segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O Último Presente






O Último Presente


por Anneliese Wisbeck



Cuidadosamente, as três fadas trataram e protegeram a jovem alma humana. Agora ela se achava à frente delas e queria descer para a Terra. Como cada um de seus protegidos, também essa criatura fora ricamente dotada com dádivas que a pudessem auxiliar em sua existência terrena, reencarnação, porém, ela era algo teimosa e impetuosa, por isso elas a mantinham ainda por um bom tempo sob seus cuidados. Unicamente o anseio dessa alma por atividade tornara-se tão poderoso que não mais se podia negar seu pedido.
“Eu gostaria de realizar na Terra o que fizeram para nós, almas humanas, aqui”, falou ela para as fadas, “e gostaria de levar algo para a Terra da beleza radiante desse jardim, no qual cresci.”
“Se queres imitar o que fazemos aqui”, disse a primeira fada, “então tens de amar as pessoas, auxiliar e servi-las. Reflita, porém, que lá em baixo na Terra nem tudo é assim como nas regiões luminosas, que até então foram proteção e pátria para ti. As pessoas se preocupam e causam desgostos para si, adquirem sofrimento e atraem a miséria. Muita coisa ser-te-á incompreensível. Contudo, ao me despedir, quero te entregar um presente que te auxiliará a suportar o fardo que queres tomar sobre ti: a humildade, a coragem para servir dar-te-á a força e fortalecer-te-á teu querer. O amor para servir que te presenteio dir-te-á como poderás auxiliar os seres humanos.”
“Queres levar algo da beleza desse jardim para a Terra”, disse a segunda fada, “então auxilia as pessoas no seu aspirar e a proporcionar forma terrena à beleza. Sirva a arte, pois ela é capaz de um pressentimento do brilho da pureza, no qual temos permissão de viver aqui. Leve como dádiva minha o amor à música. Ela poderá abrir os corações das pessoas quando contares a elas da beleza da pátria celestial e quando as palavras não forem mais capazes de expressar o que desejares dizer.”
“Meu presente para ti é a saudade”, disse a terceira fada, “pois ela poderá te conduzir e guiar, quando estiveres cansada, quando teus pés não mais encontrar o caminho de volta e quando não souberes mais, com qual finalidade saístes para esta viagem. Conserva a fagulha de luz da saudade, pois ela lembrar-te-á disso e advertir-te-á do que prometestes realizar na Terra.”
A alma inclinou a cabeça agradecida e prometeu guardar bem os presentes e utilizá-los corretamente. Depois deixou os jardins luminosos, a fim de peregrinar para a Terra.






Lucina circulou com cuidado a coluna para que saísse da luz da lua e ficasse à sombra. Ela gostaria de ter refrescado sua testa na água do poço quando seu pai pisou no átrio com o tribuno Livius. Não teria hesitado em revelar sua presença, se Livius não tivesse pronunciado o nome do jovem Flavius naquele momento. Ele relatava que suspeitava que Flavius teria visitado as reuniões dos cristãos. Supunha-se até que tinha se tornado infiel à velha crença dos deuses e ainda orasse apenas ao Deus cristão. Como, porém, ele era um protegido especial do imperador, objetivava-se enviá-lo primeiramente para bem longe, para uma província romana. Lá, assim pensava Livius, sob sua fiscalização severa, o jovem guerreiro haveria de retornar novamente para o caminho certo. Lucina teria que esperar ainda por mais um ou dois anos para o casamento; ele enviaria Flavius imediatamente de volta para casa, tão logo esse tivesse mudado de ideia.








Lucina ouviu isso cheia de medo: isso significava separar-se de Flavius, uma separação de muitos meses. Porque ela teria lutado por ele tanto tempo, para que lhe fosse tirado dessa maneira? Livius leva-lo-ia realmente junto após ter-lhe auxiliado recentemente a vencer a oposição dos pais que se posicionaram contrários à união? Será que ele ainda a ajudaria novamente se ela o pedisse? Ele teria que fazer valer sua influência junto ao imperador – Flavius teria que ficar com ela em Roma, pois ela não queria mais ficar sem ele.







No dia seguinte, Lucina foi até seu tio e lhe contou como fora testemunha clandestina da conversa entre ele e seu pai, e que agora se preocupava por Flavius. Quando falou da suspeita, a qual era o motivo para a deportação de Flavius, o rosto de Livius ficou sério e ele perguntou a Lucina se realmente era apenas o amor o motivo para o seu pedido. Lucina olhou no seu semblante, atrás de cujas pálpebras ela percebia o olhar espreitado da desconfiança: ela sabia que da sua resposta dependia a vida de Flavius e seu próprio destino. Não, chacoalhou ela a cabeça, nada mais do que apenas o amor dela movimentara-a a pedir por Flavius. Livius hesitou por um instante, depois lhe esclareceu que havia uma possibilidade para contornar a ordem do imperador; ele queria ainda de bom grado, mais uma vez, auxiliá-la, sob uma condição: se ela estivesse assim tão estreitamente ligada a Flavius, não lhe seria difícil saber se ele realmente convertera-se ao cristianismo e saber quando e onde ele ia para as reuniões. Não haveria de suceder nada a Flavius e a nenhuma daquelas pessoas aconteceria algo; haveria apenas o interesse em observar os cristãos, e ela somente precisaria indicar o lugar e a hora das reuniões.








Lucina estremecera de medo. Há apenas alguns dias Flavius confessara-lhe que pertencia a esses cristãos. Desejava que a vida de ambos fosse conduzida conforme a nova crença e lhe pediu para que ela fosse futuramente com ele às reuniões, a fim de examinar se também poderia aceitar os ensinamentos de Cristo.
Ela pressentia o perigo que ambos se achavam, porém, o pensamento em perder Flavius lhe era insuportável. Não conhecia os cristãos e nem a sua crença; de que lhe valeriam, portanto, se perdesse Flavius? Nos momentos seguintes Livius recebeu as notícias que exigira de Lucina e ela, feliz por não ter sido separada de Flavius, acompanhou-o para as reuniões clandestinas. Porém os cristãos permaneceram-lhe indiferentes, ela ia com Flavius só porque não queria deixá-lo ir sozinho.







Também não havia nada de inquietante para ser reconhecido, até que um dia, após uma cerimônia, alguns dos participantes desapareceram. Na devoção seguinte em que se reuniram, alguns dos cristãos também foram capturados na escuridão da noite pelos agentes policiais. Lucina ficara fora de si pelo ocorrido, pois pressentia que esses incidentes eram as consequências dos seus relatos ao tio. Mas o medo fê-la calar. Apenas suplicou a Flavius para não mais comparecer às próximas comemorações; ela não acreditava mais na promessa do tio. Contudo, Flavius não mudava de opinião; ele apenas pediu a ela para que permanecesse distante dos encontros secretos por algum tempo. Lucina prometeu-o, todavia, ao se aproximar a hora da reunião dos cristãos também se infiltrou clandestinamente no local. Ela queria estar com Flavius e tudo o mais lhe era indiferente.








Desta vez, os participantes foram surpreendidos pelos agentes policiais ainda no local da reunião e conduzidos ao calabouço. O imperador queria que fossem sacrificados no próximo espetáculo do circo; queria com isso reconciliar os deuses que estavam zangados por causa das descrenças dos cristãos. Livius não conseguiu libertar Lucina e Flavius e quando o imperador tomou conhecimento que ambos estavam entre os prisioneiros, deu a ordem para amarrá-los juntos em um pelourinho. Ele queria proporcionar-lhes o prazer de morrerem juntos.







A alma achava-se novamente diante das três fadas e pediu para entrar. Queria retornar de novo aos jardins luminosos.
“Perdestes meu presente”, falou a primeira fada, “ao invés de servires aos seres humanos e auxiliá-los na aflição, traíste-os para satisfazer teus próprios desejos; querias unicamente para ti amor e a felicidade. Por isso estendestes a mão e não tomastes em consideração o bem do teu próximo; ao lado de teu marido poderias tê-lo auxiliado e protegido. Não posso te deixar entrar, pois perdestes a humildade no amor próprio, trate de a reencontrares novamente.”
“Tu tens de retornar à Terra e procurar pelo que foi perdido”, disse a segunda fada, “mas ainda possuis meu presente. Conserva-te na música; ela atenuar-te-á e tranqüilizar-te-á, consolar-te-á e conduzir-te-á ao teu caminho. A música poderá abrir novamente para ti os portais para um mundo melhor.”








Com os olhos radiantes a cantora encontrava-se diante do maestro. Ele interrompera novamente o ensaio para corrigi-la. Desta vez ele queria que a madame pudesse cantar um pouco mais devagar – allegro, assai, ma non troppo – assim como a partitura o exigia.
Porém, madame Antoinette não queria – nessa altura ela não poderia manter sua voz se cantasse mais devagar. Com aguda precisão ela esclareceu ao maestro que não estava curiosa sobre sua opinião. Se ela cantasse o Laval desse jeito, teria que ser tocado no lugar o Vivace e, basta com isso!




O que, então, ainda irritava Antoinette era difícil de dizer. Eram as expressões dos músicos que seguiam curiosamente o desfecho da discussão ou era a calma com que Armand Lapine ouvia suas palavras. Ela falava cada vez mais calorosamente e mais severas tornaram-se suas palavras; tremendo de ira atirou diante dos pés de Armand a partitura. Depois pediu ao seu parceiro, o cantor Marcel Leseul, para acompanhá-la até seu carro, por hoje já haver sido feito o suficiente.




Marcel que já há longo tempo esperava por essa tal oportunidade, aproveitou-a com prazer e, no decorrer do café da manhã que ambos tomaram juntos, lisonjeou-a com muitas palavras e procurou convencê-la de que uma mulher, com seus talentos, possuía totalmente outras perspectivas além de subordinar-se à ditadura do insignificante Lapine.
Na sua teimosia perante Armand, de bom grado Antoinette deixou-se influenciar, pois ser rica parecia-lhe o ápice de tudo quanto desejava. A criança do administrador do castelo e a criada de quarto conheciam a humilhação de uma existência doméstica proveniente da própria vivência. Possuir um castelo próprio e dominá-lo era seu único desejo, para cuja realização Marcel lhe indicara então o caminho. Armand? Ele a esqueceria rapidamente, pois frequentemente tinha outra coisa em mente do que castigá-la por sua teimosia no canto.
Os poucos escrúpulos que Antoinette, de início, ainda a deixaram hesitar Marcel soube dissipar rapidamente. Algumas semanas mais tarde ela foi embora com ele e iniciou a vida que sonhara. Viajara com seu parceiro de um país para o outro, corria com ele de um teatro a outro. Dinheiro, êxito, aplausos ruidosos, uma publicação que jazia aos seus pés aguardavam-na sempre aonde ela se apresentava. Não lhe importava se aqui e ali os amigos a advertiam para cuidar da saúde e se dar um pouco mais de tempo. Ela não tinha tempo, tinha que ter primeiro o castelo.








Numa representação na Inglaterra aconteceu então: o clima brusco e a neblina, ou era o aquecimento por causa do esforço de um grande concerto, Antoinette resfriou-se. Primeiramente parecia ser apenas uma leve indisposição, contudo, seu estado piorou depois que, apesar dos médicos terem desaconselhado, dera uma tarde de ópera com Marcel. Semanas inteiras jazia ela no seu hotel com febre e incapaz de conversar. Quando quis retomar novamente seus exercícios diários de canto, descobriu com horror, que sua voz tornara-se áspera e rouca. Viajou para cá e para lá, fora inutilmente ao sul e ao clima ameno das florestas alemãs. Seu límpido timbre não retornou, perdera sua voz.







Antoinette retornou à França solitária e desamparada, pois Marcel já partira de novo com uma nova parceira pelo mundo. Um castelo ela não mais pode comprar, pois a doença prolongada e os medicamentos caros consumiram uma boa parte dos seus recursos. E assim ela adquiriu uma pequena casa de aluguel na cidade e recebia uma parte da sua manutenção dando aulas de piano para filhas de pessoas ricas que já conhecia de tempos passados. Através das relações com esse círculo de pessoas ela envolveu-se, mais tarde, nas desordens da revolução e foi parar na prisão, a qual apenas deixou para acabar numa exposição pela sua execução junto de condenados.







Com o semblante sério as três fadas olharam para a alma que novamente se encontrava à frente delas e pedia por entrada nos jardins luminosos.
“Não reencontrastes a humildade”, falou a primeira, “perdeste-a com a cobiça e com a ostentação.”
“Degradastes a arte a ofício”, falou a segunda fada, “serviste-te dela apenas para obter êxito na tua ambição e na tua cobiça.” Agora também não possuís mais o amor pela música, pois mesmo lá onde a arte serve para a alegria e a recuperação de pessoas cansadas, ela tem de se executada com o coração, se deva permanecer pura e radiante e servir à beleza. “Também desta vez não podes mais encontrar sua entrada, mas tendes de retornar novamente a Terra para procurar o que fora perdido e compensar o errado.”
“A partir de então não te será fácil”, disse a terceira fada, “pois no solo do egoísmo e do amor próprio não cresce nenhuma humildade, no terreno pedregoso de um coração endurecido a rosa do amor não pode florescer e, quem atraiçoa a arte, esse não deve mais ter esperanças de seu auxílio. Agora terás de servir às pessoas com o trabalho de tuas próprias mãos. Porém, ainda tendes a saudade, a fagulha luminosa salvadora. Se te deixares guiar por ela, poderás encontrar mais uma vez o caminho que te conduz de volta. Apenas reflita no futuro sobre o que fizeres. A saudade é o último presente que te resta.”
A alma caminhou triste para novamente retornar ao nível material mundano.





Cautelosamente a enfermeira Martha fechou a porta. Finalmente o paciente dormira e ela pode ir ao seu quarto.
Já era tarde quando fora à janela haurir mais uma vez ar fresco. Um sedoso calor e o ar quente montanhoso fluíram no quarto, a sólida montanha erguia-se sombria e clara perante o céu noturno. A grande montanha propagava-se às proximidades da sua janela e a neve no carro brilhava quase que como prata. Um ano já se passara novamente?
Havia também neve quando chegou ali no sanatório. Meses e meses ela prestou serviço no Lazarrete, dias e noites ela cuidava de feridos, até que seu corpo estafado pelas fadigas não resistiu mais – ela jazia doente com uma grave infecção. Depois, após seu restabelecimento, transferira-se ela para um dos mais bonitos arredores da Alemanha e quando a guerra finalizou, ela encontrara ainda um rico campo de atuação no trato de doentes.
Os feridos não eram mais casos clínicos. Eram amputados que tinham que se adaptar às suas condições, cegos que procuravam lentamente entrar de novo em contato com o mundo e pacientes que ainda lutavam sob o choque das consequências que vivenciaram no fogo da guerra – ela os auxiliava a superarem a dor e o sofrimento dos meses que se passaram.
Desse modo passara-se um ano com trabalho e cumprimento do dever, em prestimosa atividade. Prestimosa? Martha refletiu. Ali ela podia auxiliar as pessoas a retornarem à vida. Ela também poderia ter ajudado aqueles feridos de morte lá fora, porém, muitas vezes o auxílio era no momento do medo da última hora, quando os que faleciam se agarravam a ela em desespero e dor. Hoje ela não saberia mais dizer qual fora o serviço mais bonito e qual o mais difícil – aliviar os últimos momentos da vida de uma pessoa antes que ele adentrasse pela porta da morte ao outro mundo ou reconduzi-lo com cuidado desse limiar novamente ao desconhecido – reconduzi-lo de volta às vivencias diárias da realidade notável. – – – –
Ao jovem médico Michael Burger parecia ser particularmente difícil; apático ele jazia no seu travesseiro e mal respondia ao cumprimento da enfermeira. Ele fora médico – um jovem talentoso cirurgião que conduzia o instrumento cirúrgico tão cuidadosa e habilmente, como um pintor manuseando seu pincel. Um acidente num ataque de bombas arrancara-lhe o braço direito e, então, ele fora privado de sua profissão – suspeito de perigosa depressão, causando preocupação a médicos e enfermeiros. Como ele atormentara justamente Martha, que cuidava dele pacientemente e procurava sempre de novo consolá-lo através de sua irritação e, outras vezes, devido ao seu mau-humor causado pelas dores. Também hoje, quando quis lhe trazer o café da manhã ele recusou mal humorado. Ele não precisava de nenhum café da manhã, não precisava de modo algum de nada, tudo era de tal modo sem sentido: a comida, o dormir, toda a vida. Para ele pelo menos. O que ele deveria ainda fazer neste mundo – um cirurgião de um só braço?
Martha refletia. O que deveria ainda fazer para romper os muros da resignação que esse ser humano construiu, cada vez mais alto, pelo seu cismar? Não havia sequer uma lacuna por onde pudesse ser introduzida uma boa palavra, a fim de atingir sua alma? Ela tentou iniciar uma conversa com Burger: seu destino não é nenhum destino único, havia também ainda outros em algum lugar do mundo. Será que ela deveria contar-lhe algo?
Mais por cordialidade e por ter consciência maliciosa sobre suas palavras feias o jovem médico concordou. 




E Martha contou-lhe dela, na situação da pequena menina Martina que gostava muito de tocar piano. Seus pais promoveram os dons da criança e a deixaram ter aulas já desde muito cedo. A pequena não queria nada de forma veemente além de poder tocar piano de modo esplêndido, exatamente como seu pai. Porém ela perdeu seus pais cedo e veio a ter com um tutor, que não queria saber nada de “perda de tempo inútil” de tocar piano. O piano fora vendido e ela aprendeu, com a mulher dele a manter ordem nas suas coisas e a manejar uma meia de tricô, sendo, entretanto a criança que pela perda dos pais já se tornara séria e sensível, estava completamente transtornada por falta de sua ocupação favorita. Quando tentava repetir as escalas aprendidas e trechos de melodias que mantinha na memória, havia severo castigo. E quando decidia, ao invés de fazer aquilo, a cantarolar os tons e as melodias, fora-lhe dado a entender que seria melhor se recitasse os vocábulos franceses. Dessa forma ela se tornara tímida e reservada – teimosa e obstinada, como os educadores o diziam. Ela também não tinha nenhum amigo, pois seu rosto sombrio repelia qualquer um que se aproximava e, quando ela falava para uma pessoa do mundo de seus sonhos, era ridicularizada. Sob essa solidão ela sofria tanto quanto sob a ausência de suas melodias e seu anseio por calor e um coração que pudesse amar aumentava, quanto mais envelhecia. Ela não ansiava nada mais do que pessoas que a quisessem bem e que a tornassem feliz. Porém, a desconfiança que ela nutria contra todos, repelia as pessoas do mesmo modo que suas fantasias infantis e permanecia sozinha. Quando irrompeu a guerra, tornou-se enfermeira. Trazer alegria – amenizar as dores? Essa era uma boa possibilidade para ajudar as pessoas, tanto quanto a outra.






Sim, ela encerrou sua narrativa, pois só queria trazer alegria e com isso amenizar suas dores. Talvez o jovem médico pudesse refletir a respeito, caso também para ele havia outro caminho? Amenizar as dores agora ele não podia mais, porém, poderia tentar trazer alegrias. Tantas vezes contara a ela das suas vivências, nas práticas como médico, em suas experiências auxiliadoras com pessoas que sofriam. Ele podia demonstrar isso de uma maneira tão clara – será que não poderia idealizar essas vivências como histórias?
Michael Burger tornara-se atento durante as últimas palavras da enfermeira. Olhou-a bem no rosto, mas as lutas da menina Martina ela não desejava que fossem descobertas. Em tal decisão era difícil ou não? – Poder-se-ia realmente modificar sua vida partindo da causa?
Ele, na verdade, não acreditava que tivesse talento para escrever e, como que pelo gesto do trabalho que ela havia tido para com ele, pelo fato de ser justamente inverno e não poder passar tanto tempo ao ar livre, escrever seria um passatempo que não deveria ser pior do que jogar xadrez ou cartas de baralho; pensou: talvez a enfermeira Martha quisesse lhe auxiliar a colocar no papel as histórias.
Nas semanas seguintes o jogo de xadrez e as cartas de baralho foram abandonados: a enfermeira trabalhava com seus pacientes – ele ditava e ela escrevia. Quando ele, certo dia, dominara as dificuldades iniciais e se tornou mais solto e aberto, escrever trazia-lhe até mesmo alegria. Igual a uma fonte, brotavam as lembranças e se tornaram sérias, pensativas, alegres e serenas narrativas.
Na noite de Natal a enfermeira Martha colocou a carta de uma editora sobre a cama de Burgers. Suas narrativas foram aceitas; queria-se negociar com ele sobre a publicação de um livro e outras esperanças lhe eram dadas.








Burger olhava as linhas que lhe indicavam o caminho no futuro, depois pegou a mão da enfermeira. E ele perguntou, será que ela gostaria de continuar a substituir-lhe a mão direita por longo tempo, por longuíssimo tempo?
Martha confirmou com a cabeça – falar ela não podia. A guerra terminada, a luta e a lida tiveram um fim e as pessoas que cuidara logo mais viajariam novamente para junto de parentes, para suas mães e mulheres que continuariam a auxiliá-los a também encontrar um lugar no dia-a-dia da vida. Se ela pudesse, a partir de então, ser algo para esse ser humano, se pudesse auxiliá-lo no seu trabalho e torná-lo alegre e feliz, fechar-se-ia o círculo que tecera em torno de seu destino, que agora se apaziguava pela motivação estimulante de sua incontida saudade... .

texto publicado nos periódicos nºs 181 e 182 – Juízo Final