Zanoni
por Edward Bulwer-Lytton
Livro Segundo
Capítulo II
Um Assalto Aguardado
“Prende, giovine audace e
impazíente, L’occasione offerta avidamente”. Gerusal. Liber., cri nto VI, 29
“Toma, jovem audaz e impaciente,
a ocasião que se oferece avidamente”.
Clarêncio Glyndon era um jovem
que possuía uma fortuna não muito avultada, porém suficiente para poder viver
sem embaraços financeiros e com independência. Seus pais haviam falecido e sua
parenta mais próxima era uma irmã, muito mais jovem do que ele, e que estava na
Inglaterra, em casa de uma tia.
Desde muito moço, Glyndon tinha manifestado
grande disposição para a pintura, e mais por entusiasmo do que por necessidade
de exercer uma profissão, determinou dedicar-se a uma carreira, que os artistas
ingleses geralmente começam com ardor idealista e composição histórica, para
concluírem com cálculos avarentos e retratos de Aderman Simpkins.
Glyndon, segundo a opinião de
seus amigos, possuía um talento bastante considerável, mas era um tanto
precipitado e presunçoso. Não gostava de um trabalho contínuo e persistente, e por
ambição procurava antes colher o fruto do que plantar a árvore. Como a maior
parte dos jovens artistas, era amante dos prazeres e divertimentos,
entregando-se, sem a menor reflexão, a qualquer empresa que impressionasse a
sua imaginação ou a exercitasse ou excitasse suas paixões. Tinha viajado pelas
mais célebres cidades da Europa, com o firme propósito e a sincera resolução de
estudar as grandiosas obras primas da sua arte; porém, em todas elas o prazer
muitas vezes o afastava do seu objeto, e as belezas vivas distraiam a sua
apreciação da tela insensível. Valente, amante de aventuras, vaidoso, inquieto,
curioso, encontrava-se sempre envolvido em projetos temerários e perigos
encantadores, sendo uma criatura impulsiva e escrava de sua imaginação.
Era, então, a época em que o
frenético espírito de inovação estava abrindo caminho a esse horrível escárnio
das nobres aspirações humanas, denominado “Revolução Francesa” e do caos,
dentro do qual estavam imergindo as santidades da Venerável Crença do Mundo,
levantavam-se muitas, extravagantes e disformes quimeras. Devo lembrar ao
leitor que, nesse tempo, ao lado do refinado ceticismo e afetada sabedoria,
existiam a maior incredulidade e as mais crassas superstições; - era a época em
que o magnetismo e a magia contavam adeptos entre os discípulos de Diderot;
quando as profecias estavam sobre os lábios de toda a gente; quando o salão de
um filósofo deísta se converteu numa Heracléa, onde a necromancia pretendia
evocar as sombras dos mortos; quando se ridicularizavam a Cruz e a Bíblia, e
acreditava-se mais em Mesmer e Cagliostro.
Naquele nascente Helíaco que
anunciava o novo sol, que devia desvanecer todas as sombras, saíram de suas
tumbas medievais todos os fantasmas que tinham passado diante dos olhos de
Paracelso e Agrippa. Deslumbrado pela aurora da Revolução, Glyndon foi atraído
ainda mais por seus estranhos acompanhamentos; e era natural que como tantos outros,
acolhesse com avidez a ideia de ver realizadas, em pouco tempo, as esperanças
de uma utopia social, que, pelo trilhado e poeirento caminho da ciência,
conduziria à ousada descoberta de algum maravilhoso Eliseu.
Em suas viagens, Glyndon havia
escutado com vivo interesse, senão com implícita crença, tudo quanto lhe
contavam acerca dos milagres de todos os famosos videntes; assim é que a sua
imaginação se achava preparada para receber a impressão que o misterioso Zanoni
produzia sobre ele, desde a primeira vista.
Podia existir também outra causa
para esta disposição à credulidade. Um dos antepassados de Glyndon, da família
de sua mãe, tinha alcançado grande reputação como filósofo e alquimista.
Contavam-se estranhas histórias a respeito desse homem. Dizia-se que havia
vivido muito, mais tempo do que vive o comum dos homens, conservando sempre a
aparência da idade viril. Supunha-se que falecera de pesar por causa da morte
repentina de um neto seu, que era a única criatura pela qual, em toda a sua
sida, tinha manifestado amor. As obras deste filósofo, se bem que raras,
existiam ainda e se achavam na biblioteca da casa de Glyndon. O seu platônico
misticismo, as suas atrevidas asserções, as altas promessas que podiam
descobrir-se atrás da sua fraseologia alegórica e figurada, impressionaram,
desde os seus anos de rapaz, a imaginação de Clarêncio Glyndon. Seus pais, sem
atender às consequências que o encorajamento das ideias podia acarretar que a
razão e a idade pareciam suficientes para dissipar ou repelir, tinham por
costume, nos longos serões do inverno, falar da história tradicional desse
distinto antepassado.
E Clarêncio estremecia de prazer,
mesclado de terror, quando sua mãe dizia que descobria uma notável semelhança
entre as feições deste seu filho e as do velho retrato do alquimista, que se
via pendurado na parede da sala, entre outros quadros familiares, e era o orgulho
da casa, como também a admiração de seus amigos. A criança, na verdade, é mais
frequentemente do que pensamos “o pai do homem”.
Eu disse que Glyndon amava os
prazeres. Fácil de impressionar-se com coisas alegres, como sempre se dá com os
homens de gênio, a sua descuidada vida, antes de começar a carreira trabalhista
de verdadeiro artista, o havia levado a voar de uma flor a outra. Ele já tinha desfrutado
quase ao ponto da saciedade, todos os alegres divertimentos que oferecia
Nápoles, até quando se enamorou de Viola Pisani. Mas o seu amor, do mesmo modo
que a sua ambição: eram vagos e mutáveis. Não satisfazia plenamente o seu
coração, deixava antes um vazio em sua existência; não porque carecesse de
fortes e nobres paixões, mas porque a sua mente não estava ainda
suficientemente preparada nem bastante assentada para o desenvolvimento dessas
paixões que nele brotavam.
Assim como há uma estação para a
flor, e outra para o fruto, igualmente, enquanto a flor da imaginação não
começa a murchar, não amadurece o coração para produzir as paixões que as
flores precedem e predizem. Alegre sempre quer estivesse a sós com seus
quadros, quer no meio dos joviais amigos, Glyndon não havia conhecido ainda
bastante a tristeza, para poder amar profundamente. Pois, para que o homem
possa compreender todo o valor das coisas grandes da vida, é preciso que tenha
sofrido desenganos nas causas pequenas. Só os superficiais sensualistas da
França podem dizer, em sua “linguagem de salões”, que o amor é uma loucura; o
amor, melhor compreendido, é a sabedoria. Por outra parte, Glyndon pertencia
demasiado ao mundo, e a sua ambição artística tinha necessidade dos aplausos e
elogios dessa miserável minoria da superfície, da qual chamamos de público.
Como todos os que Costumam
enganar, o jovem pintor inglês temia sempre ser enganado; por isso, desconfiava
da doce inocência de Viola. Não se aventurava a propor seriamente o casamento a
uma atriz italiana; contudo, a modesta dignidade da jovem e alguns bons e
generosos sentimentos que Glyndon possuía, detinham-no até então, de qualquer
plano mais mundano e menos honesto.
Por isso, a familiaridade que
existia entre os dois, oferecia mais o caráter de uma mútua e atenta simpatia,
do que o de uma paixão. Glyndon via Viola no teatro; falava-lhe entre bastidores,
enchia sua carteira de inumeráveis esboços de sua beleza, que o encantava como
artista e como amante; e passava os dias flutuando entre a dúvida e a
irresolução entre a afeição e a desconfiança; esta última, porém, prevalecia
sempre, devido aos constantes conselhos e admoestações de Mervale, homem de
sóbria reflexão, na opinião do seu camarada.
De tarde, no dia seguinte ao que
havia proporcionado a Glyndon o conhecimento de Zanoni, passeava á cavalo pela
praia de Nápoles, do outro lado da Caverna de Posillipo. O sol começava a
declinar, e o mar risonho enviava à terra uma fresca e voluptuosa brisa. Ao
longe, o artista viu um homem, inclinado sobre um fragmento de pedra, à beira
da estrada; aproximou-se e reconheceu o Senhor Zanoni.
O inglês saudou-o cortesmente, e
perguntou-lhe sorrindo.- Descobriu alguma antiguidade? São tão abundantes aqui,
como os seixos deste caminho.
– Não, - respondeu Zanoni; - não é mais do
que uma dessas antiguidades que datam, seguramente, do princípio do mundo, porém
que a Natureza dissolve e renova eternamente.
E assim falando, mostrou Zanoni
ao jovem uma “ervazinha” de um azul
pálido, e colocou-a depois cuidadosamente no seu peito.
– É herborizador? - perguntou Glyndon. – Sim, - respondeu
Zanoni.- Ouvi dizer que é um estudo interessantíssimo.- Certamente, para as
pessoas que o compreendem.- Será um conhecimento muito difícil de adquirir-se?-
Difícil! Os conhecimentos de maior profundidade, inclusive os das artes, estão,
pode-se dizer, perdidos para a moderna filosofia que é uma vulgaridade
superficial. Julga que carecem de fundamento aquelas tradições que nos chegaram
de uma forma confusa e desfigurada através dos séculos?
Lembre-se de que as conchas que
hoje achamos no cume das montanhas, nos informam que ali havia sido mar! Em que
consistia a magia da antiga Cólchida, senão no minucioso estudo da Natureza em
seus mais ocultos trabalhos? Que é a fábula de Medeia, senão uma prova do poder
que podem dar a semente e a folha? O mais portentoso de todos os Sacerdócios, as
misteriosas irmandades de Cuth, a respeito de cujos ensinamentos a ciência
mesma se perde no meio dos labirintos das lendas, procuravam nas mais
insignificantes ervas, o que, talvez, os sábios de Babilônia buscavam em vão
entre as mais sublimes estrelas.
A tradição nos diz que existia,
nos tempos antigos, uma nação que podia matar seus inimigos, a grande
distância, sem necessidade de mover-se, e sem empregar armas. A erva que os
seus pés pisam, tem, talvez, um poder mais mortífero do que aquele que os seus
engenheiros podem dar aos seus mais destrutivos instrumentos de guerra. Pode-se
dizer, não foi a estas praias italianas, onde existiu o antigo promontório de
Circe, aonde vinham os sábios dos países mais remotos do Oriente, buscar
plantas e ingredientes, que os nossos farmacêuticos de mostrador desprezariam
como se fossem ervas inúteis?
Os primeiros herborizadores, os
maiores químicos do mundo, pertenciam à tribo que os antigos chamavam
reverentemente pelo nome de Titans.
Recordo-me que, em outro tempo, nas margens do Ebro, no reinado de... Porém,
esta conversação não serve, - disse Zanoni, interrompendo-se repentinamente e
com um sorriso frio, - senão para gastar inutilmente o seu tempo e o meu.
Calou-se por alguns instantes e,
depois, tendo olhado fixamente o pintor, continuou:
– Julga meu amigo, que uma vaga curiosidade
pode substituir o trabalho assíduo? Estou lendo no seu coração. O senhor deseja
conhecer-me, e não a esta “ervazinha”; porém; infelizmente, o seu desejo não
pode ser satisfeito.
– Vejo que não possui a atenciosa amabilidade
de seus compatriotas, - respondeu Glyndon, algum tanto desconcertado. - Suponho
que eu desejasse cultivar a sua amizade, porque repeliria as minhas
insinuações?
– Eu não repilo as insinuações de ninguém, -
retrucou Zanoni; - eu hei de conhecer aqueles que querem entrar em relações
comigo; a mim, porém, eles nunca poderão compreender. Se o senhor deseja a
minha amizade, eu lha ofereço; devo, porém, advertir-lhe que melhor será se me
evitar.
– E por que, senhor? É, assim, tão perigoso?
– Nesta terra, há homens que, sem o querer,
estão destinados a serem perigosos para outros. Se eu tivesse que lhe predizer
o seu futuro pelos vãos cálculos dos astrólogos, dir-lhe-ia, em sua linguagem
que o meu planeta se colocou em sua casa da vida. Não cruze o meu caminho, se
pode evitá-lo. Advirto- lhe pela primeira e última vez.
– Diz que despreza os astrólogos e, contudo,
se expressa tão misteriosamente como eles. Eu nem jogo nem pelejo; porque,
pois, deveria temer?
– Faça como lhe aprouver; por minha parte,
tenho dito.
– Permita-me que lhe fale com franqueza; sua
conversação de ontem à noite interessou-me muito, e, ao mesmo tempo, deixou-me
perplexo.
– Eu o sei; as mentalidades como a sua,
sentem atração pelo que é misterioso.
Estas palavras molestaram
Glyndon, apesar de não terem sido pronunciadas em tom de desprezo. - Vejo que
não me considera digno de sua amizade, - disse o jovem. Paciência! Adeus!
Zanoni correspondeu com frieza à
saudação; e, enquanto o inglês continuou o seu passeio, o botânico voltou à sua
interrompida ocupação.
Naquela noite, segundo o seu
costume, Glyndon foi ao teatro, posto de trás dos bastidores, observava Viola,
que desempenhava naquele momento um dos seus mais importantes papéis. Os
aplausos ressoavam por todo o teatro. Glyndon estava embriagado de paixão e de
orgulho.
– Esta encantadora criatura, pensava ele,
pode ainda ser minha.
Enquanto estava absorto nesta
deliciosa meditação, sentiu um leve toque
no ombro; voltou-se e viu Zanoni.
– Ameaça-lhe um perigo, - disse este. Convém
que não vá à casa esta noite; ou, se for, não deve ir só.
Antes que Glyndon tornasse a si
de sua surpresa, Zanoni havia desaparecido; e quando o inglês tornou a vê-lo,
estava no camarote de um dos nobres napolitanos, onde Glyndon não pôde
segui-lo.
Viola acabava de retirar-se da
cena, e Glyndon aproximou-se dela, com uma apaixonada galanteria que até ali
não havia empregado.
Porém, Viola, ao contrário da sua
habitual afabilidade, não fez o menor caso das palavras do seu apaixonado; e,
levando a parte Gioneta, que não a abandonava nem um instante enquanto
permanecia no teatro, disse-lhe em voz baixa, afetando grande interesse:
– Oh, Gianetta! Ele está aqui outra vez! O
estrangeiro de quem já tinha falado! E ele foi o único, em todo o teatro, que
não me aplaudia!
– Qual é, minha querida? - perguntou a anciã,
com voz terna. - Há de ser um estúpido, indigno de que pense nele.
A atriz levou Gianetta mais adiante
e indicou-lhe um homem que estava num dos camarotes mais próximos, e que se
distinguia de todos os demais, tanto pela simplicidade do seu traje, como por
suas feições extraordinariamente belas.
– Indigno de que eu pense nele, Gianetta? -
repetiu Viola.
– Indigno de que eu pense nele? Ah! Para não
pensar nele seria necessário que eu não pensasse mais absolutamente.
O contra-regra chamou a senhorita
Pisani.
– Procura saber o seu nome, Gianetta, -
ordenou Viola, dirigindo-se lentamente para a cena, e passando pelo lado de
Glyndon, que a olhou com tristeza e como com repreensão.
A cena em que a atriz ia
apresentar-se agora era o desenlace da catástrofe, onde era necessário empregar
todos os recursos da sua arte e da sua voz. O auditório escutava com profunda
admiração todas as palavras da atriz; mas os olhos desta buscavam somente os de
um espectador frio e imóvel; ela parecia como inspirada. Zanoni escutava, e
observava-a com atenção, mas dos seus lábios não saiu nenhuma palavra de
aprovação; e nem a menor emoção alterou a expressão do seu semblante frio e
meio desdenhoso.
Viola, que desempenhava o papel
de uma pessoa que ama sem ser correspondida, encarnava, sentia, como nunca, o
papel que representava. As suas lágrimas eram verdadeiras; a sua paixão era a
paixão natural: quase causava pena olhá-la. Quando terminou o ato, as forças da
atriz haviam-se esgotado, e foi levada do cenário, desmaiada, no meio de uma
tempestade de aplausos e de entusiásticas exclamações de admiração. O auditório
se pôs de pé, agitavam-se centenas de lenços, e, enquanto alguns espectadores arrojavam
ramalhetes de flores à cena, outros enxugavam os olhos cheios de lágrimas; as
senhoras não puderam reprimir o pranto por muito tempo.
– Pelo céu! - exclamou um fidalgo napolitano.
- Esta jovem ateou no meu coração uma paixão que me devora. Nesta noite... Sim,
ainda nesta noite há de ser minha! Está tudo arranjado, Marcari?
– Tudo, senhor. E esse jovem inglês? - esse
imbecil e presunçoso bárbaro! Como já disse, deve pagar sua loucura com sangue.
Não quero ter nenhum rival.
– Mas, é um inglês! E, quando desaparece um
inglês fazem-se muitas diligências para achar o seu corpo.
– Estúpido! Não é bastante profundo o mar, ou
a terra bastante reservada, para ocultar um cadáver? Os nossos sabem ser
silenciosos como a tumba; e, quanto a mim... Quem se atreveria a suspeitar ou
acusar o Príncipe de * * *? Quero que, nesta noite, seja feito o “serviço”. Eu
o deixo ao seu cuidado. Os ladrões o terão assassinado, entende? Abundam tanto
neste país; para que isto pareça mais certo, tire-lhe tudo quanto levar
consigo. Vai com três homens; os outros ficarão em minha escolta.
Mascari encolheu os ombros e
retirou-se, saudando servilmente.
As ruas de Nápoles não eram,
naqueles tempos, tão seguras como o são hoje, e as carruagens eram menos caras
e mais necessárias. O veículo que a atriz costumava tomar para regressar para
casa havia desaparecido. Gianetta, demasiada acautelada para com a beleza de
sua ama, e temendo o enxame de admiradores que a importunariam, alarmou-se à
ideia de terem que se retirar a pé, e comunicou esta inconveniência a Glyndon,
este, então, pediu a Viola, que recuperava pouco a pouco, as forças, que
aceitasse a sua carruagem. Antes daquela noite, talvez a atriz tivesse aceitado
este pequeno obséquio; agora, porém, por outro motivo, havia-o recusado.
Glyndon, sentindo-se ofendido,
retirou-se com mau humor, quando Gianetta o deteve, dizendo em tom lisonjeiro:
– Fique, senhor; a senhorita não está bem; -
não se aborreça com ela; eu farei com que ela aceite a sua oferta.
Glyndon ficou, e depois de alguns
instantes de discussão entre Gianetta e Viola, esta concluiu por aceitar a
oferta do jovem. A anciã e a atriz subiram na carruagem, deixando Glyndon à
porta do teatro para que regressasse, a pé, à sua casa.
Naquele instante, apresentou-se,
de repente, à mente do inglês a misteriosa advertência de Zanoni, que ele havia
esquecido nos momentos do seu ressentimento contra Viola. Agora, julgando ser
prudente precaver-se de um perigo anunciado por lábios tão misteriosos, olhou
em redor de si para ver se descobriria algum conhecido. O público saía do
teatro, aos encontrões, e o jovem, em toda aquela compacta multidão, não pôde
distinguir nem um semblante amigo. Enquanto permanecia no mesmo sítio, sem
saber que fazer, ouviu a voz de Mervale, que o chamava, e observou com prazer
que o seu amigo abria caminho por entre o povo, para chegar até ele.
– Eu lhe reservei um lugar na carruagem do
conde Cetoxa,- disse Mervale. – Venha comigo, o conde está à nossa espera.
– Como
é gentil! Como soube que eu me encontrava aqui?
– Encontrei Zanoni no corredor, - respondeu
Mervale, - e ele me disse: “O seu amigo está fora da porta do teatro; não deixe
que regresse à sua casa a pé, esta noite; as ruas de Nápoles nem sempre
oferecem segurança”. Imediatamente me lembrei de que alguns dos “bravos”
calabreses haviam tido bastante que fazer nas ruas da cidade, nas últimas
semanas...
E encontrando, logo depois
Cetoxa, concluiu: Mas, olhe, aqui está ele.
A chegada do conde interrompeu a
conversação. Enquanto Glyndon entrava para a carruagem, viu, pela janela,
quatro homens que estavam na calçada, e que pareciam observá-lo com atenção.
– Cáspita! Exclamou um deles. – Aquele é o inglês!
Esta exclamação chegou aos
ouvidos de Glyndon no momento em que a carruagem partia. Chegou em casa, sem
ter sofrido acidente algum.
A familiar e cordial intimidade
que existe sempre na Itália entre a aia e a criança por ela criada, e que
Shakespeare nos apresentou, sem exagero algum, em “Romeu e Julieta”, não podia
deixar de ser mais estreita do que usualmente, numa situação tão desamparada
como aquela em que se encontrava a atriz órfã. Gianetta tinha grande
experiência em tudo quanto se referia às fraquezas do coração; e quando, três
noites antes, ao voltar do teatro, Viola começara a chorar amargamente, a aia
conseguira obter dela a confissão de que tornara a encontrar um homem, que não
tinha visto durante dois anos, mas a quem nunca tinha esquecido, e que este
homem, ai! Não havia feito a mais leve demonstração de alegria ao vê-la.
Gianetta era incapaz de compreender
as vagas e inocentes emoções que envolviam esta tristeza; mas as reduziam todas
com sua rude compreensão, a um só sentimento: o amor. E, neste assunto, sabia
prodigalizar consolo e demonstrar simpatia. Ela nunca conseguira saber muitas
coisas que se abrigavam no coração de Viola, - porque este coração não possuía
palavras para revelar todos os seus segredos; porém, por aquela pequena
confiança que a aia obtivera, estava pronta a demonstrar a sua compaixão, não
reprovando a jovem, mas pondo o seu resumido talento ao seu serviço.
– Descobriu quem é ele? - perguntou Viola, ao
ver-se, agora, só com Gianetta na carruagem.- Sim, é o célebre senhor Zanoni,
que tem transtornado o juízo a todas as grandes senhoras de Nápoles.
Diz-se que é tão rico... Oh! Muito
mais rico do que qualquer um dos ingleses! Porém, não tanto como o senhor
Glyndon.
– Cale-se - interrompeu a jovem atriz - Zanoni -
Não me fale mais do inglês!
A carruagem estava, agora, na
parte mais afastada e solitária da cidade, onde estava situada, a casa de
Viola. De repente, parou.
Gianetta, um tanto alarmada,
abriu a janela e olhou para fora. À pálida luz da lua, viu que o cocheiro,
arrancado violentamente do seu lugar, havia sido subjugado por dois homens; a
portinhola foi aberta violentamente e, diante da atriz e sua aia, apareceu um
homem de elevada estatura, mascarado e envolto numa capa.
– Não tenha medo, formosa Pisani, - disse o
homem, com amabilidade; - ninguém lhe fará mal algum.
E agarrando a bela triz pela
cintura, pretendeu tirá-la da carruagem. Gianetta, porém, não ficou inativa;
repelindo o agressor com uma força que o deixou admirado, exprobrou a sua ação,
com a violência do terror.
O mascarado deu um salto, a fim
de reparar a desordem da sua capa.
– “Corpo di Barco!” - exclamou rindo; - a
jovem tem uma terrível defensora... Luigi! Giovani! Agarrem essa velha bruxa.
– Depressa! Por que esperam?
O mascarado retirou-se da
portinhola, aparecendo nela, em seguida, outro homem, também disfarçado e ainda
mais alto do que o primeiro.
– Tranquilize-se, Viola Pisani, - disse, em
voz baixa. – Eu a
porei em segurança. E, levantando a sua máscara, deixou ver as nobres feições
do próprio Zanoni.- Tranquilize-se; não diga nada, - acrescentou; - eu a
salvarei. E retirou-se, deixando Viola imersa na surpresa, agitação e prazer.
Havia ali, entre todos, nove
homens mascarados: dois subjugavam o cocheiro; um segurava pelos freios os
cavalos da carruagem; o quarto cuidava dos cavalos ricamente ajaezados do
agressor; três outros (além de Zanoni e o que se havia aproximado primeiramente
de Viola) permaneciam um pouco afastados, ao pé de uma carruagem encostada a um
lado do caminho. Zanoni falou com os três últimos; e, depois de ter-lhes
apontado o primeiro mascarado, que era de fato, o Príncipe de***, dirigiram-se
a este, que ficou surpreendido ao ver que o agarravam por detrás.
– Traição! - exclamou ele. - Fui traído pela
minha própria gente! Que significa?
– Ponham-no dentro da sua própria carruagem,
- disse Zanoni, calmamente. - Se ele resistir, que recaia sobre ele a culpa de
sua morte.
Zanoni aproximou-se dos que
seguravam o cocheiro.
– Estão em minoria, e logrados, - disse-lhes;
- podem ir reunir-se ao seu amo. Os senhores são três homens, - nós somos seis,
e estamos armados dos pés a cabeça. Agradeçam-nos por lhes pouparmos a vida.
Retirem-se!
Os homens desapareceram
humilhados. O cocheiro voltou para o seu posto.
– Corte as correias da carruagem daquela
gente e as rédeas dos seus cavalos, - ordenou Zanoni, subindo para o carro que
levava Viola, o qual partiu célere, deixando o vencido raptor num estado de
raiva e estupefação, impossível de descrever. Permita-me que lhe explique este
mistério, Jovem - disse Zanoni.
– Eu descobri, não importa como, a
conspiração tramada contra você, e frustrei-a da seguinte maneira: O cabeça
principal desta trama é um fidalgo que a vem perseguindo há muito tempo em vão.
Ele e dois criados seus a espiavam desde que você entrou no teatro, ao passo
que outros seis aguardavam no lugar onde o seu coche foi atacado; eu e cinco
criados meus ocupamos o seu lugar, e foi assim que o fidalgo nos tomou por seus
auxiliares. Eu tinha, previamente, ido ao sitio onde aqueles homens esperavam,
e lhes disse que o seu amo não precisava de seus serviços esta noite. Eles acreditaram
no que eu disse e se dispersaram. Depois, fui buscar o meu grupo, que agora
deixei atrás. E o resto você sabe. E agora estamos à porta da sua casa.
(continua)
Os capítulos deste romance fazem parte da coleção do G +: Zanoni