O Último Presente
por
Anneliese Wisbeck
Cuidadosamente, as três fadas trataram e protegeram a jovem alma humana.
Agora ela se achava à frente delas e queria descer para a Terra. Como cada um
de seus protegidos, também essa criatura fora ricamente dotada com dádivas que
a pudessem auxiliar em sua existência terrena, reencarnação, porém, ela era
algo teimosa e impetuosa, por isso elas a mantinham ainda por um bom tempo sob
seus cuidados. Unicamente o anseio dessa alma por atividade tornara-se tão
poderoso que não mais se podia negar seu pedido.
“Eu gostaria de realizar na Terra o que fizeram para nós, almas humanas,
aqui”, falou ela para as fadas, “e gostaria de levar algo para a Terra da
beleza radiante desse jardim, no qual cresci.”
“Se queres imitar o que fazemos aqui”, disse a primeira fada, “então tens
de amar as pessoas, auxiliar e servi-las. Reflita, porém, que lá em baixo na
Terra nem tudo é assim como nas regiões luminosas, que até então foram proteção
e pátria para ti. As pessoas se preocupam e causam desgostos para si, adquirem
sofrimento e atraem a miséria. Muita coisa ser-te-á incompreensível. Contudo,
ao me despedir, quero te entregar um presente que te auxiliará a suportar o
fardo que queres tomar sobre ti: a humildade, a coragem para servir dar-te-á a
força e fortalecer-te-á teu querer. O amor para servir que te presenteio
dir-te-á como poderás auxiliar os seres humanos.”
“Queres levar algo da beleza desse jardim para a Terra”, disse a segunda
fada, “então auxilia as pessoas no seu aspirar e a proporcionar forma terrena à
beleza. Sirva a arte, pois ela é capaz de um pressentimento do brilho da
pureza, no qual temos permissão de viver aqui. Leve como dádiva minha o amor à
música. Ela poderá abrir os corações das pessoas quando contares a elas da
beleza da pátria celestial e quando as palavras não forem mais capazes de
expressar o que desejares dizer.”
“Meu presente para ti é a saudade”, disse a terceira fada, “pois ela
poderá te conduzir e guiar, quando estiveres cansada, quando teus pés não mais
encontrar o caminho de volta e quando não souberes mais, com qual finalidade
saístes para esta viagem. Conserva a fagulha de luz da saudade, pois ela
lembrar-te-á disso e advertir-te-á do que prometestes realizar na Terra.”
A alma inclinou a cabeça agradecida e prometeu guardar bem os presentes e
utilizá-los corretamente. Depois deixou os jardins luminosos, a fim de
peregrinar para a Terra.
Lucina circulou com cuidado a coluna para que saísse da luz da lua e
ficasse à sombra. Ela gostaria de ter refrescado sua testa na água do poço
quando seu pai pisou no átrio com o tribuno Livius. Não teria hesitado em
revelar sua presença, se Livius não tivesse pronunciado o nome do jovem Flavius
naquele momento. Ele relatava que suspeitava que Flavius teria visitado as
reuniões dos cristãos. Supunha-se até que tinha se tornado infiel à velha
crença dos deuses e ainda orasse apenas ao Deus cristão. Como, porém, ele era
um protegido especial do imperador, objetivava-se enviá-lo primeiramente para
bem longe, para uma província romana. Lá, assim pensava Livius, sob sua
fiscalização severa, o jovem guerreiro haveria de retornar novamente para o
caminho certo. Lucina teria que esperar ainda por mais um ou dois anos para o
casamento; ele enviaria Flavius imediatamente de volta para casa, tão logo esse
tivesse mudado de ideia.
Lucina ouviu isso cheia de medo: isso significava separar-se de Flavius,
uma separação de muitos meses. Porque ela teria lutado por ele tanto tempo,
para que lhe fosse tirado dessa maneira? Livius leva-lo-ia realmente junto após
ter-lhe auxiliado recentemente a vencer a oposição dos pais que se posicionaram
contrários à união? Será que ele ainda a ajudaria novamente se ela o pedisse?
Ele teria que fazer valer sua influência junto ao imperador – Flavius teria que
ficar com ela em Roma, pois ela não queria mais ficar sem ele.
No dia seguinte, Lucina foi até seu tio e lhe contou como fora testemunha
clandestina da conversa entre ele e seu pai, e que agora se preocupava por
Flavius. Quando falou da suspeita, a qual era o motivo para a deportação de
Flavius, o rosto de Livius ficou sério e ele perguntou a Lucina se realmente
era apenas o amor o motivo para o seu pedido. Lucina olhou no seu semblante,
atrás de cujas pálpebras ela percebia o olhar espreitado da desconfiança: ela
sabia que da sua resposta dependia a vida de Flavius e seu próprio destino.
Não, chacoalhou ela a cabeça, nada mais do que apenas o amor dela movimentara-a
a pedir por Flavius. Livius hesitou por um instante, depois lhe esclareceu que
havia uma possibilidade para contornar a ordem do imperador; ele queria ainda
de bom grado, mais uma vez, auxiliá-la, sob uma condição: se ela estivesse
assim tão estreitamente ligada a Flavius, não lhe seria difícil saber se ele
realmente convertera-se ao cristianismo e saber quando e onde ele ia para as
reuniões. Não haveria de suceder nada a Flavius e a nenhuma daquelas pessoas
aconteceria algo; haveria apenas o interesse em observar os cristãos, e ela
somente precisaria indicar o lugar e a hora das reuniões.
Lucina estremecera de medo. Há apenas
alguns dias Flavius confessara-lhe que pertencia a esses cristãos. Desejava que
a vida de ambos fosse conduzida conforme a nova crença e lhe pediu para que ela
fosse futuramente com ele às reuniões, a fim de examinar se também poderia
aceitar os ensinamentos de Cristo.
Ela pressentia o perigo que ambos se
achavam, porém, o pensamento em perder Flavius lhe era insuportável. Não
conhecia os cristãos e nem a sua crença; de que lhe valeriam, portanto, se
perdesse Flavius? Nos momentos seguintes Livius recebeu as notícias que exigira
de Lucina e ela, feliz por não ter sido separada de Flavius, acompanhou-o para
as reuniões clandestinas. Porém os cristãos permaneceram-lhe indiferentes, ela
ia com Flavius só porque não queria deixá-lo ir sozinho.
Também não havia nada de inquietante
para ser reconhecido, até que um dia, após uma cerimônia, alguns dos participantes
desapareceram. Na devoção seguinte em que se reuniram, alguns dos cristãos
também foram capturados na escuridão da noite pelos agentes policiais. Lucina
ficara fora de si pelo ocorrido, pois pressentia que esses incidentes eram as
consequências dos seus relatos ao tio. Mas o medo fê-la calar. Apenas suplicou
a Flavius para não mais comparecer às próximas comemorações; ela não acreditava
mais na promessa do tio. Contudo, Flavius não mudava de opinião; ele apenas
pediu a ela para que permanecesse distante dos encontros secretos por algum
tempo. Lucina prometeu-o, todavia, ao se aproximar a hora da reunião dos
cristãos também se infiltrou clandestinamente no local. Ela queria estar com
Flavius e tudo o mais lhe era indiferente.
Desta vez, os participantes foram
surpreendidos pelos agentes policiais ainda no local da reunião e conduzidos ao
calabouço. O imperador queria que fossem sacrificados no próximo espetáculo do
circo; queria com isso reconciliar os deuses que estavam zangados por causa das
descrenças dos cristãos. Livius não conseguiu libertar Lucina e Flavius e
quando o imperador tomou conhecimento que ambos estavam entre os prisioneiros,
deu a ordem para amarrá-los juntos em um pelourinho. Ele queria
proporcionar-lhes o prazer de morrerem juntos.
A alma achava-se novamente diante das
três fadas e pediu para entrar. Queria retornar de novo aos jardins luminosos.
“Perdestes meu presente”, falou a
primeira fada, “ao invés de servires aos seres humanos e auxiliá-los na
aflição, traíste-os para satisfazer teus próprios desejos; querias unicamente
para ti amor e a felicidade. Por isso estendestes a mão e não tomastes em
consideração o bem do teu próximo; ao lado de teu marido poderias tê-lo
auxiliado e protegido. Não posso te deixar entrar, pois perdestes a humildade
no amor próprio, trate de a reencontrares novamente.”
“Tu tens de retornar à Terra e procurar
pelo que foi perdido”, disse a segunda fada, “mas ainda possuis meu presente.
Conserva-te na música; ela atenuar-te-á e tranqüilizar-te-á, consolar-te-á e
conduzir-te-á ao teu caminho. A música poderá abrir novamente para ti os
portais para um mundo melhor.”
Com os olhos radiantes a cantora
encontrava-se diante do maestro. Ele interrompera novamente o ensaio para
corrigi-la. Desta vez ele queria que a madame pudesse cantar um pouco mais
devagar – allegro, assai, ma non troppo – assim como a partitura o exigia.
Porém, madame Antoinette não queria –
nessa altura ela não poderia manter sua voz se cantasse mais devagar. Com aguda
precisão ela esclareceu ao maestro que não estava curiosa sobre sua opinião. Se
ela cantasse o Laval desse jeito, teria que ser tocado no lugar o Vivace e,
basta com isso!
O que, então, ainda irritava Antoinette
era difícil de dizer. Eram as expressões dos músicos que seguiam curiosamente o
desfecho da discussão ou era a calma com que Armand Lapine ouvia suas palavras.
Ela falava cada vez mais calorosamente e mais severas tornaram-se suas
palavras; tremendo de ira atirou diante dos pés de Armand a partitura. Depois
pediu ao seu parceiro, o cantor Marcel Leseul, para acompanhá-la até seu carro,
por hoje já haver sido feito o suficiente.
Marcel que já há longo tempo esperava
por essa tal oportunidade, aproveitou-a com prazer e, no decorrer do café da
manhã que ambos tomaram juntos, lisonjeou-a com muitas palavras e procurou
convencê-la de que uma mulher, com seus talentos, possuía totalmente outras
perspectivas além de subordinar-se à ditadura do insignificante Lapine.
Na sua teimosia perante Armand, de bom
grado Antoinette deixou-se influenciar, pois ser rica parecia-lhe o ápice de
tudo quanto desejava. A criança do administrador do castelo e a criada de
quarto conheciam a humilhação de uma existência doméstica proveniente da
própria vivência. Possuir um castelo próprio e dominá-lo era seu único desejo,
para cuja realização Marcel lhe indicara então o caminho. Armand? Ele a
esqueceria rapidamente, pois frequentemente tinha outra coisa em mente do que
castigá-la por sua teimosia no canto.
Os poucos escrúpulos que Antoinette, de
início, ainda a deixaram hesitar Marcel soube dissipar rapidamente. Algumas
semanas mais tarde ela foi embora com ele e iniciou a vida que sonhara. Viajara
com seu parceiro de um país para o outro, corria com ele de um teatro a outro.
Dinheiro, êxito, aplausos ruidosos, uma publicação que jazia aos seus pés
aguardavam-na sempre aonde ela se apresentava. Não lhe importava se aqui e ali
os amigos a advertiam para cuidar da saúde e se dar um pouco mais de tempo. Ela
não tinha tempo, tinha que ter primeiro o castelo.
Numa representação na Inglaterra
aconteceu então: o clima brusco e a neblina, ou era o aquecimento por causa do
esforço de um grande concerto, Antoinette resfriou-se. Primeiramente parecia
ser apenas uma leve indisposição, contudo, seu estado piorou depois que, apesar
dos médicos terem desaconselhado, dera uma tarde de ópera com Marcel. Semanas
inteiras jazia ela no seu hotel com febre e incapaz de conversar. Quando quis
retomar novamente seus exercícios diários de canto, descobriu com horror, que
sua voz tornara-se áspera e rouca. Viajou para cá e para lá, fora inutilmente
ao sul e ao clima ameno das florestas alemãs. Seu límpido timbre não retornou,
perdera sua voz.
Antoinette retornou à França solitária e
desamparada, pois Marcel já partira de novo com uma nova parceira pelo mundo.
Um castelo ela não mais pode comprar, pois a doença prolongada e os
medicamentos caros consumiram uma boa parte dos seus recursos. E assim ela
adquiriu uma pequena casa de aluguel na cidade e recebia uma parte da sua
manutenção dando aulas de piano para filhas de pessoas ricas que já conhecia de
tempos passados. Através das relações com esse círculo de pessoas ela
envolveu-se, mais tarde, nas desordens da revolução e foi parar na prisão, a
qual apenas deixou para acabar numa exposição pela sua execução junto de
condenados.
Com o semblante sério as três fadas
olharam para a alma que novamente se encontrava à frente delas e pedia por
entrada nos jardins luminosos.
“Não reencontrastes a humildade”, falou
a primeira, “perdeste-a com a cobiça e com a ostentação.”
“Degradastes a arte a ofício”, falou a
segunda fada, “serviste-te dela apenas para obter êxito na tua ambição e na tua
cobiça.” Agora também não possuís mais o amor pela música, pois mesmo lá onde a
arte serve para a alegria e a recuperação de pessoas cansadas, ela tem de se
executada com o coração, se deva permanecer pura e radiante e servir à beleza.
“Também desta vez não podes mais encontrar sua entrada, mas tendes de retornar
novamente a Terra para procurar o que fora perdido e compensar o errado.”
“A partir de então não te será fácil”,
disse a terceira fada, “pois no solo do egoísmo e do amor próprio não cresce
nenhuma humildade, no terreno pedregoso de um coração endurecido a rosa do amor
não pode florescer e, quem atraiçoa a arte, esse não deve mais ter esperanças
de seu auxílio. Agora terás de servir às pessoas com o trabalho de tuas
próprias mãos. Porém, ainda tendes a saudade, a fagulha luminosa salvadora. Se
te deixares guiar por ela, poderás encontrar mais uma vez o caminho que te
conduz de volta. Apenas reflita no futuro sobre o que fizeres. A saudade é o
último presente que te resta.”
A alma caminhou triste para novamente retornar ao
nível material mundano.
Cautelosamente a enfermeira Martha fechou a porta. Finalmente o paciente
dormira e ela pode ir ao seu quarto.
Já era tarde quando fora à janela haurir mais uma vez ar fresco. Um sedoso
calor e o ar quente montanhoso fluíram no quarto, a sólida montanha erguia-se
sombria e clara perante o céu noturno. A grande montanha propagava-se às
proximidades da sua janela e a neve no carro brilhava quase que como prata. Um
ano já se passara novamente?
Havia também neve quando chegou ali no sanatório. Meses e meses ela
prestou serviço no Lazarrete, dias e noites ela cuidava de feridos, até que seu
corpo estafado pelas fadigas não resistiu mais – ela jazia doente com uma grave
infecção. Depois, após seu restabelecimento, transferira-se ela para um dos
mais bonitos arredores da Alemanha e quando a guerra finalizou, ela encontrara
ainda um rico campo de atuação no trato de doentes.
Os feridos não eram mais casos clínicos. Eram amputados que tinham que se
adaptar às suas condições, cegos que procuravam lentamente entrar de novo em
contato com o mundo e pacientes que ainda lutavam sob o choque das
consequências que vivenciaram no fogo da guerra – ela os auxiliava a superarem
a dor e o sofrimento dos meses que se passaram.
Desse modo passara-se um ano com trabalho e cumprimento do dever, em
prestimosa atividade. Prestimosa? Martha refletiu. Ali ela podia auxiliar as
pessoas a retornarem à vida. Ela também poderia ter ajudado aqueles feridos de
morte lá fora, porém, muitas vezes o auxílio era no momento do medo da última
hora, quando os que faleciam se agarravam a ela em desespero e dor. Hoje ela
não saberia mais dizer qual fora o serviço mais bonito e qual o mais difícil –
aliviar os últimos momentos da vida de uma pessoa antes que ele adentrasse pela
porta da morte ao outro mundo ou reconduzi-lo com cuidado desse limiar
novamente ao desconhecido – reconduzi-lo de volta às vivencias diárias da
realidade notável. – – – –
Ao jovem médico Michael Burger parecia ser particularmente difícil;
apático ele jazia no seu travesseiro e mal respondia ao cumprimento da
enfermeira. Ele fora médico – um jovem talentoso cirurgião que conduzia o
instrumento cirúrgico tão cuidadosa e habilmente, como um pintor manuseando seu
pincel. Um acidente num ataque de bombas arrancara-lhe o braço direito e,
então, ele fora privado de sua profissão – suspeito de perigosa depressão,
causando preocupação a médicos e enfermeiros. Como ele atormentara justamente
Martha, que cuidava dele pacientemente e procurava sempre de novo consolá-lo
através de sua irritação e, outras vezes, devido ao seu mau-humor causado pelas
dores. Também hoje, quando quis lhe trazer o café da manhã ele recusou mal
humorado. Ele não precisava de nenhum café da manhã, não precisava de modo
algum de nada, tudo era de tal modo sem sentido: a comida, o dormir, toda a
vida. Para ele pelo menos. O que ele deveria ainda fazer neste mundo – um
cirurgião de um só braço?
Martha refletia. O que deveria ainda fazer para romper os muros da
resignação que esse ser humano construiu, cada vez mais alto, pelo seu cismar?
Não havia sequer uma lacuna por onde pudesse ser introduzida uma boa palavra, a
fim de atingir sua alma? Ela tentou iniciar uma conversa com Burger: seu
destino não é nenhum destino único, havia também ainda outros em algum lugar do
mundo. Será que ela deveria contar-lhe algo?
Mais por cordialidade e por ter consciência maliciosa sobre suas palavras
feias o jovem médico concordou.
E Martha contou-lhe dela, na situação da pequena menina
Martina que gostava muito de tocar piano. Seus pais promoveram os dons da
criança e a deixaram ter aulas já desde muito cedo. A pequena não queria nada
de forma veemente além de poder tocar piano de modo esplêndido, exatamente como
seu pai. Porém ela perdeu seus pais cedo e veio a ter com um tutor, que não
queria saber nada de “perda de tempo inútil” de tocar piano. O piano fora vendido
e ela aprendeu, com a mulher dele a manter ordem nas suas coisas e a manejar
uma meia de tricô, sendo, entretanto a criança que pela perda dos pais já se
tornara séria e sensível, estava completamente transtornada por falta de sua
ocupação favorita. Quando tentava repetir as escalas aprendidas e trechos de
melodias que mantinha na memória, havia severo castigo. E quando decidia, ao
invés de fazer aquilo, a cantarolar os tons e as melodias, fora-lhe dado a
entender que seria melhor se recitasse os vocábulos franceses. Dessa forma ela
se tornara tímida e reservada – teimosa e obstinada, como os educadores o
diziam. Ela também não tinha nenhum amigo, pois seu rosto sombrio repelia
qualquer um que se aproximava e, quando ela falava para uma pessoa do mundo de
seus sonhos, era ridicularizada. Sob essa solidão ela sofria tanto quanto sob a
ausência de suas melodias e seu anseio por calor e um coração que pudesse amar
aumentava, quanto mais envelhecia. Ela não ansiava nada mais do que pessoas que
a quisessem bem e que a tornassem feliz. Porém, a desconfiança que ela nutria
contra todos, repelia as pessoas do mesmo modo que suas fantasias infantis e
permanecia sozinha. Quando irrompeu a guerra, tornou-se enfermeira. Trazer
alegria – amenizar as dores? Essa era uma boa possibilidade para ajudar as
pessoas, tanto quanto a outra.
Sim, ela encerrou sua narrativa, pois só queria trazer alegria e com isso
amenizar suas dores. Talvez o jovem médico pudesse refletir a respeito, caso
também para ele havia outro caminho? Amenizar as dores agora ele não podia
mais, porém, poderia tentar trazer alegrias. Tantas vezes contara a ela das
suas vivências, nas práticas como médico, em suas experiências auxiliadoras com
pessoas que sofriam. Ele podia demonstrar isso de uma maneira tão clara – será
que não poderia idealizar essas vivências como histórias?
Michael Burger tornara-se atento durante as últimas palavras da
enfermeira. Olhou-a bem no rosto, mas as lutas da menina Martina ela não
desejava que fossem descobertas. Em tal decisão era difícil ou não? –
Poder-se-ia realmente modificar sua vida partindo da causa?
Ele, na verdade, não acreditava que tivesse talento para escrever e, como
que pelo gesto do trabalho que ela havia tido para com ele, pelo fato de ser
justamente inverno e não poder passar tanto tempo ao ar livre, escrever seria
um passatempo que não deveria ser pior do que jogar xadrez ou cartas de
baralho; pensou: talvez a enfermeira Martha quisesse lhe auxiliar a colocar no
papel as histórias.
Nas semanas seguintes o jogo de xadrez e as cartas de baralho foram
abandonados: a enfermeira trabalhava com seus pacientes – ele ditava e ela
escrevia. Quando ele, certo dia, dominara as dificuldades iniciais e se tornou
mais solto e aberto, escrever trazia-lhe até mesmo alegria. Igual a uma fonte,
brotavam as lembranças e se tornaram sérias, pensativas, alegres e serenas
narrativas.
Na noite de Natal a enfermeira Martha colocou a carta de uma editora sobre
a cama de Burgers. Suas narrativas foram aceitas; queria-se negociar com ele sobre
a publicação de um livro e outras esperanças lhe eram dadas.
Burger olhava as linhas que lhe indicavam o caminho no futuro, depois
pegou a mão da enfermeira. E ele perguntou, será que ela gostaria de continuar
a substituir-lhe a mão direita por longo tempo, por longuíssimo tempo?
Martha confirmou
com a cabeça – falar ela não podia. A guerra terminada, a luta e a lida tiveram
um fim e as pessoas que cuidara logo mais viajariam novamente para junto de
parentes, para suas mães e mulheres que continuariam a auxiliá-los a também
encontrar um lugar no dia-a-dia da vida. Se ela pudesse, a partir de então, ser
algo para esse ser humano, se pudesse auxiliá-lo no seu trabalho e torná-lo
alegre e feliz, fechar-se-ia o círculo que tecera em torno de seu destino, que
agora se apaziguava pela motivação estimulante de sua incontida saudade... .