Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Capítulo VIII
Uma
Lamentável Adoção
“Se quereis saber como um homem
mal age quando atinge o poder,analisai todas as doutrinas que ele prega,
enquanto está ocupando um lugar obscuro”. S. Montaigne “As antipatias formam
também uma parte daquilo que (falsamente) se chama magia.O homem tem
naturalmente o mesmo instinto que os animais,o qual adverte involuntariamente
contra as criaturas que são hostis ou fatais à sua existência. Mas o homem
descuida-se tão a miúdo desse instinto, que ele fica latente e adormecido. Não
faz assim, porém, o cultivador da Grande Ciência”, etc. Trismegistus, o
Quarto.Um Rosa-cruz.
Quando o estrangeiro, no dia
seguinte, tornou a ver o ancião, encontrou-o tranqüilo, e restabelecido do
sofrimento da noite anterior. O ancião manifestou o seu agradecimento ao seu
salvador, com as lágrimas nos olhos, e disse-lhe que já havia mandado chamar um
parente que cuidasse da sua futura segurança.
– Ainda me sobrou dinheiro, - disse o ancião;
- e daqui por diante não terei motivo algum para ser avaro.
Em seguida, pôs-se a lhe contar a
origem e as circunstâncias que o haviam posto em relação com o jovem que o
tentou assassinar.
Segundo parece, o ancião, quando
ainda era jovem, desaviera-se com seus parentes, - por causa de diversidade de
crenças. Rejeitando toda religião como uma fábula, cultivava, contudo,
sentimentos que o inclinaram (pois embora a sua inteligência fosse fraca, tinha
bom coração) a essa falsa e exagerada sensibilidade, que as pessoas, por ela
seduzida, confundem tão amiúde com a benevolência.
Ele não tinha filhos; resolveu
adotar um “filho do povo”. Quis educar este rapaz conforme a “razão”. Escolheu,
pois, um órfão da mais baixa classe social, cujos defeitos físicos serviram
ainda de estímulo à compaixão, e, finalmente, aumentaram a sua afeição. No seu
protegido, não só amava um filho, como também amava uma teoria! Educou-o de uma
forma de todo filosófica.
Helvécio lhe provava que a
educação fazia tudo; e, antes que o pequeno Jean tivesse oito anos de idade, as
suas expressões favoritas eram: “La lumiere et la vertu” (A luz e a virtude). O
rapaz revelava bastante talento, sobretudo para as artes. O protetor procurou
um mestre que, como ele, estivesse livre de toda “superstição”, e encontrou o
pintor David. Este homem, tão feio como o seu discípulo, e cujas disposições
eram tão viçosas como era inegável era a sua habilidade profissional era, de
certo, tão livre de toda “superstição”, como o protetor podia desejar. Estava
reservado a Robespierre o fazer crer, mais tarde, ao sanguinário pintor, na
existência do Ser Supremo.
O rapaz teve, desde os seus
primeiros anos, a consciência de sua fealdade, que era quase extraordinária. O
seu benfeitor tratou em vão de reconciliá-lo com a malícia da Natureza,
mediante seus aforismos filosóficos; porém, quando lhe explicava que, neste
mundo, o dinheiro, como a caridade, encobre uma multidão de defeitos, o rapaz
escutava com atenção e sentia-se consolado. Todo o afã, e toda a paixão do protetor
resumia-se nos esforços de juntar e guardar dinheiro para o seu protegido, - o
único ser que ele amava no mundo. E, como vimos, recebeu uma estranha
recompensa.
– Mas eu estou contente por ele ter fugido, -
disse o ancião, enxugando os olhos. - Ainda que houvesse reduzido ao extremo de
pedir esmola, eu não o teria acusado nunca.
– Não podia fazer tal, - respondeu o
desconhecido, -pois você mesmo é o autor dos seus crimes.- Como? - replicou o
ancião; - eu, que nunca deixei de inculcar-lhe a beleza da virtude?
Explique-me.
– Ai! Se os lábios do seu pupilo não lhe
disseram bastante claro na noite passada, ainda que viesse um anjo do céu em
vão o compreenderia.
O ancião agitava-se numa espécie
de desassossego, e ia replicar, quando entrou no quarto o parente que mandara
chamar, e que, sendo morador de Nancy, por um acaso se achava, naqueles dias,
em Paris. Era um homem de trinta e tantos anos de idade, e de uma fisionomia
seca, saturnina, magra, com os olhos vivos e os lábios delgados. Fazendo muitos
gestos de horror, estudou a narração do ocorrido que lhe fez o parente, e
tratou seriamente, porém em vão, de convencê-lo que devia denunciar o seu
protegido.
– Cale-se, cale-se, René Dumas! - disse o
ancião; - o senhor é advogado, e, por isso, está acostumado a olhar a vida do
homem com desprezo. Logo que alguém ofenda a lei, já o senhor grita: “Seja
enforcado!”
– Eu? - exclamou Dumas, levantando as mãos e
os olhos ao céu, - venerável sábio, quão mal me julga! Eu, mais do que qualquer
outro lamento a severidade do nosso código. Penso que o Estado nunca deveria
arrebatar uma vida, - nunca, nem sequer a de um assassino. Concordo com esse
jovem estadista, - Maximiliano Robespierre, - que o verdugo é invenção do
tirano. O que mais me faz adorar a nossa próxima revolução, é a idéia de que
veremos desaparecer esta matança legal.
O advogado interrompeu-se, como
se lhe faltasse o alento. O estrangeiro olhou-o fixamente e empalideceu.
– Observo uma mudança no seu semblante,
senhor, -disse Dumas; - sem dúvida, não participa da minha opinião?
– Perdoe-me; neste momento me esforçava em
reprimir um vago temor que me parecia profético. - E qual é?
– Que nos encontraremos outra vez numa época
em que sua opinião sobre a Morte e sobre a filosofia das Revoluções será bem
diferente.
– Nunca!
– Encanta-me, primo René, - disse o ancião,
que escutava o seu parente com grande prazer. – Ah! Vejo que tem sentimentos próprios de
justiça e de filantropia. Porque não procurei conhecê-lo antes. O senhor admira
a Revolução! O senhor, o mesmo como eu, detesta a barbaridade dos reis e fraude
dos padres?
– Detesto! Como poderia eu amar a humanidade,
se não detestasse essas coisas?
– E, - disse o ancião, hesitando, - não pensa
como este cavalheiro, que errei nos preceitos que inculquei àquele miserável?
– Se errou? Pode-se, acaso, censurar a
Sócrates, porque Alcebíades foi um adúltero e um traidor?
– Está ouvindo, está ouvindo! Porém, Sócrates
teve também um Platão; de hoje em diante, será um Platão para mim. Ouviu? -
exclamou o ancião, voltando-se para o estrangeiro.
Este, porém, já estava no umbral
da porta. Quem pode discutir com o mais obstinado fanatismo, o fanatismo da
incredulidade?
– Já queres ir? - exclamou Dumas, - e antes
que eu lhe tenha agradecido e abençoado, por ter salvado a vida a este querido
e venerável homem? Oh, se alguma vez puder retribuir-lhe este favor, - se algum
dia o precisar, o sangue de René Dumas é seu!
E, dizendo isto, seguiu o
estrangeiro até à porta do segundo quarto, onde, tomando-o suavemente pelo
braço, e depois de olhar por cima do seu ombro para assegurar-se de que o
ancião não podia ouvir, murmurou em voz baixa:
– Tenho que voltar a Nancy. Não quereria
perder tempo. Não pensa, senhor, que aquele velhaco levou consigo todo o
dinheiro deste velho louco?
– Era assim que Platão falava de Sócrates,
senhor Dumas?
– Ah! Ah! Seu gênio é cáustico. Bem; tem
razão, nós nos encontraremos outra vez.
Outra vez! - murmurou o
estrangeiro.
E a sua fronte se anuviou. Subiu,
apressadamente, ao seu quarto; passou o dia e a noite sozinho, e em estudos,
não importa de que classe e que ainda mais aumentaram a sua tristeza.
Qual podia ser a casualidade que,
um dia, viesse enlaçar o seu destino com o de René Dumas, ou com o fugitivo
assassino?
Por que os ares vibrantes de
Paris lhe pareciam pesados e impregnados de vapores de sangue? Por que um
instinto o impelia a afastar-se desses círculos faiscantes, desse foco de
idéias que infundira tantas esperanças a todo o mundo, e porque esse instinto o
advertia que não voltasse mais para lá? - ele, cuja vida elevada afrontava os
perigos. - Porém, para que se ocupar com esses sonhos e esses vaticínios
ominosos?
Ia deixar a França, para tornar a
saudar as majestosas rumas da Itália! A sua alma torna a respirar o ar livre
dos Alpes. O ar livre! Ah! Deixa que esses homens, que se propuseram reformar o
mundo, esgotem sua química; o homem nunca será tão livre nos grandes mercados
das cidades, como está livre na montanha.
Mas nós, leitor, fujamos também dessas
cenas de falsa sabedoria, que encobre impiedades e crimes, Voltemos, novamente,
“às regiões risonhas, onde residem as formas puras”.
Conservando-se impoluto no meio da vida material, o
Ideal vive somente com a Arte e a Beleza. Meiga, Viola, pelas praias azuladas
de Partenope, pela tumba de Virgílio, e pela caverna Cimeriana, voltamos outra
vez a ti!
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni