Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo III
Para Esquivar-se da Paixão
“When most I wink, then do mine
eyes best see, For all the day they view things undespected; But when I sleep,
in dreams they look on thee, And, darkly bright, are bright la dark directed”.
Shakespeare.
“Quando fecho os meus olhos o
mais possível, vêem melhor; porque todo o dia enxergam coisas que não me
prendem a atenção, porém, quando durmo, avistam em sonhos, e, brilhando no
escuro, são como luzes dirigidas através da escuridão”.
Zanoni acompanhou a jovem à sua
casa. Gianetta foi-se às suas ocupações, e os dois ficaram a sós.
Estavam naquele quarto onde tão
frequentemente, em dias outrora mais felizes, ouviam-se as estranhas melodias
de Pisani; e agora, que a jovem via ali ao seu lado esse misterioso, incompreensível,
belo e valente estrangeiro, no mesmo lugar onde ela se sentara tantas vezes aos
pés de seu pai um estranho estremecimento percorreu todo o seu corpo; e, como a
sua fantasia costumava personificar suas ideias, lhe pareceu que aquela música
espiritual havia tomado forma e vida, e que esta estava diante dela, na sublime
imagem que adotara. Viola sentia-se tomada de uma espécie de torpor, de uma
semi-inconsciência. Havia tirado a touca e o véu; os seus cabelos, um tanto
quanto desordenados, caiam-lhe sobre o colo ebúrneo, descoberto em parte, pelo
decote do vestido lágrimas de agradecimento brilhavam-lhe nos formosos olhos
negros e as suas faces estavam coradas pela emoção: nunca o deus da luz e da
música, no meio dos vales da Arcádia, soube tornar enamorada uma virgem ou uma
ninfa mais formosa, quando esse ser imortal adotara uma forma humana.
Zanoni contemplou a artista, com
um olhar em que a admiração estava mesclada de compaixão. Murmurou algumas
palavras entre dentes, e, depois, dirigindo-se à jovem, disse-lhe:
– Viola, eu a salvei de um grande perigo; não
só da desonra, como talvez da morte. O Príncipe de ***, protegido por um
déspota e por uma administração venal, é um homem que está acima da lei. Ele é
capaz de todos os crimes, porém, no meio de suas paixões, tem a prudência que
lhe sugere a sua ambição; se, caindo em suas mãos, você não quiser se conformar
com a sua desonra, nunca mais voltaria a ver a luz do mundo, para descobrir sua
infâmia, e esta ficaria, pois, ignorada. O poder não tem coração para o
arrependimento, mas possui uma mão que pode assassinar. Eu a salvei, Viola.
Perguntar-me-ia talvez, por quê?
Zanoni calou-se por um instante,
e, depois, sorrindo tristemente, prosseguiu:
– Suponho que não me fará a injustiça de
pensar que é tão egoísta o seu libertador, como aquele que a injuriou. Órfã, eu
não lhe falo a linguagem de seus galanteadores; eu tenho compaixão de ti, e não
sou insensível ao afeto. Por que corar? Por que tremer a esta palavra? Neste
momento, enquanto estou falando, leio no seu coração, e não vejo nele nada que
possa causar-lhe vergonha. Não digo que me ama; felizmente, a imaginação pode
interessar-se antes que o coração. Mas foi o meu destino fascinar os seus olhos
e impressionar a sua imaginação. Se for neste momento, seu hóspede, não é senão
para adverti-la contra o que lhe traria só aflição, como já outrora lhe disse
que se dispusesse para sofrer grandes pesares. Glyndon, o jovem inglês, a ama
muito, talvez mais do que eu poderia amá-la; e se é verdade que agora não é
digno de ti sê-lo-á quando a conhecer melhor. Ele pode ser seu esposo, e pode
levá-lo à sua pátria, terra livre e feliz, o país natal de sua mãe. Esquece-me;
aprenda a corresponder ao amor de Glyndon e a merecê-lo, pois, repito-o, com
ele será respeitada e ditosa.
Viola escutava com silenciosa
atenção, com emoção inexprimível, e com as faces inflamadas, esta estranha
recomendação, e quando Zanoni concluiu, a jovem ocultou o rosto entre as mãos e
pôs-se a chorar; e, embora muitas das palavras desse estrangeiro fossem
pronunciadas com o fim de humilhá-la ou irritá-la, produzir indignação ou
excitar pejo, não foram estes os sentimentos que manifestaram suas lágrimas e
agitaram o seu coração. Neste momento, a mulher se tinha convertido em menina;
e assim como uma menina, com todo o seu forte, porém inocente desejo de ser
amada, chora de natural tristeza ao ver o seu afeto não correspondido, - assim,
sem ressentimento e sem sentir-se envergonhada, chorou Viola.
Zanoni contemplava aquela linda
cabeça sacudida pelos soluços, e, depois de uma dolorosa pausa, aproximou-se
mais e disse-lhe, com voz carinhosa e com um leve sorriso:
– Lembre-se, Viola, de quando lhe disse que
devia lutar pela luz, apontando-lhe, como exemplo, aquela frondosa árvore?
Eu não disse que imitasse a
mariposa que, pensando voar às estrelas, cai queimada pela chama da lâmpada.
Venha cá, quero falar-lhe. Este inglês...
Viola deu um passo para trás,
redobrando o seu pranto.
– Este inglês tem, com pequena diferença, a
sua idade, e a sua posição não é muito mais elevada do que o sua. Pode
participar dos seus pensamentos na vida, - e poderá descansar depois, a seu
lado, na mesma tumba! E eu... Porém, este aspecto do futuro não vem agora ao
caso. Consulte o seu coração, e achará que antes que a minha imagem viesse
interpor-se em seu caminho, havia brotado no seu íntimo um puro e sereno afeto
por esse jovem, que é seu igual, e que esse sentimento ia converter-se em amor.
Nunca representou em sua imaginação um lar em que esse jovem fosse seu esposo?
– Nunca! - respondeu Viola, com repentina
energia; -nunca pensei no que diz, mas até sinto que o destino não me reserva
tal coisa.E, erguendo subitamente a cabeça, fixou seus olhos em Zanoni.
– Oh! Quem quer que você seja que quer ler em
minha alma e penetrar no meu porvir, não equivoque sobre o sentimento que...
que...
Viola titubeou um instante, e, em
seguida, baixando a cabeça, acrescentou:
– Que reduziu, como por fascinação, os meus
pensamentos a um só - você. Não pense que eu pudesse alimentar um amor não
procurado e não correspondido. Estrangeiro, o que sinto por você, não é amor.
Por que deveria eu amá-lo? Nunca me falou senão para advertir e admoestar-me, e
agora para magoar- me!
Aqui, Viola calou-se, sentindo
faltar-lhe a voz; as lágrimas tremiam em suas pálpebras; a jovem enxugou-as e
prosseguiu:
– Não, não é amor o que sinto... se o amor é
tal como mo têm pintado, tal como tenho lido que é, e tal como tenho procurado
imitá-lo no teatro. O que sinto é uma espécie de afeto respeitoso e cheio de
temor; parece-me que é uma atração sobrenatural que me impele para sua pessoa,
associando-a com imagens que me encantam e me assustam ao mesmo tempo. Julga
que, se fosse amor, eu poderia agora lhe falar assim? - disse levantando de
repente os seus olhos para buscar o dele, - que os meus olhos se atreveriam a
buscar e encontrar os seus? Estrangeiro, às vezes só almejo vê-lo e ouvi-lo!
Não me fale dos demais. Advirta-me, censure-me, torture o meu coração, rejeite
a gratidão que minha alma lhe oferece, se assim o entender. Porém, não se
apresente sempre diante de mim como um presságio de tristeza, e de desgraça.
Algumas vezes, em meus sonhos, vi-o debaixo de uma forma muito diferente; em
uma forma cheia de glória e de luz; e em seus olhos radiantes lia uma alegria
celestial que não vejo agora. Estrangeiro, você me salvou, e eu vo-lo agradeço
de coração, e o bendigo! Rejeita também esta homenagem?
Ao dizer isso, Viola cruzou os
braços humildemente sobre o peito, e inclinou-se profundamente diante dele.
Este ato de humildade não era
servil nem indigno de uma mulher; não era a humildade de uma apaixonada para
com o seu amante, nem a de uma escrava para com o seu senhor: - era o respeito
de uma criança para com o seu protetor, a humildade de neófita para com o seu
sacerdote.
O olhar de Zanoni era triste e
pensativo. Os seus olhos fixaram-se na jovem com uma estranha expressão de
bondade, de tristeza e de ternura; sem embargo, os seus lábios revelaram certa
austeridade, e a sua voz era fria, quando respondeu:
– Sabe o que pede, Viola? Sabe o perigo que corre;
que corremos, talvez, ambos? Sabe que a minha vida, separada da vida turbulenta
da multidão humana, está reduzida a adorar o Belo, e que desta adoração procuro
banir aquilo que o Belo inspira nos demais? Evito sempre, como uma calamidade,
o que parece sei a felicidade maior dos homens, - o amor das filhas da terra.
Agora posso adverti-la e preservá-la de muitos perigos; teria eu o mesmo poder
se pretender algo mais de ti? Não me compreende, porém, o que lhe digo ainda,
será mais fácil de compreender-se. Quero que apague a minha imagem do seu
coração e que não pense mais em mim, a não ser como num homem que, como diz o
seu Futuro, deve evitar. Se aceitar as homenagens de Glyndon, ele a amará até
que a tumba se cerre sobre ambos. Eu também - acrescentou com emoção - eu
também poderia amá-la!
– Você! - exclamou Viola, com a veemência de
um repentino impulso de alegria e de prazer que não pôde reprimir; porém, um
momento depois, a jovem teria dado todo o mundo se pudesse retirar essa
exclamação.
– Sim, Viola, eu poderia amá-la; porém,
quantos sofrimentos e quantas mudanças trariam este amor! A flor comunica a sua
fragrância à rocha sobre cujo coração cresce; em pouco tempo, a flor morre,
porém a rocha subsiste, - desafiando a neve e a luz do sol no seu cume. Não se
precipite, medite bem. O perigo ainda a rodeia. Por alguns dias, você se verá
livre do seu cruel perseguidor; porém, em breve, virá a hora que só a fuga poderá
salvá-la. Se o inglês a ama de um modo digno, a sua honra lhe será tão cara
como a sua própria; se não existem ainda outras terras onde o amor é mais
verdadeiro e onde a virtude está menos exposta à cobiça e à violência. Adeus!
Do meu próprio destino e do meu futuro não posso prever senão nuvens e sombras.
Entretanto, sei que tornaremos a ver-nos; porém, compreenda antes, que há
terrenos mais suaves e mais vivificantes, doce flor, do que a rocha a que me
referi.
Ao dizer isto, dirigiu-se Zanoni
para onde estava a discreta Gianetta, e tocando-lhe suavemente no braço, disse,
com o alegre acento de um cavalheiro jocoso: - O senhor Glyndon galanteia a sua
ama, e pode vir a ser seu esposo. Eu sei que ama muito a senhorita.
Desengane-a, se manifestar algum capricho por mim; pois eu sou qual ave erradia
que não pára, que não tem pouso certo. E colocando uma bolsinha com dinheiro
nas mãos de Gianetta, deixou a casa da artista.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni