Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Capítulo VII
Um
Estranho em Paris
“Qui donc t’a donnê mission
d’annoncer au peuple que la divinité n’existe pas? Quel avantage trouve-tu à
persuader à l’homme qu’une force aveugle preside à ses destlnées et frappe au
hasard le crime et la vertu?” Robespierre, Discours, Mai, 7, 1794.
“Quem, pois, lhe deu a missão de
anunciar ao povo que a divindade não existe? Que vantagem acha no persuadir ao
homem que uma força cega presidea seus destinos e fustiga ao acaso o crime como
a virtude?”
Era um pouco antes da meia-noite,
quando o estrangeiro entrou em sua casa. Os seus aposentos estavam situados num
daqueles grandes edifícios que poderiam chamar-se uma miniatura de Paris mesma;
- os sótãos eram alugados por pobres operários, apenas um pouco melhor alojados
do que mendigos; e não raras vezes eram também habitados por proscritos e
fugitivos, ou por algum atrevido escultor que, depois de haver espalhado entre
o povo as mais subversivas doutrinas, ou algum libelo contra o clero, o
ministro ou o rei, retirava-se para viver entre ratos, a fim de evadir-se da
perseguição; os pavimentos térreos destas vastas casas eram ocupados por vendas
ou lojas; as sobrelojas, por artistas; os primeiros andares por nobres; e as
águas-furtadas por jornaleiros ou por aprendizes.
Enquanto o estrangeiro subia a
escada, passou apressadamente por seu lado um jovem de fisionomia duvidosa e
pouco simpática, tendo saído de uma porta da sobreloja. O seu olhar era
furtivo, sinistro, feroz e, contudo, tímido; a face desse homem era de uma
palidez cinzenta, e as feições se moviam convulsivamente. O estrangeiro parou,
observando-o com olhos pensativos, quando o moço descia correndo pela escada.
Dali a instantes, ouviu-se um gemido dentro do quarto que aquele moço acabara
de deixar; e, apesar deste, ao sair, ter puxado a porta para si, com violência,
algum objeto, provavelmente uma lasca de lenha, não a deixou fechar bem, e
agora estava entreaberta; o estrangeiro empurrou-a, e entrou na habitação.
Passou por uma pequena ante-sala,
pobremente mobiliada, e deteve-se num dormitório de aspecto desagradável e
sórdido. Estendido na cama, e torcendo-se de dor, estava um ancião; apenas uma
vela ardia no quarto, e alumiava fracamente o enrugado e quase cadavérico rosto
do enfermo. Não havia em casa pessoa alguma que dele cuidasse; o doente parecia
prestes a exalar o último alento, ali, abandonado e só.
– Água! - gemia ele, com voz fraca, - água!
Como me queima a garganta! O intruso, aproximando-se do leito, inclinou-se
sobre o enfermo, tomando-lhe a mão:
– Oh! Muito grato Jean, muito grato! - disse
o paciente - já trouxe o médico? Senhor, sou pobre, mas pagar-lhe-ei bem. Eu
não queria morrer ainda, por amor a este jovem.
E, ao dizê-lo, o enfermo sentou-se
na cama, fixando os olhos enfraquecidos sobre o visitante.
– Que tem? - perguntou este.
– Que mal o aflige?
– Tenho fogo no coração e nas entranhas!
Parece-me que estou a arder!
– Quanto tempo faz que tomou o último
alimento? -
– Alimento! Só esta taça de caldo; fora dela,
não tomei nem comi nada durante as últimas seis horas. E apenas a tinha
provado, quando comecei a sofrer estas dores.
O estrangeiro examinou a taça;
uma pequena porção do conteúdo ficara ainda nela.
– Quem lhe deu isto?
– Quem havia de dar-me, senão Jean? Não tenho
criado algum, senhor. Sou pobre, muito pobre. Mas não! Os médicos, não gostam
de assistir aos pobres. Sou rico! Pode curar-me?
– Sim, se o céu o permitir. Espere alguns
instantes.
O ancião quase já sucumbia sob os
rápidos efeitos do veneno. O estrangeiro foi aos seus aposentos, e voltou dali
a instantes, trazendo um poção, que produziu o resultado instantâneo de um
antídoto. Apenas o ancião tomou este remédio, cessaram as suas dores,
desapareceu a cor azulada e lívida dos seus lábios, e o doente adormeceu
profundamente.
O estrangeiro deixou, então, cair
as cortinas em redor do leito, agarrou a vela na mão, e pôs-se a inspecionar
essa habitação. As paredes de ambos os aposentos estavam adornadas com pinturas
de grande mérito. Havia ali também uma carteira cheia de desenhos igualmente
preciosos, - porém estes eram, em sua maior parte, assuntos que espantavam os
olhos e revoltavam o gosto: exibiam a figura humana em grande variedade de
sofrimentos, – o
cavalete, a roda, a força; tudo o que a crueldade inventou para aumentar as
angústias da morte, parecia ainda mais horrível com o gosto apaixonado e a
força séria de veracidade com que o expressava o pintor. E algumas dessas
figuras assim desenhadas se afastavam bastante do ideal, para mostrar que eram
verdadeiros retratos; com grandes letras irregulares, e mão atrevida, estava
escrito debaixo destes desenhos: ‘O Futuro dos Aristocratas”. Num canto do
quarto, perto de um velho armário, estava um pequeno pacote, por cima do qual,
como se o devesse ocultar, uma capa, estendida negligentemente. Algumas
estantes estavam cheias de livros, quase todos obras de filósofos do tempo, -
filósofos da escola materialista, especialmente os Enciclopedistas, aos quais
mais tarde Robespierre atacou tão veemente, quando o covarde julgou perigoso
deixar a sua nação sem um Deus.
Sobre uma mesa, estava um livro,
- era uma obra de Voltaire, e a página estava aberta na passagem que
apresentava os argumentos para provar a existência do Ser Supremo , a margem
estava coberta de notas traçadas a lápis, por uma mão rija, porém que a idade
fizera tremer; todas estas notas tendiam a refutar ou ridicularizar a lógica do
sábio de Ferney: Voltaire não tinha ido tão longe como o desejava o anotador!
O relógio batia duas horas,
quando se ouviu, fora, o ruído de passos. O estrangeiro sentou-se
silenciosamente no canto mais afastado da cama, cujas cortinas o ocultavam à
vista de um homem que entrou nos pontinhas dos pés; era o mesmo que tinha
descido na escada, ao lado do estrangeiro, quando este vinha subindo. O
recém-chegado agarrou a vela e aproximou-se da cama. O rosto do ancião estava
voltado no travesseiro; mas ele estava tão quieto, e a sua respiração era tão
imperceptível, que o seu sono, ante aquele olhar intranquilo, trêmulo e
culpável, podia equivocar-se muito facilmente com o repouso da morte. O
recém-chegado retirou-se, e um sorriso sinistro apareceu-lhe no semblante: o
moço tornou a colocar a vela sobre a mesa, e, abrindo o armário com uma chave
que tirou da algibeira, apanhou alguns cartuchos de ouro que achou nas gavetas.
Neste instante, o ancião começava
a voltar a si do letargo em que jazia. Moveu-se no leito, abriu os olhos;
dirigiu o olhar à luz que começava já a apagar-se, e viu o que estava fazendo o
ladrão. Mais admirado do que aterrorizado, sentou-se por um instante, e depois
saltou da cama para ir colocar-se em frente ao malfeitor.
– Justo céu! - exclamou. - Estarei sonhando?
Você, para quem tanto trabalhei e sofri, privando-me, às vezes, até do
necessário! ... Você!
O ladrão, sobressaltado, deixou
cair o ouro da mão, e o metal rolou pelo assoalho. - Como! – disse o jovem, - ainda
não está morto? O veneno não agiu?
– Veneno, rapaz? Ah! - gritou o ancião,
cobrindo o rosto com as mãos; e, em seguida, com uma energia repentina,
exclamou:
– Jean, Jean! Retire essa palavra! Roube-me,
saqueie-me, se quer; porém não diga que quis assassinar a quem tem vivido
somente para ti! Aqui tem o ouro, tome-o; eu o havia acumulado para seu
proveito. Vai, vai!
E o ancião, que em sua ira
abandonara a cama, caiu estendido aos pés do assassino confuso, e torcia-se
sobre o assoalho, atormentado pela agonia mental, muito mais intolerável do que
a que antes experimentara o seu corpo.
O ladrão contemplou-o com frio
desdém.
– Que lhe fiz eu, infeliz? - continuou
dizendo o ancião, - senão amá-lo e alimentá-lo toda a minha vida? Você era um órfão
desamparado, e eu o alimentei; dei-lhe educação, e até adotei-o como filho. Se
os homens me chamam de avarento, é porque eu não queria que pudesse ser
desprezado quando eu deixasse de existir, já que a Natureza o fez tão
desgraçado e disforme; você devia ser o meu herdeiro, e teria tudo o que
acumulei. Não podia deixar-me viver alguns meses, ou dias, - que é nada para a
sua juventude, porém tudo o que sobrou à minha velhice? Que é que lhe fiz?
– Continuou vivendo, e não fazia o
testamento.
– Ó meu Deus! Meu Deus!
– “Seu Deus”, imbecil! Não me dizia, desde a
minha infância: “Não há Deus?” Não me alimentou com filosofia? Não me dizia:
“Seja virtuoso, seja bom, seja justo, por amor à humanidade: porém, não há
outra vida depois desta vida”; não me dizia? A humanidade! Porque devo eu amar
esta humanidade? Esta humanidade que mofa de mim, porque sou feio e desgraçado,
e me escarnece quando passo pelas ruas? Que é que me fez? Tiraram de mim, que
sou o escárnio deste mundo, as esperanças de um outro mundo! Não há outra vida
depois desta? Bem, então eu quero ter o seu ouro, para gozar, ao menos, tudo o
que se possa nesta vida!
– Monstro! Que a minha maldição caia sobre
ti!
– E quem ouvirá a sua maldição? Bem sabe que
não há Deus! Ouve! Eu tenho tudo preparado para fugir. Olha, - aqui está o meu
passaporte; os meus cavalos que me esperam na rua, e já estão dadas ordens a
respeito dos cavalos de muda. E tenho eu o dinheiro. (E o miserável, ao
dizê-lo, enchia friamente as suas algibeiras com cartuchos de ouro). E agora,
se poupo a sua vida, como estarei seguro de que não me denunciará?
E o malvado aproximava-se do
ancião, com cara sinistra e gesto ameaçador. A cólera do velho, que se havia
acobardado ante aquele selvagem, transformou-se em medo. - Deixe-me viver! Para
que.- Para que?
– Para que eu o perdoe! Sim, não terá nada
que temer de mim. Juro-lhe!
– Jura! Porém, por quem e por que,
desgraçado? Eu não posso crer, uma vez que você não crê em Deus algum! Ah! Ah!
Vê os resultados das suas lições!
Um momento mais, e as mãos do
assassino teriam estrangulado a sua vítima. Porém, entre os dois se interpôs
uma sombra imponente e ameaçadora que lhes pareceu um ser vindo desse mundo em
que nenhum dos dois cria.
O ladrão recuou, olhou-o
aterrorizado e fugiu. O ancião caiu outra vez ao chão, desmaiado.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni