Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo V
Rivais pela mesma Mulher
“I and my fellows Are ministers of Fate”. The
Tempest
“Eu e os meus companheiros, somos
ministros do Destino”. A Tempestade
No dia seguinte, Glyndon
encaminhou-se para o palácio de Zanoni. A imaginação do jovem, naturalmente
impressionável, estava singularmente excitada pelo pouco que tinha visto e
ouvido a respeito deste estranho homem; um encanto que o inglês não podia
explicar nem dominar, impelia-o para o estrangeiro. O Poder de Zanoni parecia
ser misterioso e grande; as suas maneiras, conquanto ordinariamente fossem
amáveis e benévolas, tornavamse algumas vezes frias e insociáveis. Porque
aquele homem, por uma parte, repelia a amizade de Glyndon, e por outra parte, o
salvar de um perigo? Como havia descoberto Zanoni alguns inimigos que aquele
jovem ignorava ter? Este fato, avivando duplamente o seu interesse e
despertando a sua gratidão, fez com que Glyndon se resolvesse a tentar um novo
esforço para captar a amizade do áspero botânico.
Glyndon foi introduzido numa
vasta sala, onde Zanoni, em poucos minutos, veio recebê-lo.
– Venho agradecer-lhe pelo seu aviso da noite
passada, - disse o jovem, - e pedir-lhe o favor de informar-me em que bairro da
cidade é que me ameaça o perigo de que falou.
– Um jovem insinuante, - respondeu Zanoni,
com um sorriso, e falando inglês - e conhece tão pouco o Sul para ignorar que
os homens assim têm sempre rivais?
Fala seriamente? - perguntou
Glyndon, corando.
Muito seriamente, - respondeu
Zanoni. - ama Viola Pisani, e tem como rival um dos mais poderosos e implacáveis
príncipes napolitanos. O perigo que o ameaça é, realmente, grande.
– Mas, perdoe-me: como pôde descobri-lo?
– Que lhe importa como o descobri? - replicou
Zanoni, com altivez; - de resto, para mim é indiferente que despreze ou não a
minha advertência.
– Bem; se não posso perguntar-lhe, seja
assim; porém, ao menos, aconselhe-me o que devo fazer. - Seguirá o meu
conselho?- Por que não?
– Porque é naturalmente valente, ama as
emoções e os mistérios, e gosta de representar o papel de herói de um romance.
Se eu o aconselhar que deixe Nápoles, fa-lo-á, durante todo o tempo que esta
cidade lhe ofereça um inimigo com quem não pode medir forças, ou uma mulher
amada que quer conquistar?
Tem razão, - respondeu o jovem
inglês, com energia. Não! E suponho que não me censurará por esta resolução.
– Porém, não lhe resta outro caminho. Ama
deveras a bela Pisani? Se assim é, case-se com ela e leve-a para o seu país
natal.
– Não, - respondeu Glyndon, embaraçado; -
Viola não é da minha classe; além disso, a sua profissão... Enfim, eu me sinto
escravizado pela sua beleza, mas não posso casar-me com ela.
Zanoni franziu as sobrancelhas e
retrucou:
– Então o seu amor não passa de uma paixão
egoísta e indigna. Jovem, o destino é menos inexorável do que parece. Os recursos
do grande Senhor do Universo não são tão escassos nem tão duros, que ele negue
aos homens o privilégio divino do livre arbítrio; todos nós podemos traçar o
nosso próprio caminho, e Deus pode fazer com que até as nossas contradições se
harmonizem com Seus fins solenes. Apresentar-se-lhe-á uma ocasião de escolher.
Um amor nobre e generoso pode produzir sua felicidade e salvá-lo; uma paixão
frenética e egoísta não faria mais do que levá-lo à miséria e à desgraça.
– Pretende, então, ler o futuro?- Eu disse
tudo o que pretendia dizer.
– Vejo que é um grande moralista, senhor
Zanoni, - disse Glyndon, sorrindo; - mas, diga-me: é tão indiferente à
juventude e à beleza, que possa resistir estoicamente aos seus afagos?
– Se fosse necessário ajustar a prática ao
preceito, - respondeu Zanoni, com um sorriso amargo, - teríamos bem poucos
conselheiros. A conduta de um indivíduo pode afetar somente um pequeno círculo
fora dele; e o bem ou o mal permanente que faz aos demais, está, mais do que em
outra coisa, nos sentimentos que difunde. As suas ações são limitadas e
momentâneas; ao passo que seus sentimentos podem atravessar o universo e
inspirar as gerações até ao fim do mundo. Todas as nossas virtudes e todas as
nossas leis foram tiradas de livros e de máximas, isto é, de sentimentos, e não
de ações. Em sua conduta, Juliano teve as virtudes de um cristão e Constantino
os vícios de alguns pagãos. Os sentimentos de Juliano fizeram voltar milhares
de pessoas ao paganismo; os sentimentos de Constantino ajudaram, debaixo da
vontade do Céu, a converter ao cristianismo as nações da terra. Em sua conduta,
o mais humilde pescador daquela praia, que crê nos milagres de São Januário,
pode ser um homem melhor do que Lutero; não obstante, Lutero produziu urna
revolução nas idéias da Europa moderna, devido aos seus pensamentos e
sentimentos. Nossas opiniões, jovem inglês formam em nós a parte angélica, e
nossas ações a parte terrestre.
– Para ser italiano, tem refletido muito
profundamente.
– Quem lhe disse que eu sou italiano?
– Então não é? E, sem embargo, quando o ouço
falar o meu próprio idioma natal como poderia falá-lo só um inglês quase...
Ba! - interrompeu Zanoni, com
certa impaciência.E depois de alguns momentos de silêncio, prosseguiu com
afabilidade:
– Senhor Glyndon, renuncia a Viola Pisani?
Quer alguns dias para refletir sobre o que lhe disse?
– Renunciar a ela? Nunca!
– Então vai se casar com ela?
– Impossível!
– Seja, pois; será ela quem renunciará.
Digo-lhe outra vez que têm rivais.
– Sim, o Príncipe de ***; porém, não o temo.
– Tem também outro, muito mais terrível.
– E quem é?
– Eu mesmo.
Glyndon empalideceu e levantou-se
da cadeira.
– O senhor Zanoni! E atreve a dizer?
– Atrever-me! Ah! Há ocasiões em que eu
desejaria ter medo.
Estas palavras altivas foram
ditas sem arrogância; o tom da voz de Zanoni era triste e melancólico. Glyndon,
apesar de sentir o coração cheio de ira, permaneceu, por alguns instantes,
confuso e como que aterrorizado. Entretanto, como possuísse um valente coração,
recobrou prontamente a serenidade.
Estas palavras altivas foram
ditas sem arrogância; o tom da voz de Zanoni era triste e melancólico. Glyndon,
apesar de sentir o coração cheio de ira, permaneceu, por alguns instantes,
confuso e como que aterrorizado. Entretanto, como possuísse um valente coração,
recobrou prontamente a serenidade.
– Senhor, - disse ele, calmamente, - não me
deixo iludir com essas frases solenes e com essas coisas místicas que a si se
atribui. É possível que tenha poderes que eu não compreenda, nem poderia
imitar, ou talvez não seja mais que um astuto impostor...
– Bem, continue!
– Quero dizer, pois, - prosseguiu Glyndon,
com resolução, ainda que um tanto desconcertado - quero fazer-lhe compreender
que não me deixo convencer ou obrigar por um estrangeiro, a casar-me com Viola
Pisani, e que, não obstante, não me sinto inclinado a cedê-la tranqüilamente a
outrem.
Zanoni dirigiu um olhar sério ao
jovem, cujos olhos brilhantes e faces afogueadas manifestavam claramente que
estava resolvido a sustentar a palavra.
– Tão animado se sente? - perguntou-lhe a
estranha personagem. - Está bem. Porém, aceite o meu aviso: aguarde ainda nove
dias, e então me dirá se quer ou não se casar com a criatura mais formosa e
mais pura que encontrou neste mundo.
– Mas, se você a ama por que... por que?...
– Porque desejo que ela se case com outro?
Porque quero desviá-la de mim! Escute-me. Esta menina, embora seja humilde e de
modesta educação, possui todos os dons que podem elevá-la às mais altas
qualidades e às mais sublimes virtudes. Ela pode ser tudo quanto seja possível
para o homem a quem ame, tudo quanto o homem pode desejar numa mulher. A sua
alma, desenvolvida pelo afeto, elevará a sua; terá notável influência sobre a
sua fortuna, engrandecerá o seu destino, chegará a ser um grande homem e feliz.
Se, ao contrário, Viola for minha, não sei o que será dela; mas sei que existe
uma prova pela qual poucos podem passar, uma prova à qual, até agora, não
sobreviveu mulher alguma.
Enquanto Zanoni pronunciava estas
palavras, a sua face tornou-se pálida, e havia em sua voz algo que gelou o
sangue do jovem que o escutava.
– Qual é, pois, este mistério que vos rodeia?
- exclamou Glyndon, incapaz de reprimir sua emoção. - Você é efetivamente
diferente dos demais homens? Tem passado além do limite da ciência oficial? E,
como alguns asseveram, um feiticeiro, ou somente um...?
– Silêncio! - interrompeu Zanoni afavelmente
e com um sorriso que expressava uma singular e melancólica doçura; - creio que
não adquiriu o direito de fazer-me estas perguntas... Embora haja na Itália
ainda uma Inquisição, o seu poder é tão débil como o de uma folha que o
primeiro sopro de vento leva quem sabe onde. Os dias de tortura e de
perseguição já se foram; e o homem pode viver como lhe agrada e falar o que
quiser, sem que deva temer a fogueira e a roda. E visto que posso desafiar a
perseguição, perdoe se não cedo à curiosidade.
Glyndon levantou-se. Apesar do
seu amor por Viola, e apesar do temor natural que lhe infundira um rival como
Zanoni, o jovem se sentia irresistivelmente atraído para o homem do qual só
tinha motivos para suspeitar e temer. Ele estendeu a mão a Zanoni, dizendo-lhe:
– Bem; se tivermos que ser rivais, as espadas
decidirão a nossa sorte; mas até lá eu desejaria que fôssemos amigos.
– Amigos! Não sabe o que está pedindo.
– Outra vez enigmas?!
– Enigmas! - exclamou Zanoni, com exaltação.
- Ah! Se sente capaz de resolvê-los? Só quando você puder, poderei dar-lhe a
minha mão direita e chamar-lhe meu amigo.
– Eu seria capaz de tudo, para alcançar a
sabedoria super-humana, - afirmou Glyndon. E o seu semblante brilhou com o fogo
de um estranho e intenso entusiasmo.
As sementes do antepassado vivem
no jovem, - murmurou Zanoni; - ele talvez possa... porém... E, tirando-se da
sua meditação, disse em voz alta:
– Vá, Sr. Glyndon; tornaremos a ver-nos; mas
eu não lhe pedirei a resposta senão quando se aproximar- a hora da decisão.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni