seu modo de viver, a extraordinária beleza da
sua pessoa, têm contribuído também para que seja olhado com inveja e furor;
além disso, eu tive o prazer de introduzir esta eminente personagem entre os
mais alegres dos nossos cavalheiros e apresentá-la às nossas primeiras
beldades.
– Uma narrativa interessantíssima, -- rematou
Mervale, levantando-se. - Venha, Glyndon; vamos ao nosso hotel? Não tardará em
ser dia. Adeus, senhores!
– Que pensa desta história? - perguntou
Glyndon ao seu companheiro, quando se dirigia para casa.
– Eu penso claramente que este Zanoni é algum
impostor, algum velhaco esperto; e o napolitano participa da velhacaria, e
gaba-o, exaltando-o, com o vil charlatanismo do maravilhoso. Um avarento
desconhecido se introduz facilmente na sociedade, quando esta o converte em
objeto de terror ou de curiosidade; Zanoni, além disso, é extraordinariamente
belo, e as mulheres estão prontas a recebê-lo muito contentes, sem outra
qualquer recomendação, a não ser o seu próprio semblante e as fábulas de Cetoxa.
– Não sou desse parecer, - respondeu Glyndon
- Cetoxa, ainda que jogador e perdulário, é nobre de nascimento, e goza de alta
reputação por sua coragem e honradez. Além disso, esse estrangeiro, com sua
nobre presença e o seu ar sério e sereno, tão calmo e tão modesto, não tem nada
de comum com a loquacidade de um impostor.
– Perdoe-me, meu caro Glyndon; mas eu vejo
que conhece ainda muito pouco o que é o mundo. O estrangeiro representa o papel
de uma grande personagem, e o seu ar de grande importância não é mais que um
estratagema do seu ofício. Porém, mudemos de assunto. Como vai a conquista
amorosa?
– Oh! Viola não pôde ver-me hoje..
– Cuidado, não vá casar-se com ela. Que
diriam todos lá na nossa terra?
– Desfrutemos o presente, - replicou Glyndon,
com vivacidade; –
somos jovens, ricos e de boa aparência; não pensemos no dia de amanhã.
– Bravo, Glyndon! Estamos já em casa. Durma
bem, e não sonhe com esse senhor Zanoni.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni